O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 13 de março de 2017

30 dias de canções: Encontrar o dia novo, Villa-Lobos e Ferreira Gullar

30 dias de canções

Dia 23: Uma canção que você acha que todos deveriam ouvir 

"O trenzinho do caipira", de Heitor Villa-Lobos e Ferreira Gullar. Não creio que exista uma canção que todos devam ouvir. De qualquer forma, não sou fiscal nem da audição nem de vestes alheias. No entanto, acho que não faz sentido ouvir música brasileira e não conhecer Villa-Lobos.
Neste caso, não se trata nem mesmo, originalmente, de uma canção. O "Retrato em branco e preto", que escolhi no primeiro dia do desafio, tampouco. Nos dois casos, a origem era uma música instrumental.
Diferentemente do que ocorreu com Tom Jobim, que pediu a letra para Chico Buarque, Villa-Lobos não pediu nada. A letra surgiu depois da morte do músico, publicada em O poema sujo, livro que Ferreira Gullar escreveu no exílio.

Originalmente, a música é o último movimento, a tocata, das Bachianas Brasileiras n. 2 ("Bachianas" no plural, como Villa-Lobos queria), para orquestra de câmara, composição de 1930.
Gosto muito deste arranjo de Leandro Braga para o disco "O cair da tarde", em que Ney Matogrosso canta Villa-Lobos e Tom Jobim: https://youtu.be/oPpAYciwtHs?t=39m24s. Ouçam a expressão do cantor quando diz pela última vez "Pro dia novo encontrar".
Ney Matogrosso erra a letra, porém, cantando "cantando pela serra ao luar" em vez de "cantando pela serra do luar". Ferreira Gullar diz que esse erro "É o lugar-comum desbancando a poesia". Na regravação pop que fez anos depois, o cantor insistiu no erro.
Para entender o sentido da referência a Bach na série das Bachianas Brasileiras, aconselho ler/ouvir o que Amancio Cueto Jr. escreveu para o blogue Euterpe, analisando brevemente a que talvez seja a mais célebre das Bachianas Brasileiras, a de número 5, que foi gravada por algumas das mais célebres sopranos (Bidu Sayão, menos o "Martelo", Victoria de los Angeles em mau português, regida pelo compositor, Anna Moffo, Kiri te Kanawa - que tenta transformar o compositor em Puccini - , Barbara Hendricks, Renée Fleming etc.): http://euterpe.blog.br/analise-de-obra/villa-lobos-bachianas-brasileiras-5.
"O trenzinho do caipira" existe em várias transcrições, como para cello e piano, neste vídeo com Hugo Pilger e Lúcia Barrenechea: https://www.youtube.com/watch?v=Spavh6T-wJ0(o apresentador se equivoca em relação ao título).
Vejam o que o grande Quinteto Villa-Lobos fez: https://www.youtube.com/watch?v=COkFaUMzPak.
Ferreira Gullar contou em crônica de 6 de dezembro de 2009 para a Folha de S.Paulo o impacto que teve ao descobrir essa música de Villa-Lobos por meio de sua esposa, Thereza Aragão, e que pensou por vinte anos em escrever uma letra para a tocata das Bachianas n. 2, sem o conseguir. foi em Buenos Aires, em 1975, no exílio, é que logrou "em vinte minutos" criar a letra, que se encaixa bem, com a evocação do trem, da paisagem e da infância, nessa obra da memória que é o Poema sujo.
De acordo com o poeta, a indicação para cantar aqueles versos ao som da tocata das Bachianas era meio irônica, porém Edu Lobo quis fazê-lo em 1978. Na crônica, ele trataou também das questões de direitos autorais que surgiram para acertar essa parceria póstuma com Villa-Lobos.
Vejam Edu Lobo ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=8cmVC-JotNw.
Uma nota: lembro que, pouco depois, em 1981, Milton Nascimento, no disco "Caçador de mim", em movimento contrário ao de Gullar, partiu da poesia para a canção e musicou um trecho do Poema Sujo: "Bela bela", que não havia sido pensado originalmente para esse fim: https://www.youtube.com/watch?v=YzLnIFBI0XQ.
Muitos músicos "eruditos" têm dificuldade com Villa-Lobos, creio, pelo menos em alguns casos, por ele ser tão maior que os outros e ter todo esse diálogo (e vivência) com a música popular. Vejam o livro de J. Jota de Moraes, Música da modernidade, em que o único dos compositores apresentado com tintas negativas é justamente Villa-Lobos, o único brasileiro entre as "personalidades" escolhidas, e que ele "coloca entre os grandes compositores surgidos no Brasil", o que é uma forma de diminuí-lo; chama-o de "um rapsódico que se encantava com as novelas de rádio". 
Contra isso, cito o artigo "Inspirações étnicas", de Marcos Lacerda, no livro Notas. Atos. Gestos, organizado por Silvio Ferraz:
O equívoco na avaliação de Villa-Lobos, segundo o qual ele teria pouco a oferecer de consistente no domínio restritíssimo da modernidade, interessa a um contingente grande de compositores e intérpretes dispostos a repassarem a aproximação ao popular de ouvido, novamente à maneira romântica. [...] Isso teria bastado como fundamento de uma ideologia suficientemente resistente às emanações perturbadoras de que o mundo desembocara na atonalidade sem direito a histórias singulares no hemisfério sul.
Acho que Villa-Lobos é uma dessas histórias singulares, e o fato de ele ter atravessado fronteiras, inclusive do que é popular ou clássico, bem poderia ser uma singularidade nossa.

Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros
Dia 19: Wolf e Mörike imaginando a ilha
Dia 20: A loucura, Schumann e Andersen
Dia 21: Tiganá Santana e a memória negra
Dia 22: A boca seca da revolução: Miguel Poveda e Narcís Comadira

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