A questão é parte de um problema bem mais vasto, que inclui o estreitamento do próprio jornalismo, que vem reagindo com uma estratégia, a meu ver suicida, de dumbing down.
No tocante à literatura, outra questão é a da circulação dos livros. Com as grandes redes destruindo as livrarias menores (em tamanho, não em qualidade), à falta de uma lei do livro, a tendência é a sobrevivência apenas de alguns livros que se encaixam no formato do best seller.
Em relação a livros universitários, proliferam os manuais para estudantes com analfabetismo funcional, que são boa parte do público universitário de hoje; na literatura, alguns poucos títulos de certos autores, alguns com qualidade. Essa concentração não é sustentável e sufoca a literatura (o mesmo ocorre em relação aos livros técnicos), que só poderá aparecer segundo determinadas modas do momento, segundo um regime de celebridades, seja de autores que se comportam publicamente como tais, seja de, por exemplo, coletâneas selecionadas por gente famosa fora da literatura, que não logram apresentar nenhum critério de seleção, nenhum pensamento sobre suas escolhas e até escolhem, aparentemente sem saber, autores que não existem em carne e osso.
Vejo escritores jovens, ou não tanto, querendo "reagir" a isso simplesmente entrando no jogo, tentando entrar na lógica das celebridades (fazendo anúncio de material esportivo, por exemplo), mas com uma "pose" crítica. Vejo como sinal inquietante desse estreitamento crítico, ou até de reflexão, que se considerem importantes textos que não passam de celebrações superficiais de que os livros estão sendo editados e estão à venda, e talvez, daqui a quatro décadas, poderão estar em exposição em algum museu.
O caráter superficial dessas manifestações celebratórias decorre de não ver os problemas sociais relativos ao público leitor, à circulação dos livros, e até mesmo à edição.
Em relação à circulação, há o problema da venda. Na semana passada, li alguns textos sobre a rede FNAC, que anunciou e depois desmentiu que deixaria o Brasil. Quero destacar dois editores, um do Brasil, outro de Portugal. A ameaça que ronda a Fnac é a da Amazon e seus descontos, que tem usado contra outras redes, que estão em crise (como a Saraiva), as mesmas armas que elas usaram contra as livrarias menores.
Haroldo Ceravolo, um dos editores da Alameda, com muita propriedade iniciou o artigo "Crise nas livrarias: Insistindo no erro até encontrar o fracasso", publicado em 2 de março no Publishnews, tratando do jornalismo para depois falar das livrarias Cultura e Fnac. Ele bem sabe das relações entre esses dois exercícios públicos da palavra.
A maior parte do texto é dedicada à Livraria Cultura e aos erros estratégicos que a fizeram entrar em crise. Ele a diferencia da Fnac, que há muito havia se entregue à lógica do best seller, que não é sustentável nem para a literatura (pois aniquila a diversidade) nem, ao que parece, para os negócios:
Ainda não falei sobre a Fnac, talvez porque seja muito difícil pensar a Fnac hoje como uma livraria. A livraria era apenas um puxadinho num negócio de venda de aparelhos eletrônicos a preços altos e qualidade média. Como livraria, que é o que nos interessa, a Fnac sequer era um negócio: os livros estavam lá talvez por tradição, talvez porque o modelo foi pensado ou adaptado unindo as duas pontas. Mesmo as iniciativas culturais, como o prêmio Fnac-Maison de France, foram escasseando. Assim, a Fnac há muito tempo não era um local de venda a sério de livros.As condições impostas pelas grandes redes (centralização das compras, os prazos para pagamento, a venda de espaços de exposição etc.) em geral cerceiam a circulação dos livros das editoras menores, como a própria Alameda, que possui títulos excelentes, que já citei mais de uma vez. Tal política afasta o público leitor, por isso é uma estratégia suicida, assim como o dumbing down dos jornais.
Não vou para a Fnac e cada vez menos visito a Cultura; lembro que desejava comprar um livro da Revan, Voz humana: a defesa perante os tribunais da república, de Fernando Augusto Fernandes. Nessa livraria, informaram-me que estava esgotado. Adquiri-o depois na Primavera Literária, no estande da Revan, que me disse que não só o livro estava em catálogo, como a Cultura simplesmente evitava comprar os livros da editora.
Experiências semelhantes são contadas do outro lado do Atlântico. Afinal, trata-se de um processo global do capitalismo com suas fusões e monopólios.
Recebi semana passada o número 10 da Cão Celeste, de dezembro de 2016, publicada pela editora portuguesa Averno. Para quem não é do campo da literatura, informo que ela é uma das principais revistas literárias da língua portuguesa, responsável pelo Prêmio Diógenes de poesia (vejam seu sucinto blogue: http://ocaoceleste.blogspot.com.br/).
Tenho um artigo nesse número, mas os outros artigos e poemas, e também desenhos (como o da capa, de Daniela Gomes), são excelentes. Mais abaixo, podem ver o sumário, que o blogue não traz.
Um dos editores, o poeta e crítico Manuel de Freitas, conta em "as coordenadas líricas" sua experiência com a Fnac. Anos atrás, ele comprava música barroca e também literatura na loja, que tinha uma "oferta inaudita" de bens culturais. No entanto...
[...] a Fnac, que depressa se tornou vigorosa e tentacular, asfixiou todas as livrarias e lojas de discos que havia à sua volta. Praticado o extermínio, que foi extremamente eficaz, a Fnac logo se furtou à sua pretensa vocação cultural, transformando-se numa cadeia de computadores, aparelhagens, utensílios tecnológicos de todo gênero. Admito até, e por experiência própria, que a Fnac seja bastante competente nessa área.Há algumas poucas diferenças em relação ao Brasil. O sucesso do extermínio de lojas menores variou de acordo com o local: no Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca (um bairro, aliás, pouco amigo de livrarias) isso aconteceu. Em outras lojas, não sei: acho que a loja da Paulista não conseguiu ter a mesma força. A competência das seções de informática e de outros produtos tecnológicos, no entanto, difere em Portugal, pois no Brasil elas são como Ceravolo diz: preço alto e qualidade média.
O dumbing down da rede aconteceu de forma bem parecida no Brasil. Manuel de Freitas, em seu texto, conta que os livros eram devolvidos pela Fnac com avarias, com adesivos que não se desgrudavam, ou seja, voltavam "em estado de lixo". O que o levou a não deixar mais os livros nessa rede. O público de literatura, pelo menos em Lisboa, vai para outros lugares, como a Paralelo W, a Letra Livre (que vende para o Brasil), a Ler Devagar...
O resultado foi a descoberta de que a Averno não precisava da Fnac para distribuir seus livros.
Ceravolo afirma, no seu texto, que os pequenos editores precisam encontrar outros meios para a circulação. Creio que ele está correto, e que as editoras pequenas, no Brasil, devem procurar saídas criativas, como a Averno tem feito.
A esse respeito, aproveito e lembro que, nos dias 24 e 25 de março, ocorrerá uma feira de livros de poesia, "Desvairada", organizada por Marília Garcia, Fabiano Calixto, Leonardo Gandolfi e Tiago Marchesano, com 24 editoras. Vejam aqui: https://www.facebook.com/events/155136481644008. Certamente será um evento muito criativo, pois incluirá atividades culturais.
Para o Brasil (conheço pouco a situação portuguesa), imagino que essas saídas têm que incluir a educação, tendo em vista as furiosas políticas de iletramento implementadas ou projetadas pelos diversos níveis do Estado brasileiro, o que inclui os variados ataques à docência.
As escolas e as bibliotecas, escolares ou não, com programas de leituras e outras iniciativas, são uma dimensão importantíssima da circulação do livro. Não por acaso, ambas (escolas e bibliotecas) continuam sob ataque no Brasil. Em São Paulo, no dia de aniversário da cidade, 25 de janeiro de 2017, foi programado pela sociedade civil (especialmente as associações dos bibliotecários) um Abraço do Centro Cultural São Paulo, ameaçado de "desestatização" pelo prefeito João Doria (analisei, por sinal, alguns dos enormes erros de direito administrativo do prefeito em um texto de fevereiro).
Estive no Abraço. Acima, uma das fotos que tirei na ocasião, destacando a faixa do Sinbiesp, que era umas entidades organizadoras. O CRB também estava em peso. Abaixo, alguma das faixas, que foram deixadas no chão durante os discursos.
Uma das fotos que vi dos protestos contra Trump nos Estados Unidos neste ano mostrava uma bibliotecária com um cartaz afirmando que a a situação estava tão grave que até os bibliotecários tinham que ir às ruas protestar. Achei curiosa a ironia em relação à categoria, como se ela fosse a última de todas para mobilizar-se... No Brasil, isso não é verdade.
As bibliotecas são importantíssimas para a circulação do livro, e fundamentais para o direito à literatura, como direito cultural. Haroldo Ceravolo lá estava. Também vi Marcelo Zelic e Maria Rita Kehl. Afora Kehl e Rodrigo Ciríaco, não vi, no entanto, mais nenhum escritor no Abraço. Provavelmente havia mais alguns, mas certamente eram poucos, como também não eram numerosos os participantes, embora houvesse muita gente dentro do Centro Cultural engajada em outras atividades. Ele é um sucesso de público e de atividades culturais, e exatamente por isso deve estar sob ameaça.
Uma das formas superficiais de tratar da circulação dos livros consiste em ignorar as políticas de leituras e de bibliotecas. Seria importante que mais escritores se engajassem nisso, tanto nos seus textos quanto na sua ação. A ação pública também pode ser uma forma de circulação de literatura.
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