O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: Rodgers e Hart e o desejo de arte

30 dias de canções

Dia 15: Uma canção que evoca outras artes

"My Funny Valentine", de Richard Rodgers e Lorenz Hart. São tantas canções que poderia mencionar nesta categoria, que pedi uma sugestão a Fabio Weintraub e ele a mencionou. Logo a adotei, pareceu tão adequada, tão justa.
Trata-se de mais uma canção conhecidíssima. Na década de 1990, lembro de ter lido em uma coluna do jornalista Paulo Francis um elogio a Lorenz Hart, esplêndido letrista, especialmente ao verso "Is your figure less than Greek?", que ele achava o melhor de todos na música popular dos EUA.
A canção foi composta para um musical que nunca vi, Babes in arms, de 1937, e recebeu centenas de gravações desde então. Talvez eu prefira o que o Quinteto de Miles Davis fez com ela, porém, como a letra, neste caso, é importantíssima, indico os estilos tão diferentes de Sarah Vaughan (ouve-se uma sombra de vaia à sublime cantora em Berlim, pois parte do público patrulhava os músicos que não estavam fazendo músicas de protesto contra a invasão dos EUA no Vietnam) e de Chaka Khan, mais recente.
Ambas interpretaram a canção diversas vezes, mas não sei em quantas delas cantaram sua introdução; para ouvi-la, bem como a todo o resto interpretado à maneira de torch song, sugiro Eileen Farrell, que tinha esta outra carreira: https://www.youtube.com/watch?v=Ym5JETLpCnA; e Dolores Duran, com uma delicadeza exemplar: https://www.youtube.com/watch?v=5fEUToYpL98
A canção, tanto no contexto do musical quanto fora dele, é uma declaração de amor a alguém que não tão belo(a) assim (a introdução já o diz), mas que é a "obra de arte preferida" do seu amante (a letra não determina gênero) do jeito como é. A música pede que não mude nada, "don't change a hair for me", "stay, little Valentine, stay e na palavra stay a voz deve prolongar a nota. Vaughan fica 12 segundos no vídeo acima indicado e emenda a palavra com o "each day".
"Is your figure less than Greek? este verso sugere a escultura grega clássica e suas proporções do corpo humano. Esta canção, em certo nível, é de amor; mas, em outro, trata da arte: se aquele ser humano é "não fotografável" e, mesmo assim, é a obra de arte preferida, creio que a canção parte do correto pressuposto de que a beleza do retratado não significa a beleza da obra; estamos lidando com a representação.
E há o pedido de permanência: stay; não se quer, neste caso, um happening ou body art ou algumas dessas manifestações ou artefatos artísticos temporários. Em vez de bater na estátua para pedir que fale, deseja-se que o ser amado se torne obra de arte, porquanto somente assim ele poderá permanecer, poderá ser considerado belo com todas suas imperfeições  pois ele se tornará, perfeitamente, na representação de si mesmo. 
Um Pigmaleão invertido: em vez da escultura de mulher ideal que se torna humana, um ser humano comum que alguém, por amor, quer tornar em obra de arte. Talvez somente assim a ideia de que todo dia seja um dia dos namorados possa fazer sentido.


Dia 1: Um retrato à beira da razão, de Tom e Chico
Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba


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