O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 11 de março de 2017

30 dias de canções: A boca seca da revolução: Miguel Poveda e Narcís Comadira

30 dias de canções

Dia 22: Uma canção e uma revolução 

"Boca seca", de Miguel Poveda e Narcìs Comadira. Poveda a gravou no disco "Desglaç", de 2005, todo feito a partir de poemas em catalão. 
Cheguei a pensar, para esta categoria, em uma canção revolucionária, como "Ça ira" ou "Bella ciao", porém pensei que era mais interessante uma canção que remetesse a uma ânsia de mudança, mas sem estar ligada a um evento histórico determinado, ou que se mostrassem em aberto para uma mudança futura.
Neste vídeo, Poveda a canta ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=FEvGneiu4t0.
A gravação (e não a bela execução musical) tem defeitos. Aqui, em bis, ele não a canta inteiramente, mas o vídeo não tem problemas, e a interpretação é muito bonita: https://www.youtube.com/watch?v=c1BD1BvHcS0.
Uma tradução literal poderia ser assim:

Gritamos
Até não poder mais.
A paz, a paz,
Justiça e liberdade
Até não poder mais.

Gritamos até não poder mais
Que nos incomodavam tantas estruturas
Imóveis, 
Tantos papéis, tantas leis,
A jaula que encarcera
Até não poder mais.

Temos a boca seca.

Poveda (que eu cheguei a cogitar para o dia 28 deste desafio de canções) tem uma ligação com a poesia; seu disco anterior tinha como repertório os poemas de exílio de Rafael Alberti. 
Em "Boca seca", do disco programaticamente catalão, Miquel Gil participa e vocifera a estrofe central. Dimitri Psonis toca o "santur", que dá uma sonoridade toda especial à faixa.
Pode-se ver algo disso no documentário DesglaçPoveda conta nele seu encontro com Comadira; "Boca seca" lhe pareceu um "título precioso": https://youtu.be/rbhy4NmUX-4?t=17m30s
Esse disco foi o primeiro para que compôs música. O cantor considera, com razão, esse um dos poemas "reivindicativos" que escolheu: https://youtu.be/rbhy4NmUX-4?t=35m49s.
Quase escolhi "Final", do mesmo disco, criada a partir do poema Joan Brossa que celebra a morte de Franco. No entanto, a morte do facínora não foi resultado de uma revolução; pelo contrário, seu fim tranquilo mostram exatamente o malogro de um projeto revolucionário na Espanha. Mas vejam o tango que ele e Marcelo Mercadante escreveram para o assassino, para a "Excremência": https://youtu.be/rbhy4NmUX-4?t=43m12s.
O poema de Narcís Comadira que Poveda musicou vem do primeiro livro do escritor e artista plástico, La febre freda, de 1966. http://www.escriptors.cat/autors/comadiran/obra.php
No Brasil, Ronald Poolito traduziu Comadira para o português; entre  essas traduções, está um livro inteiro, Desdesejohttp://www.lamparina.com.br/livro_detalhe.asp?idCodLivro=144; também no 12 Poetas Catalães, traduzido com Josep Domenech: http://www.catalonia.com.br/download/12_poetas_catalaes.pdf.
A melodia que Miguel Poveda, conhecido intérprete de flamenco, criou para o poema nasce, coerentemente, do grito anunciado no primeiro verso. 
Os ornamentos vocais que criou para essa transfiguração do grito, a própria música, são típicos desse gênero ibérico que, para o cantor, é universal. Creio que essa caracterização do flamenco faz todo sentido, pois o grito também é universal.
A exclamação com que a voz lança "La pau" ("a paz") encarna, creio, a luta para atingi-la. Em 1966, essa boca teria que esperar até a década seguinte para que o regime assassino do franquismo acabasse. Cito José Antonio Martín Pallín e Rafael Escudero Alday na introdução ao livro Derecho y memoria histórica (Madrid, Editorial Trotta, 2008):
[...] hoje sabemos que foram mais de 200.000 as pessoas assassinadas entre os anos de 1939 e 1942, que 700.000 estiveram em campos de concentração, que mais de 400.000 foram presos e que uns 300.000 foram expulsos de seus postos de trabalho. Sabemos agora que se tratou de um autêntico genocídio por motivos políticos que os vencedores da guerra executaram sem pudor, ensoberbecidos pela marcha imperial de seus protetores nazistas.
Como o fim desse regime criminoso ocorreu por meio de um grande pacto de esquecimento sob a tutela de um monarca, penso que se pode adotar o método que Poveda empregou para compor: continuar o grito, ampliando-o.


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros
Dia 19: Wolf e Mörike imaginando a ilha
Dia 20: A loucura, Schumann e Andersen
Dia 21: Tiganá Santana e a memória negra


Nenhum comentário:

Postar um comentário