O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 16 de março de 2017

30 dias de canções: Bosco e Blanc vs. racismo e censura

30 dias de canções

Dia 24: Uma canção cujos compositores ainda deveriam trabalhar juntos

"O mestre-sala dos mares", de João Bosco e Aldir Blanc. Vi, neste mês, o próprio João Bosco a cantando com surpreendente divisões, acompanhado apenas com o seu próprio e inimitável violão: https://www.youtube.com/watch?v=l_sdVAgyiLk.
Esta dupla foi lançada por Elis Regina. Ele contou na apresentação que vi que ele foi beneficiado por Milton Nascimento. A gaúcha Elis havia lançado o conterrâneo de Bosco e estava curiosa por conhecer outros compositores mineiros. [Nota: Milton nasceu no Rio de Janeiro, mas foi criado em Minas]
Julio Maria, na biografia de Elis Nada será como antes, conta que ele foi apresentar suas canções. Ela escolheu "Bala com bala" e a incluiu no show "É Elis", entusiasmada: "Outro mineiro, meu Deus, que sorte a minha". Depois, lhe diria: "Nunca mais deixe de compor suas coisas estranhas".
A impressionante capacidade de observação do cotidiano por Aldir Blanc gerou clássicos como "De frente pro crime". Sua antena para o momento político deixou a genial "O bêbado e a equilibrista", o hino do movimento pela anistia.
Bosco e Blanc se separaram e fizeram diversas canções importantes com outros parceiros. Pensem no poema de relacionamento na canção "Catavento e Girassol", de Aldir Blanc e Guinga, aqui com o Guinga ao violão e Leila Pinheiro cantando: https://www.youtube.com/watch?v=_ShiqGQp8hQ.
De Bosco, posso lembrar a canção "Sinhá", crônica do escravismo feita com Chico Buarque: https://www.youtube.com/watch?v=3w3615iDte4.
Eles deveriam voltar a compor em parceria? Realmente não sei, embora os tenha escolhido para este dia do desafio. Certamente um reencontro se daria em bases muito diferentes, pois eles mudaram, os tempos também. Uma eventual nova canção provavelmente seria muito criativa, dado que eles continuam senhores de suas possibilidades, e frustraria os nostálgicos que esperariam o mesmo dos anos 1970. O mesmo, hoje, seria menos, e creio que eles fariam o outro; só o outro justificaria uma volta.
Nos anos 1970, enquanto estiveram juntos, entre as novidades que eram e traziam, combinadas e multiplicadas um pelo outro, estava "O mestre-sala dos mares", que tratava de um fato histórico incômodo para a ditadura militar, racista, que dominava o país. Cito, do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", o capítulo "Perseguição à população e ao movimento negros":
Um dos casos célebres foi o do samba “O Mestre Sala dos mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, que cantava o líder negro da Revolta da Chibata, João Cândido. O samba foi gravado por Elis Regina em 1974, com a letra alterada por força da censura. 
O marinheiro João Cândido liderou essa revolta contra os castigos corporais, típicos dos que se usavam contra os escravos (como a chibata), que a Marinha adotava contra os marinheiros. A revolta ocorreu em novembro de 1910. A Marinha desrespeitou a anistia votada pelo Congresso Nacional, assassinou vários dos rebelados. João Cândido morreu no ostracismo, expulso das Forças Armadas. 
Ele ficou conhecido como “Almirante Negro” pelo povo. João Bosco e Aldir Blanc, no entanto, foram impedidos de chamá-lo assim pela censura – tornou-se um “navegante negro” – e a referência à tortura contra os negros foi silenciada: o verso, originalmente “rubras cascatas jorravam das costas dos negros”, teve que ser alterado para “rubras cascatas jorravam das costas dos santos”. Lembra Aldir Blanc que ele e Bosco foram acusados pelos censores de fazer “apologia ao negro”. 
O trecho "Rubras cascatas/ Jorravam das costas dos negros/ Pelas pontas das chibatas" foi suavizado: "Rubras cascatas/ Jorravam das costas dos santos/ Entre cantos e chibatas". Outro dos trechos mudados: "que a exemplo do marinheiro gritava não" tornou-se "que a exemplo do feiticeiro gritava então". A revolta virou um feitiço alegre.
A mudança de "Almirante negro" para "Navegante negro" também era crucial. Não sei, aliás, quantos negros foram Almirantes no Brasil. Com a legitimidade de ter tido seu título concedido pelo povo, provavelmente só João Cândido, que ainda teve essa legitimidade redobrada pelo fato de a concessão ter sido dada por uma revolta em prol da dignidade humana.
O princípio da dignidade era sistematicamente violado pela Marinha. A partir de 1964, com as Forças Armadas tomando o poder, essa violação tornou-se método de governo. Para as artes, isso significou, em muitos casos, a censura, como a desta canção, que teve a sorte de ser liberada depois de sofrer as modificações.
Não entendo por que João Bosco, este patrimônio musical do país, que só com seu formidável violão e seu desconcertante método vocal (ele já não é mais nenhum jovenzinho, mas no fim da apresentação que eu vi, pediram "Papel machê", parceria dele com Capinan, e ele a cantou com todos os agudos no lugar), não percebo por que este impressionante músico permanece apresentando a letra aprovada pela censura. Ele gosta mais assim? Não sei a razão.
Em 1981, Elis Regina, longe da censura brasileira, cantou no México a letra original, em homenagem à "figura de um bravo marinheiro", em vez do "feiticeiro" imposto pela censura: https://youtu.be/2HPCf-35xOQ?t=19m50s.
Vejam como, em gesto, a cantora saúda as "pedras pisadas do cais", o "monumento" deixado para o Almirante Negro. 
Pisadas, não podiam queixar-se. Até virarem canção.

P.S.: Depois que escrevi isto, lembrei do verbete de Sérgio Alcides sobre Aldir Blanc no livro "Folha Explica" Música popular brasileira hoje, de 2001. Ele destaca a grande qualidade poética de Blanc e dois fatores presentes nesta canção: a memória e o não oficialismo: "as histórias de Blanc nos ajudam a criar uma memória coletiva brasileira e livre. E o melhor: sem a menor sombra de oficialismo nacional."


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros
Dia 19: Wolf e Mörike imaginando a ilha
Dia 20: A loucura, Schumann e Andersen
Dia 21: Tiganá Santana e a memória negra
Dia 22: A boca seca da revolução: Miguel Poveda e Narcís Comadira
Dia 23: Encontrar o dia novo, Villa-Lobos e Ferreira Gullar

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