30 dias de canções
Dia 23: Uma canção que você acha que todos deveriam ouvir
"O trenzinho do caipira", de Heitor Villa-Lobos e Ferreira Gullar. Não creio que exista uma canção que todos devam ouvir. De qualquer forma, não sou fiscal nem da audição nem de vestes alheias. No entanto, acho que não faz sentido ouvir música brasileira e não conhecer Villa-Lobos.
Neste caso, não se trata nem mesmo, originalmente, de uma canção. O "Retrato em branco e preto", que escolhi no primeiro dia do desafio, tampouco. Nos dois casos, a origem era uma música instrumental.
Diferentemente do que ocorreu com Tom Jobim, que pediu a letra para Chico Buarque, Villa-Lobos não pediu nada. A letra surgiu depois da morte do músico, publicada em O poema sujo, livro que Ferreira Gullar escreveu no exílio.
Originalmente, a música é o último movimento, a tocata, das Bachianas Brasileiras n. 2 ("Bachianas" no plural, como Villa-Lobos queria), para orquestra de câmara, composição de 1930.
Gosto muito deste arranjo de Leandro Braga para o disco "O cair da tarde", em que Ney Matogrosso canta Villa-Lobos e Tom Jobim: https://youtu.be/oPpAYciwtHs?t=39m24s. Ouçam a expressão do cantor quando diz pela última vez "Pro dia novo encontrar".Ney Matogrosso erra a letra, porém, cantando "cantando pela serra ao luar" em vez de "cantando pela serra do luar". Ferreira Gullar diz que esse erro "É o lugar-comum desbancando a poesia". Na regravação pop que fez anos depois, o cantor insistiu no erro.
Para entender o sentido da referência a Bach na série das Bachianas Brasileiras, aconselho ler/ouvir o que Amancio Cueto Jr. escreveu para o blogue Euterpe, analisando brevemente a que talvez seja a mais célebre das Bachianas Brasileiras, a de número 5, que foi gravada por algumas das mais célebres sopranos (Bidu Sayão, menos o "Martelo", Victoria de los Angeles em mau português, regida pelo compositor, Anna Moffo, Kiri te Kanawa - que tenta transformar o compositor em Puccini - , Barbara Hendricks, Renée Fleming etc.): http://euterpe.blog.br/analise-de-obra/villa-lobos-bachianas-brasileiras-5.
"O trenzinho do caipira" existe em várias transcrições, como para cello e piano, neste vídeo com Hugo Pilger e Lúcia Barrenechea: https://www.youtube.com/watch?v=Spavh6T-wJ0(o apresentador se equivoca em relação ao título).Vejam o que o grande Quinteto Villa-Lobos fez: https://www.youtube.com/watch?v=COkFaUMzPak.
Ferreira Gullar contou em crônica de 6 de dezembro de 2009 para a Folha de S.Paulo o impacto que teve ao descobrir essa música de Villa-Lobos por meio de sua esposa, Thereza Aragão, e que pensou por vinte anos em escrever uma letra para a tocata das Bachianas n. 2, sem o conseguir. foi em Buenos Aires, em 1975, no exílio, é que logrou "em vinte minutos" criar a letra, que se encaixa bem, com a evocação do trem, da paisagem e da infância, nessa obra da memória que é o Poema sujo.
De acordo com o poeta, a indicação para cantar aqueles versos ao som da tocata das Bachianas era meio irônica, porém Edu Lobo quis fazê-lo em 1978. Na crônica, ele trataou também das questões de direitos autorais que surgiram para acertar essa parceria póstuma com Villa-Lobos.
Vejam Edu Lobo ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=8cmVC-JotNw.
Uma nota: lembro que, pouco depois, em 1981, Milton Nascimento, no disco "Caçador de mim", em movimento contrário ao de Gullar, partiu da poesia para a canção e musicou um trecho do Poema Sujo: "Bela bela", que não havia sido pensado originalmente para esse fim: https://www.youtube.com/watch?v=YzLnIFBI0XQ.
De acordo com o poeta, a indicação para cantar aqueles versos ao som da tocata das Bachianas era meio irônica, porém Edu Lobo quis fazê-lo em 1978. Na crônica, ele trataou também das questões de direitos autorais que surgiram para acertar essa parceria póstuma com Villa-Lobos.
Vejam Edu Lobo ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=8cmVC-JotNw.
Uma nota: lembro que, pouco depois, em 1981, Milton Nascimento, no disco "Caçador de mim", em movimento contrário ao de Gullar, partiu da poesia para a canção e musicou um trecho do Poema Sujo: "Bela bela", que não havia sido pensado originalmente para esse fim: https://www.youtube.com/watch?v=YzLnIFBI0XQ.
Muitos músicos "eruditos" têm dificuldade com Villa-Lobos, creio, pelo menos em alguns casos, por ele ser tão maior que os outros e ter todo esse diálogo (e vivência) com a música popular. Vejam o livro de J. Jota de Moraes, Música da modernidade, em que o único dos compositores apresentado com tintas negativas é justamente Villa-Lobos, o único brasileiro entre as "personalidades" escolhidas, e que ele "coloca entre os grandes compositores surgidos no Brasil", o que é uma forma de diminuí-lo; chama-o de "um rapsódico que se encantava com as novelas de rádio".
Contra isso, cito o artigo "Inspirações étnicas", de Marcos Lacerda, no livro Notas. Atos. Gestos, organizado por Silvio Ferraz:
Contra isso, cito o artigo "Inspirações étnicas", de Marcos Lacerda, no livro Notas. Atos. Gestos, organizado por Silvio Ferraz:
O equívoco na avaliação de Villa-Lobos, segundo o qual ele teria pouco a oferecer de consistente no domínio restritíssimo da modernidade, interessa a um contingente grande de compositores e intérpretes dispostos a repassarem a aproximação ao popular de ouvido, novamente à maneira romântica. [...] Isso teria bastado como fundamento de uma ideologia suficientemente resistente às emanações perturbadoras de que o mundo desembocara na atonalidade sem direito a histórias singulares no hemisfério sul.
Acho que Villa-Lobos é uma dessas histórias singulares, e o fato de ele ter atravessado fronteiras, inclusive do que é popular ou clássico, bem poderia ser uma singularidade nossa.
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