O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 17 de março de 2017

30 dias de canções: Sarah Vaughan e os palhaços

30 dias de canções

Dia 25: Uma canção cujo intérprete pode ser considerado coautor

"Send in the clowns" (Mande entrar os palhaços), de Stephen Sondheim, na versão de Sarah Vaughan. 
Vejam uma interpretação que segue de perto o original: https://www.youtube.com/watch?v=vufO2FZY6XQ.
A Divina Sarah Vaughan transforma a canção em um grande momento de expressão de perda e ironia; ela gravou-a em 1980 com a orquestra de Count Basie: https://www.youtube.com/watch?v=UBJSP2NUaSU
A canção pertence ao musical "A little night music", que nunca vi; o espetáculo recebeu diversos prêmios, inclusive por sua música: https://www.ibdb.com/broadway-production/a-little-night-music-3176/#awards
A canção é cantada, na peça, por uma atriz que tem seu pedido de casamento rejeitado por um homem que quer casar com uma mulher mais jovem. Ela foi logo tirada do contexto e gravada por diversos intérpretes, muito diferentes entre si: Frank Sinatra (creio que o primeiro a fazê-lo) e Renato Russo, Barbra Streisand e Tom Jones, Sumi Jo e Grace Jones. Não ouvi todas desta lista, mas, das que conheço, a de Vaughan é a mais comovente e, musicalmente, a mais inventiva.
A canção é aparentemente simples, mas creio que isso é uma virtude, por deixar espaço para o intérprete improvisar. 
Vaughan criou a sua própria partitura vocal. Primeiramente, o andamento: ela canta mais lentamente do que todo mundo, seu controle respiratório lhe permite fazê-lo, e assim ela tem mais espaço para detalhes. Logo ela começa a ornamentar a música; "Don't you aprove": https://youtu.be/2rd818Ae3J8?t=1m11s.
A rica voz de peito desta contralto traz peso à questão "Where are the clowns?": https://youtu.be/2rd818Ae3J8?t=1m47s; e tristeza ao "Sure of my lines/ No one is there"https://youtu.be/2rd818Ae3J8?t=2m45s. A ironia em "Don't you love farce?" contrasta com a seriedade de "My fault, I fear": https://youtu.be/2rd818Ae3J8?t=3m14s.
Ela alterna entre as cores mais leves e as mais pesadas de sua extensa palheta de expressões até chegar à última estrofe (lembro que Sondheim, em aula, enfatizou a importância do jogo de cores vocais e a ironia nesta canção), que ela começa leve, com a pergunta irônica: "Isn't it rich?": https://youtu.be/2rd818Ae3J8?t=4m31s, até chegar o trêmulo, efeito que sempre indica uma intensificação no sentimento, na palavra my da frase "Loosing my timing this late in my career": https://youtu.be/2rd818Ae3J8?t=4m44s
Ela fica dez segundos no trêmulo e ainda faz um crescendo! Ela, que nunca teve uma aula de canto. Todavia, mais do que uma proeza vocal, ouve-se aí o drama desta situação amorosa.
Em estúdio, ela vai para o agudo em "career", porém me parece mais apropriado o mergulho no grave. Ao vivo, o ataque mais forte em "Where are the clowns" impressiona mais do que em estúdio e contrasta com os últimos instantes de ironia, antecedidos por um ritardando: "Well, maybe next here": https://youtu.be/2rd818Ae3J8?t=5m32s.
É o momento da devastadora coda que Vaughan criou a partir dessas palavras, de que "talvez" (isto é, com certeza) os palhaços estejam perto daqui. 
Essa canção já atraiu atores sem voz, capazes (com sorte) de apenas reiterar as linhas sem nada acrescentar. Tinha que ser um grande intérprete do jazz para transformar a canção ritmicamente e melodicamente. Stravinsky, em razão da Segunda Guerra Mundial, foi viver nos Estados Unidos. Segundo Robert Craft, maestro que foi por bastante tempo seu assistente, o compositor russo achava que a grande música dos EUA não estava na Broadway ou nos musicais, e sim no jazz e nas missas gospel, isto é, na música dos negros.
Vaughan, como todos sabem, foi uma das maiores representantes do jazz vocal. Não obstante sua grandeza e as décadas de carreira (ela começou nos anos 1940), ela chegou a ficar sem gravadora em certo momento nos anos 1970, com todas suas três oitavas relegadas pelo pessoal do rock e da discoteca. Nessa época, porém, ela conseguiu fazer algumas gravações muito interessantes de canções que não eram originalmente do domínio jazzístico, enquanto outros cantores de sua geração declinavam. Vejam "A house is not a home", de Burt Bacharach: https://www.youtube.com/watch?v=vDtQzuqtrtg. Ou "Imagine", do disco "A time in my life", em que canta Marvin Gaye, Carly Simon, Michel Legrand e Bob Dylan: https://www.youtube.com/watch?v=I86x1e2oqXM.
Nesses momentos, a cantora, que compunha também, fazia das canções alheias criações próprias, senhora da liberdade que a linguagem do jazz confere aos intérpretes, uma linguagem criada por um povo que foi escravizado. Como escreveu Charles Rech em Subversive sounds: Race and the birth of jazz in New Orleans"A característica africana que mais pessoas associam com o o jazz é a improvisação. Ela confere ao músico um senso de liberdade indisponível na tradição clássica, e essa razão bastava para ela ter implicações políticas para os afro-americanos."

Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros
Dia 19: Wolf e Mörike imaginando a ilha
Dia 20: A loucura, Schumann e Andersen
Dia 21: Tiganá Santana e a memória negra
Dia 22: A boca seca da revolução: Miguel Poveda e Narcís Comadira
Dia 23: Encontrar o dia novo, Villa-Lobos e Ferreira Gullar
Dia 24: Bosco e Blanc vs. racismo e censura

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