O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: Baudelaire, Duparc e volúpia

30 dias de canções

Dia 13: Uma de suas canções favoritas dos anos 70

"L'invitation au voyage" (o convite à viagem), de Henri Duparc e Charles Baudelaire. A canção foi escrita em 1870. Como este desafio já trouxe canção dos anos 70 do século passado, e trará pelo menos mais uma (não escolhi todas ainda), resolvi pegar algo um pouco mais antigo do milênio que se foi.
A canção é uma das mais conhecidas deste autor que se calou com trinta e seis anos, musicando novamente Baudelaire com nada menos do que "La vie antérieure", e que morreu quase meio século depois.
Ouçam a canção com o tenor Paul Groves e o pianista Roger Vignoles: https://www.youtube.com/watch?v=broHRYE0AiY; com o baixo-barítono José van Dam e o pianista Maciej Pikulski: https://www.youtube.com/watch?v=o-d2KXgpaSw; e na versão orquestral, interpretada pelo soprano Felicity Lott acompanhada pela orquestra da Suisse Romande regida por Armin Jordan: https://www.youtube.com/watch?v=tjfr3XwG_v4.
Graham Johnson, nas notas de um disco seu com Felicity Lott, "Mélodies sur des poèmes de Baudelaire", nota que Baudelaire foi bem menos musicado do que outros poetas franceses do que, por exemplo, Verlaine, e ele atribui esse fato à complexidade do poeta. Duparc não musicou, porém, a estrofe central ("Des meubles luisants"). O poema, segundo leio na biografia Baudelaire, escrita por Enid Starkie, foi inspirado por uma das namoradas do poeta, a atriz Marie Daubrun, e escrito em 1855.
A tradução de Ivan Junqueira pode ser lida por meio desta ligação; há um erro de quem a transcreveu: não são "canis", mas "canais": http://antoniocicero.blogspot.com.br/2011/06/linvitation-au-voyage-mon-enfant-ma.html
Essa canção me impressiona pelo fato de ao mesmo tempo a melodia parecer conduzir para o dístico "Lá tudo é só ordem e beleza,/ Luxo, calma e volúpia." (traduzo literalmente), e ele soar também como suspensão da canção. O tempo para nesse momento, e imaginamos que ela poderia continuar indefinidamente, com o aumento da complexidade do piano em cada estrofe  é curioso como o acompanhamento se transforma mais do que a voz; o que ocorre aí não é da ordem da linguagem articulada; talvez o seja da volúpia, que é o fulcro do poema e se torna também o do músico, mesmo quando a voz se cala.
Baudelaire concorda nestes termos com a apreciação de Liszt sobre a música de Wagner (cito da terceira parte do Richard Wagner e Tannhäuser em Paris):
Com efeito, sem poesia, a música de Wagner ainda seria uma obra poética, sendo dotada de todas as qualidades que constituem uma poesia bem feita; explicativa por ela mesma, tanto que todas as coisas estão nela bem unidas, ligadas, adaptadas reciprocamente e, se é permitido criar um barbarismo para exprimir o superlativo de uma qualidade, prudentemente concatenadas.
A influência de Wagner sobre Duparc talvez pudesse ser constatada da mesma forma, embora no formato breve da canção. 
E, certamente, se poderia afirmar do poema de Baudelaire, com seus esquemas rítmico e rímico, que, sem música, ainda seria uma obra musical.


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Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
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