O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 4 de março de 2017

30 dias de canções: Wolf e Mörike imaginando a ilha

30 dias de canções

Dia 19: Uma canção que quer ser a própria vida 

"Gesang Weylas" (O canto de Weyla), de Hugo Wolf sobre poema de Eduard Mörike. O poema é de 1831. A conhecida canção foi composta em 1888.
Aqui, uma gravação ao vivo de dois maiores músicos do século passado, o barítono Dietrich Fischer-Dieskau e o pianista Sviatoslav Richter: https://www.youtube.com/watch?v=j78AWwfk7eQ.
Para ouvi-la em voz feminina, nada menos do que a impressionante voz do mezzo-soprano Christa Ludwig acompanhada do ilustre Gerald Moore: https://www.youtube.com/watch?v=IJR2aYWZuek.
Para quem achar, o disco de Anne Sofie von Otter com Ralf Gothoni todo dedicado a canções de Wolf e Mahler, de 1987, traz uma interpretação impressionante.
Tento uma tradução pobre e literal do canto de Weyla; o original, em metro iâmbico, é rimado:

Tu és Orplid, minha terra!
Longe brilhas;
Tua ensolarada costa torna em vapor
A névoa marinha, e assim a face dos deuses se umedece.

Antigas águas se elevam
rejuvenescidas em torno de sua cintura, filha!
Diante de tua divindade inclinam-se
Os reis, eles são teus criados.

Não se trata de mitologia grega, nórdica ou de qualquer outro lugar: Orplid e Weyla só existiam na imaginação de Mörike e colegas no seu tempo de estudantes.
No final, o poema parece fazer uma alusão a Isaías, capítulo 49, versículo 23; fiquei em dúvida em como traduzir "Wärter" porque as traduções em português que vi usam "aio", mas também a palavra mais específica "tutores". "Criados" (vassalos e servos são designados por outras palavras) foi a solução que achei que poderia sugerir a ideia de subordinação sem trazer a de educação, que seria estranha para uma ilha.
No livro de Eric Sams, The songs of Hugo Wolf, leio que o compositor imaginou a deusa com uma harpa cantando sentada ao luar. O piano, de fato, imita os arpejos daquele instrumento. O tom, diz Sams, é quase religioso: assistimos a uma cerimônia mística enquanto ela ocorre no "mundo imaginário do poeta". Creio que não é necessário entender as palavras para sentir este clima; por isso, Wolf talvez tenha tido mais sucesso em criar um mundo próprio do que Mörike.
Uma vez que se trata de Hugo Wolf, a voz adere de forma imaginativa ao texto; talvez ela o reescreva. Em "Uralte Wasser" (antigas águas) vai para o grave, a própria frase do "Vor deiner Gottheit" (diante de tua divindade) inclina-se, até o forte agudo "Könige", os reis, que acabam por se revelar "Wärter", criados, e a voz vai para o grave numa dinâmica mais fraca.
Não entendo boa parte do que diz Dietrich Fischer-Dieskau nesta masterclass em que ele trabalha este Lied com a soprano Hanna-Elisabeth Müller, mas é plenamente inteligível o cuidado com os detalhes, que é o que faz diferença neste repertório.
Não sei se a que atribuir a presença de deuses, mitologias antigas ou pessoais, na poesia alemã da primeira metade do século XIX. As tentativas revolucionárias nos Estados alemães nessa época fracassaram, o que levou Heine àquela observação em Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha, de que, se os franceses executaram seu rei, os alemães ao menos mataram deus... Com Kant e a Crítica à Razão Pura.
Quando o Estado se unificou, o fez sob um regime monárquico e conservador. Não sei se seria legítimo ler o que Wagner, tão admirado por Wolf, fez sob esse prisma, porém é significativo que O anel do Nibelungo, aquela saga dos deuses germânicos, fosse finalmente encenada diante de reis e nobres, e que seu compositor fosse um ex-revolucionário.
Talvez somente em uma mitologia (pessoalmente inventada, ainda por cima) Mörike se visse autorizado a imaginar reis como criados... E de uma deusa, note-se, não de uma operária.
Estamos longe de Büchner e de um universo sem deuses e com "nós, os pobres" ("Wie, die arme Leute") como protagonistas, o que ocorre em Woyzeck (por algum tempo lido como Wozzeck, dado o estado do manuscrito). Para isso, o século XX. E Alban Berg.
Woyzeck, por sinal, morre afogado, acreditando estar banhado de sangue. Vítima de outra Orplid: a luta de classes. Mas esta é a própria vida, e não uma ilha imaginária.


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros

Nenhum comentário:

Postar um comentário