O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Desarquivando o Brasil CXXXIV: O senador não viu os povos indígenas e os camponeses na ditadura

O senador Ronaldo Caiado ontem, no Senado Federal, segundo a checagem da Agência Pública, levou dados falsos sobre terras indígenas à sabatina de Alexandre de Moraes. Coincidentemente, a falta de correspondência com a realidade que vem ocorrendo nessas terras (grilagem, genocídio, etnocídio) atende a interesses do latifúndio, sempre interessado em tomar áreas dos povos originários e ampliar a devastação ambiental.
O desapego em relação à exatidão dos dados publicamente apresentados, mesmo se para fundamentar algo que deveria ser feito com seriedade e cuidado, como a sabatina de um indicado para o Supremo Tribunal Federal, não é nada incomum na elite política brasileira. Outro exemplo recentíssimo desse desapego foi dado em coluna do senador na Folha de S.Paulo, publicada em 11 de fevereiro de 2017, "O deficit moral do Estado".
O artigo enuncia que todas as crises do Brasil partem da expressão que ele escolhe para título. Como divulgar dados errados não é, para ele, um problema moral, fala dos mortos em três dias na greve da Polícia Militar no Espírito Santo com esta comparação: "basta lembrar que, segundo números da Comissão da Verdade, morreram, ao longo dos 21 anos do regime militar - e na grande maioria dos casos em enfrentamento armado - 434 pessoas, à média de 21 pessoas por ano".
O que o senador quis dizer com "Comissão da Verdade", já que houve, e ainda há, várias no Brasil? Teria sido a Comissão Nacional da Verdade (CNV)? Impossível, pois:

a) A maioria dos casos não foi de "enfrentamento armado", mas de chacinas e execuções extrajudiciais, ilegais mesmo perante o direito antidemocrático da época; aliás, o relatório da CNV reitera o que se sabe há décadas, e tinha sido comprovado pelo Brasil: Nunca Mais; a ditadura inventava "enfrentamentos" e "suicídios" para encobrir as execuções.
b) O relatório fala de 434 mortos e desaparecidos POLÍTICOS, isto é, pessoas que foram consideradas oponentes do governo, o que inclui pessoas da esquerda armada e membros da resistência pacífica. As OUTRAS VÍTIMAS da ditadura, as que foram assassinadas em razão das políticas dos governos militares, são MUITO MAIS, milhares, segundo o próprio relatório da CNV, que o senador não leu ou não entendeu: "foi possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos no período de investigação da CNV, em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão. Essa cifra inclui apenas aqueles casos aqui estudados em relação aos quais foi possível desenhar um estimativa. O número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior" (CNV, Relatório, vol. II, p. 205). No caso dos povos originários, trata-se do extermínio para a colonização de terras, criação de usinas hidrelétricas, abertura de estradas e implantação de outros projetos desenvolvimentistas.

Como dizer que os povos bombardeados com napalm para abertura de estradas não foram vítimas da ditadura? Mesmo depois da condenação do Estado brasileiro por genocídio no Tribunal Bertrand Russell em 1980? A própria CNV afirma que não foi capaz de investigar a fundo e avaliar o número das milhares de vítimas dos genocídios contra os povos indígenas cometidos pela ditadura militar. Ademais, reduzir as vítimas das ditaduras ao número dos mortos e desaparecidos entre os oponentes políticos seria de uma desfaçatez adversária de qualquer critério razoável sobre o significado histórico da ditadura, e amiga dos negacionistas que desejam suavizar ou legitimar os crimes contra a humanidade em que aquele regime se baseou.
O senador, obviamente, não leu o relatório da CNV. Uma vez que o nobre parlamentar trata, habitualmente, dos assuntos do campo, e que os latifundiários não criaram uma comissão da verdade própria (assim como a FIESP e as Organizações Globo também não, embora provavelmente tenham muito a colaborar com documentos sobre a ditadura), teria o nobre parlamentar buscado seus números na Comissão Camponesa da Verdade?
Tampouco, pois o relatório da Comissão Camponesa listou 1196 camponeses e apoiadores mortos. Por sinal, em 2013, livro da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de transição, feito a partir de pesquisa de Gilney Amorim Viana, que já trazia a lista dos 1196, mostrando que o governo tutelado pelos militares encabeçado por José Sarney não fez a violência no campo diminuir: "E o que é mais impressionante, o padrão da repressão política no campo, medido pelo indicador de mortes e desaparecimentos forçados de lideranças camponesas, continuou em crescente durante a transição civil, de 1985-1988, atingindo mais de 45% dos 602 casos selecionados".
Qual foi a fonte do senador? Teria sido o Dossiê Ditadura:  Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985) da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos? De forma alguma. O livro, que pode ser lido na sua edição mais atualizada no portal da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva" (para a edição de 1995, ver o DHNet), apresenta o número de 436 mortos e desaparecidos políticos:
Na versão revista e ampliada do Dossiê que ora apresentamos, estão reunidas as informações coletadas durante as pesquisas, as conversas e a troca de correspondência com parentes, amigos e ex-presos políticos. Passados 30 anos da edição da Lei de Anistia, a soma atinge 396 pessoas no Brasil, sendo 237 mortos e 159 desaparecidos políticos. Desde 1996, novas investigações obtiveram informações de mais 69 pessoas. No exterior, há 30 casos, incluindo os mortos em decorrência de sequelas da tortura ou de acidente no exílio. Além disso, há 10 pessoas que morreram antes do golpe de 1964, totalizando 436 nomes. Esse número pode aumentar, pois não foram esgotadas todas as possibilidades de pesquisa e investigação, tais como as realizadas nos arquivos do antigo SNI, hoje parcialmente disponíveis ao público no Arquivo Nacional.
Alguns desses nomes não foram pesquisados pela CNV a qual, por sua vez, acolhe alguns que não estão nesse Dossiê. Por sinal, quando foi anunciado que a CNV apresentaria apenas 421 casos (depois, houve uma ampliação), a Comissão "Rubens Paiva" protestou em ofício de 7 novembro de 2014 (que pode ser lido no anexo da introdução do Relatório daquela Comissão):
Esclarecemos que nossa discordância se deve ao fato de que, desde 2009, quando houve a publicação do já mencionado Dossiê Ditadura, produzido por esforço e empenho exclusivamente dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, sem nenhuma ajuda do Estado, seu conteúdo nunca foi contestado por nenhum órgão estatal ou da sociedade civil e nem sequer por qualquer agente da repressão citado no livro. É inadmissível que caiba à Comissão Nacional da Verdade, criada com o objetivo de esclarecer as graves violações de direitos humanos e colaborar com o processo de reparação às famílias, o papel de ser a primeira a questionar e a descartar, ao invés de investigar profundamente, os casos relatados e descobertos com grandes sacrifícios pelo movimento de familiares em nosso país.
É necessário reiterar que, em reunião com o então coordenador da CNV, Pedro Dallari, foi acordado expressamente tanto com a Comissão de Familiares e quanto com a Comissão “Rubens Paiva” que se partiria do universo de casos do Dossiê dos familiares para aprofundar as investigações e ampliar a categoria de vítimas, com a ressalva de que nenhum caso seria ignorado de forma a não reforçar a recorrente política de esquecimento que o Estado Brasileiro impõe aos mortos e desaparecidos políticos desde o período da ditadura. Esse compromisso foi selado e reafirmado em diversas oportunidades, inclusive quando a Comissão Nacional da Verdade recebeu, em Audiência Pública realizada em São Paulo, na data de 14 de março de 2014, simbolicamente, um exemplar do Dossiê.
Vale mencionar que ainda há casos como o de Gerosina Silva Pereira e o de Ângelo Pezzuti da Silva que já foram reconhecidos pela Comissão de Anistia por estes terem sido executados por agentes do Estado. É um retrocesso questionar a veracidade destes fatos já reconhecidos oficialmente. 
Na introdução do relatório da Comissão "Rubens Paiva", por sinal, temos uma avaliação das possibilidades de quantificação das milhares de vítimas da ditadura militar. Provavelmente, nunca teremos o quadro completo:
Conforme apuração que consta no Dossiê publicado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, as violências atingiram cifras muito elevadas no Brasil: mais de 50 mil presos nos primeiros meses depois do golpe, 436 mortos e desaparecidos políticos no Dossiê de Familiares, uma quantidade não determinada de índios, 10.034 pessoas submetidas a inquérito e 7.376 indiciadas por crimes políticos, 130 banidos, 4.862 cassados, 6.952 militares atingidos, 1.188 camponeses e apoiadores assassinados, 4 condenados à pena de morte (que foi comutada; a ditadura executou vários, mas sempre fora da lei) e milhares de exilados.
Esses números foram ampliados nos últimos anos. Em relação aos povos indígenas, as estimativas apontam para, no mínimo, 8350 mortos e desaparecidos, configurando o crime de genocídio. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, no estudo Camponeses Mortos e Desaparecidos: Excluídos da Justiça de Transição, apontou o número de 1196 camponeses e apoiadores. Apenas uma pequena minoria das vítimas no campo e dos índios foi oficialmente anistiada.
Apesar de elevados, esses números não oferecem a completa dimensão das violências que foram praticadas pela ditadura militar brasileira, um regime político que sistematizou a prática de crimes contra a humanidade e disso dependia para subsistir. Em primeiro lugar, porque é impossível compreender apenas com estatísticas a gravidade e a herança de violências de um regime autoritário e sua persistência no presente. Em segundo, o próprio caráter arbitrário das ditaduras esconde o número real das violações de direitos humanos, pois muitos casos anônimos não figuram nas listas existentes sobre esse tema.  
Parece-me, portanto, que o senador não se baseou em nenhum estudo sério ou atualizado sobre o assunto, o que é muito decepcionante, levando em consideração as graves atribuições e competências de um senador da república. Além disso, é intrigante que o senador não tenha lido o relatório da CNV, uma vez que ele é citado no documento; por exemplo, aqui:
Liderada pelo médico Ronaldo Caiado, de tradicional família de fazendeiros e políticos de Goiás, e pelo pecuarista Plínio Junqueira Júnior, a UDR foi criada nesse estado a partir da movimentação dos grandes proprietários da região em oposição ao PNRA. Tinham como objetivo inicial prestar auxílio legal a seus associados para evitar a desapropriação de seus imóveis, pela nova legislação. No entanto, a versão divulgada pelos movimentos sociais de trabalhadores rurais dá conta de atividades muito distintas. Eles denunciam o envolvimento de seus sócios com “compra de armas e a formação de milícias privadas para enfrentar, violentamente, as ‘invasões’ de terra”, estratégia adotada pelos trabalhadores rurais após a formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). (CNV, Relatório, vol. II, p. 142).
Talvez lhe interessassem as referências sobre a UDR no Relatório, como esta:
Tal posição do Estado diante dos conflitos pela terra, sempre em apoio aos grileiros e grandes proprietários, criminalizando sistematicamente as tentativas de resistência de posseiros, estende-se até o final do período das investigações atribuídas à CNV: o ano da Constituinte Democrática de 1988. Foi quando a democracia incipiente do governo Sarney, aliado aos governos dos estados de Goiás, do Pará e do Maranhão, deu seu consentimento tácito às ações armadas comandadas pelos membros da UDR (União Democrática Ruralista), criada por fazendeiros de Goiás, mas que logo se expandiu para todo o país. A UDR foi o agente ideológico e o articulador político da violência do latifúndio que, em defesa de suas terras, passou a fomentar de forma sistemática e organizada a violência no campo, promovendo assassinatos de posseiros, sindicalistas e advogados de causas dos camponeses. (CNV, Relatório, vol. II, p. 94).
De qualquer forma, apesar da evidente deficiência teórica do senador nesse assunto, fica algo de inexplicável no seu esquecimento dos camponeses e dos índios entre as vítimas da ditadura (o que eleva o número para a ordem dos milhares, embora não saibamos quanto), tendo em vista o interesse do nobre parlamentar pelas coisas do campo.
Seria de bom alvitre que ele propusesse, em vez de uma investigação contra a Imperatriz Leopoldinense pelo fato de a Escola de Samba estar apoiando os povos do Xingu, que ele propusesse uma CPI sobre o genocídio dos povos indígenas e outras sobre a grilagem de terras no
Cerrado, na Amazônia, no Nordeste...
Creio que essa iniciativa serviria até mesmo para melhorar a imagem do país, recentemente manchada com a criminalização da ciência pelo Congresso Nacional brasileiro. A chamada CPI da Funai e do Incra está mirando a Associação Brasileira de Antropologia, razão pela qual assinei, e convido a assinar, esta petição de apoio à ABA.
Depois de fazer a sugestão ao senador, termino lembrando que o monumental erro que ele cometeu, pretendendo que as vítimas da ditadura foram apenas os oponentes políticos, ignorando o caráter genocida da ditadura militar, já foi feito por vários outros, inclusive especialistas em justiça de transição, mas especialmente a imprensa. Uma pequena lista:

  • "Segundo as estimativas atuais, a ditadura brasileira causou cerca de 358 mortes, enquanto na Argentina, por exemplo, certas estimativas indicam 30 mil mortos e desaparecidos." (MASQUES, Teresa C. S.; ARTURI, Carlos S. O exílio enquanto um mecanismo de exclusão política durante o regime militar no Brasil. In: GALLO, Carlos Artur; RUBERT, Silvania. Entre a memória e o esquecimento: estudos sobre os 50 anos do Golpe Civil-Militar no Brasil. Porto Alegre, Deriva, p. 155-169, 2014, p. 160).
  • "A segunda mentira é a de que a repressão militar levou à morte de milhares de opositores. Entre combatentes da guerrilha, mortes nas prisões ou desaparecimentos, foram 429 os opositores que perderam a vida, conforme Fernão Lara Mesquita mostrou em recente artigo publicado no Estado." (Ives Gandra da Silva Martins. As mentiras 'verdadeiras'. O Estado de S. Paulo, 19 abr. 2014. http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,as-mentiras-verdadeiras-imp-,1155907).
  • "Depois de dois anos e sete meses de trabalho, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) confirmou, em seu relatório final, 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura militar no país. Entre essas pessoas, 210 são desaparecidas." (Agência Brasil. Comissão reconhece 434 mortos e desaparecimentos durante ditadura militar. 10 dez. 2014. http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-12/comissao-reconhece-mais-de-200-desaparecidos-politicos-durante)
  • "The 4,400-page publication stands out as among similar efforts in other countries. It names 377 individuals as responsible for 434 political murders and disappearances."  (The Economist. The final reckoning. 13 dez. 2014. http://www.economist.com/news/americas/21636059-investigation-human-rights-abuses-names-culprits-far-too-late-final-reckoning)
  • "In the end, the commission confirmed that the Brazilian state was responsible for at least 191 deaths and 210 disappearances during that period. (It also located the remains of 33 people who had previously been classified as missing.)" (Kathryn Skkink, Bridget Marchesi. Nothing but the Truth. Foreign Affairs. http://www.iri.usp.br/documentos/2015.02.26%20-%20Foreign%20Affairs%20%28EUA%29-%20mat%C3%A9ria%20sobre%20a%20CNV.pdf)
  • "No Brasil, a Comissão da Verdades listou 434 vítimas (apenas mortos e desaparecidos) em seu mais recente relatório, de dezembro de 2014." (Luciana Dyniewicz, Mariana Carneiro. Argentina ainda discute número de vítimas da ditadura militar. Folha de S. Paulo, 1o. fev. 2016. http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/02/1735938-argentina-ainda-discute-quantas-foram-as-vitimas-da-ultima-ditadura-militar.shtml)


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