O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 20 de março de 2017

30 dias de canções: Shajarian, o grito contra as chamas, o cantor contra o Estado

30 dias de canções

Dia 28: Uma canção de um artista cuja voz você ama

"Faryad" ("O grito"), de Mohammad Reza Shajarian, sobre poema de Akhavan Saless. Shajarian gravou-a em 2003, porém ignoro se ela é mais antiga.
Para mim, Mohammad Reza Shajarian é o maior cantor do mundo. Tinha, portanto, de escolher alguma música dele, embora eu não entenda nada de sua língua. Vejam-no aqui com seu filho, Homayoun Shajarian, que possui um timbre idêntico ao do pai: https://www.youtube.com/watch?v=Jxt8RuZWRaA.
Neste caso, ele não escolheu um poema da era clássica, mas um poeta moderno, uma dos pioneiros da poesia moderna persa, que morreu em 1990. 
Olhando as versões em francês e em inglês do disco "Faryad: Masters of Persian Music", faço esta versão fuleira:

Minha casa está em chamas. Eles queimam furiosamente o que eu construí, cada folha que plantei, enquanto corro de um ponto a outro em vão e grito, grito.
Do alto de seu teto, meus inimigos se regozijam e gargalham com o espetáculo da destruição e, testemunha desta injustiça, grito, grito.
Com minhas mãos cobertas de bolhas, apago uma chama porém outra se acende. Meus vizinhos despertarão de seu sono profundo para me oferecer uma mão amiga?
E eu grito, grito.

Sua voz é muito impressionante pela capacidade de sustentar frases longas e pela agilidade, além da beleza do timbre. No vídeo, acima, ele tinha mais de sessenta anos (nasceu em 1940). Este outro, em Nova Iorque, foi filmado em 2013 e é sensacional: https://www.youtube.com/watch?v=GnI4R9Bdl3g.
Mohammad Reza Shajarian interessou-se pelas canções clássicas persas apesar de, em seu ambiente familiar islâmico, elas serem encaradas como algo proibido: http://www.npr.org/2010/09/27/130047062/mohammad-reza-shajarian-protest-through-poetry.
Sua filha, Mojgan Shajarian, cantou em seu conjunto, o que é muito mal visto no Irã: uma voz de mulher poderia excitar os homens... Aí ele também desafia interditos.
Como desafiou em 2009, depois dos protestos violentamente reprimidos contra a reeleição de Ahmadinejad, ele juntou sua voz à do povo. O político chamou as multidões de cinza e lama. 
Shajarian declarou que a voz dele era da cinza e da lama, e seguiria sempre assim. E lançou uma música de protesto, "Língua do fogo". Em consequência, suas canções foram proibidas e ele não pode mais apresentar-se no Irã
Foi filmado um documentário, Voice of Dust and Ash, que nunca vi, sobre o incidente. O trailer tem narração e legenda em inglês.
Sobre o banimento, cito a matéria de Shima Sharabi, "Mohammad Reza shajarian: Iran's Most Beloved Banned Singer", publicada dia 18 de janeiro de 2017 no Iran Wire:
It has now been seven years since the Islamic Republic of Iran Broadcasting (IRIB) first banned Shajarian’s voice, photograph and even his name from being broadcast on state-run radio and television. The ban was a punishment for his support for the “wrong” side in 2009’s disputed presidential election. When millions of Iranian people went out on the streets to protest against the official results of the election — which gave Mahmoud Ahmadinejad a second term in office — Shajarian joined them. He released a song entitled Language of Fire to support protesters, posting it online. “Lay down your gun,” the song begins. “I hate this weird shedding of blood. The gun in your hand speaks the language of fire and iron.”
A matéria também conta que, no fim do ano passado, ele descobriu que está com um câncer. As últimas notícias que vi eram a de que estava reagindo bem ao tratamento, felizmente.
Coincidentemente, escrevo esta pequena nota no ano novo persa: . Esperemos que não se repita por mais um ano, a vergonha, imposta pela teocracia, de a maior voz do Irã não poder apresentar-se em seu próprio país.
E que ele cante, cante.


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