O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 30 de abril de 2011

Desarquivando o Brasil VI: o governo Geisel contra o direito internacional dos direitos humanos


Vou falar neste dia trinta, em Porto Alegre, sobre alguns documentos que eram reservados ou secretos, guardados no acervo do DEOPS/SP, hoje no Arquivo Público do Estado de São Paulo, e no Arquivo Nacional. Eles retratam o isolacionismo contra o direito internacional dos direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil.
Um dos tópicos do meu trabalho refere-se ao Pacote de Abril de 1977, medida tomada durante o governo Geisel: como o Congresso Nacional rejeitou a reforma do Judiciário, que foi proposta sem restaurar o habeas corpus para os crimes políticos, o governo fechou-o (sei, porém, que há juristas do olvido que afirmam que o Poder legislativo podia negociar livremente com o Executivo nessa época) e impôs o Pacote de Abril. Aproveitou o ensejo para alterar casuisticamente o direito eleitoral de forma a distorcer a vontade popular (sei que há nostálgicos armados que propugnam que o período era democrático) que a ARENA mantivesse a maioria no Congresso.
O Ministro das Relações Exteriores, Antônio Azeredo da Silveira, na reunião do Conselho de Segurança Nacional em que o "Pacote" foi decidido, preocupou-se com a imagem internacional do Brasil:
Eu tenho impressão que o importante, para a opinião pública brasileira e também para a opinião pública internacional, é que se enfatize, justamente, a constitucionalidade dessas medidas. Eu creio que se deve também ter em conta a necessidade de neutralizar as ações externas. E, portanto, a ênfase na constitucionalidade e na legalidade é importante. Do mesmo modo, será importante, se possível, indicar que a fase de exceção, é uma fase transitória. Isso também tem sua importância no terreno internacional. [...] Nós não temos que explicar aos outros países aquilo que fazemos no âmbito interno. Mas aquilo que fizermos, evidentemente, no mundo em que vivemos, onde o Brasil já tem um peso muito específico, logicamente, terá reflexos no exterior.

Eu comento no trabalho:
A significativa e contraditória declaração mostra a frágil atitude defensiva do governo brasileiro: o assunto seria de “âmbito interno”, mas tem “reflexos no exterior”; as medidas são de “exceção”, porém seriam constitucionais e legais. A estratégia deceptiva a ser empregada na sociedade internacional seria de fazer crer que o fechamento do Congresso era medida própria de um Estado de Direito.
Geisel preocupou-se com a opinião internacional e afirmou que o recesso não deveria ser longo para que o Congresso não se sentisse punido, “[...] como também para evitar maiores repercussões, inclusive em outras áreas e nas áreas externas.”
Sérgio Danese elenca a má imagem externa do governo ditatorial brasileiro como um dos fatores negativos para a diplomacia presidencial de Castello Branco até Médici. Pode-se verificar a permanência dessa imagem durante o mandato de Geisel. Em março de 1977, a leitura, no Congresso dos EUA, de relatório sobre as violações dos direitos humanos no Brasil levou Geisel a denunciar o acordo militar com os EUA.
A preocupação com a opinião internacional foi uma das razões pelas quais não baixou um novo Ato Institucional, o que teria sido ilegal, mesmo segundo o Presidente: “Ora, se eu tenho um processo legal para resolver a questão, porque vou apelar para um processo ilegal.” A adesão cínica à legalidade é patente nessa reunião do Conselho, que aprovou unanimemente o fechamento do Congresso.
A conjuntura política não é mais a mesma, porém isso não impede a verificação de continuidades. Esse isolacionismo permanece, como se viu na histérica reação do governo federal, da base aliada e da oposição (todos unidos contra o sistema interamericano e irmanados no desenvolvimentismo predatório) contra a medida cautelar tomada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos para a suspensão do licenciamento de Belo Monte. No caso, além de normas da OEA e da ONU, o Estado brasileiro logrou violar também uma convenção da Organização Internacional do Trabalho. Eis a vigorosa inserção internacional do Brasil!

domingo, 24 de abril de 2011

Sexualidades que se desviam da direita: Bolsonaro e a Medicina Legal

É assunto velho? Em certo sentido não, pois continua atual. Em outro sentido sim, pois representa sentimentos velhos na sociedade brasileira. Quis escrever a respeito do problema por causa dos racistas que saíram do armário ultimamente. Um representante do Rio de Janeiro na Cãmara dos Deputados, Jair Bolsonaro, do PP, respondeu a uma cantora negra, Preta Gil, que os filhos dele não namorariam uma mulher negra porque não foram criados em um ambiente de promiscuidade como seria o dela. Depois, ele afirmou que se confundiu, achando que ela tinha perguntando se os filhos teriam relações homossexuais.
A alegação do deputado federal, historicamente associado à direita, à tortura e à ditadura militar, é curiosa, pois Preta Gil não namora mulheres [ver nota abaixo] e ele se referiu explicitamente à cantora.
Houve os que suspeitaram que o político do Estado do Rio de Janeiro teria afirmado que se confundiu porque o preconceito racial no Brasil é crime, porém não o contra homossexuais. Não posso garantir isso, claro. O que posso observar é que os dois preconceitos foram ensinados pela mesma "ciência" médico-legal, reproduzida academicamente no Brasil em duas faculdades tradicionais, a de Medicina e a de Direito.
O deputado diz que teria sido absurdo que ele tivesse querido afirmar o que efetivamente disse (que o relacionamento entre negra e branco é promíscuo), porém nada há de mais coerente com aquela "ciência", para a qual o relacionamento entre pessoas de raças diferentes é um desvio sexual.
Estudei Direito. Lembro de ir à biblioteca ler sobre Medicina Legal (o que fiz sozinho, pois minha turma não teve professor da disciplina) e não me interessar muito. Mas sempre me lembrei de que a literatura disponível reproduzia concepções racistas e homofóbicas.
Tomo como exemplo o livro de Medicina Legal de Hélio Gomes da edição do ano em que me formei, 1992. Entre os "desvios do sexo", estão a cromoinversão e a etnoinversão: a preferência por pessoas de cor e de raça diferentes, respectivamente. Como "perversão sexual", está a homossexualidade.

Há casais cromo-invertidos, casados há muitos anos, com filhos de epiderme diversa assim como o tipo de cabelo, analisado em sua qualidade. Esses filhos podem se constituir numa constante preocupação, pois os pais temem que a diferença de cor dos filhos tenha conseqüências graves no futuro.

O autor afirma que não deve existir barreira de cor entre os que se amam, mas que também é impossível impedir a existência do "preconceito de cor" (na verdade, ele estava adiante dos jornalistas de hoje que negam a existência do racismo no Brasil). E acrescenta: "Para alguns psicólogos, o amor de uma mulher branca por negro e vice-versa pode representar uma forma discreta de tendência masoquista."
Como é um livro científico, a história bíblica de Sodoma e Gomorra é citada, e não pelas fontes originais, mas por Raul de Polillo...
A parte sobre homossexualidade envolve a castração dos testículos como um dos métodos para "cura" entre os homens, mas também que "O lesbianismo na jovem pode ser a educação para o erotismo requintado." Aprendemos que as principais causas da "anomalia" são

Perturbações e deficiências mentais, histerismo, esquizofrenia, senilidade, epilepsia, personalidade psicopática, debilidade mental, etc. A anomalia sexual é uma conseqüência, um sintoma das perturbações psíquicas.
Não há nada de novo nisso na medicina legal brasileira. Lembro de Nina Rodrigues sustentando que a mulata era lúbrica e, portanto, depravada e anormal, no livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil, cuja primeira edição é de 1894:

O desequilíbrio entre as faculdades intellectuaes e as affectivas dos degenerados, o desenvolvimento exagerado de umas em detrimento das outras teem perfeito símile nesta melhoria da intelligencia dos mestiços com uma imperfeição tão sensível das qualidades moraes, affectivas, que delles exigia a civilisação que lhes
foi imposta. E esta observação estreita ainda mais as analogias que descubro entre o estado mental dos degenerados superiores e certas manifestações espirituaes dos mestiços. Nestes casos como que se revela em toda a sua plenitude, em toda a sua brutalidade, o conflicto que se trava entre qualidades psychicas, entre condições physicas e physiologicas muito desiguaes de duas raças tão dessemelhantes, e que a transmissão hereditaria fundiu em producto mestiço resultante da união ou cruzamento dellas.
A sensualidade do negro pode attingir então ás raias quasi das perversões seuaes morbidas.
A excitação genesica da classica mulata brazileira não póde deixar de ser considerada um typo anormal. [p. 153]

Para Nina Rodrigues, as "raças inferiores" (índios, negros, mestiços) deveriam ter mais cedo a imputabilidade penal, pois sua maturidade orgânica ocorreria mais cedo (ele ressalta que fruto que amadurece logo se desenvolve menos...) e, quanto mais cedo a justiça agir, melhor.
A associação de tanto a miscigenação quanto a homossexualidade com a sexualidade desviante ocorre em um quadro que atribui um caráter propenso ao crime dos que se engajam nessas atividades.
Nos EUA, já se fala que o gay é o novo negro - no sentido de ser o grupo discriminado que está agora a conseguir avançar na luta pelos direitos civis. No Brasil, contudo, o próprio ensino jurídico contrapunha-se a esses direitos, pregando que esses dois grupos não poderiam "objetivamente", "cientificamente", aspirar à igualdade na partilha do comum. A luta deve-se dar também nesse campo, propiciando novas partilhas, mais igualitárias.

Nota: Errei; Preta Gil declarou que é bissexual assumida.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Terra sem lei II: A Convenção 169 da OIT e as audiências públicas

Escrevi nesta semana um pouco sobre Belo Monte, por causa da decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para a suspensão do processo de licenciamento da usina. E afirmei que, se no século XVI foi dito que os índios não tinham "Fé, nem Lei, nem Rei", hoje se deve denunciar que é o Estado brasileiro que não tem lei, violando tanto o direito nacional quanto o internacional naquela processo de licenciamento.
Lembrei depois de outro poema meio grotesco de Cinco lugares da fúria que possui este trecho:

Eles andam nus como o ovo após a casca.
Não estimam de cobrir sua vergonha. Não lavram nem criam. A estrela que está por cima de toda Cruz é pequena. Entre uma rede e outra, fazem fogueiras.
Acerca das estrelas, tenho trabalhado tudo o que posso, apesar de uma perna que tenho muito mal, com uma chaga tão grande que parece humana. Mando-lhe como estão situadas as estrelas. Mas o grau ninguém pode saber, que de uma coçadura me fez uma chaga maior do que a minha mão.
Estão nus, não têm fé, lei ou rei. Precisamos quebrar a casca deles. Quando os ferirmos, terão a lei em seu corpo.

Em seu corpo, a inscrição de uma terra sem lei. Mas devo apontar o que, juridicamente, está em jogo.
A Comissão deferiu uma medida cautelar, provisória, que ocorre quando há risco de danos sérios, irreparáveis, aos direitos humanos - que é exatamente o que pode ocorrer em Belo Monte; não se trata de decisão definitiva, e o Estado pode contestá-la.
O governo brasileiro reagiu agressivamente, questionando a autoridade da Comissão - como um país sem lei. Possivelmente, a retirada da candidatura de Paulo Vanucchi à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no dia 7 de abril, ocorreu como retaliação do governo brasileiro - o Centro para a Justiça e o Direito Internacional também interpretou o gesto como uma tentativa de questionar a legitimidade da Comissão.
Todavia, o governo acabou por pedir mais tempo para responder à OEA.
Resta a ver o que resultará do jogo diplomático.
Uma das normas internacionais incorporadas ao direito brasileiro que o Brasil estaria violando é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Questiona-se se as audiências públicas a respeito do projeto da usina, com a população interessada, foram realmente sérias e efetivas. Esse direito está previsto na Convenção (e no direito brasileiro, o que é esquecido pelos patriotas da devastação):

Artigo 6º
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, por meio de suas instituições representativas, sempre que se tenham em vista medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los diretamente;
b) criar meios pelos de poderem esses povos participar livremente, pelo menos na mesma proporção que os demais segmentos da população, em todos os níveis de tomada de decisões em instituições eletivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis por políticas e programas que lhes digam respeito;
c) criar condições para o pleno desenvolvimento de instituições e iniciativas desses povos e, quando for o caso, prover os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser feitas, de boa-fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo ou consentimento com as medidas propostas.

As audiências públicas não existem para que o povo tenha que dizer sim - autoridades que dizem que, de qualquer forma, o projeto será realizado, mostram apenas sua má-fé com isso. Sigo Rancière nisto: as audiências preparadas para intimidar o público e mantê-lo desinformado são a própria negação da política em nome da polícia, uma gestão do comum ilusoriamente neutra e técnica que mantenha a desigualdade na partilha.
As comunidades indígenas devem manifestar-se mesmo sobre terras que não ocupam diretamente? Sim. Qualquer pessoa com rudimentos de antropologia saberá que a terra, para o índio, não significa propriedade imóvel ou lote, e que o entorno das terras que ocupam diretamente integram esse meio em que se dá a vivência dessas comunidades. A Convenção o prevê:

Artigo 14
1. Dever-se-ão reconhecer aos povos indígenas e tribais os direitos de propriedade e posse da terra que ocupam tradicionalmente. Além disso, nos devidos casos, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito desses povos de utilizar terras que não sejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais tradicionalmente tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dispensada especial atenção à situação de povos nômades e de agricultores itinerantes.
2. Os governos deverão adotar as medidas que se fizerem necessárias para demarcar as terras tradicionalmente ocupadas por esses povos e garantir a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse.
3. Procedimentos adequados deverão ser instituídos, no âmbito do sistema jurídico
nacional, para dar solução a reivindicações de terras por esses povos.

Outra fonte jurídica importante é o princípio da não-remoção das comunidades indígenas, também previsto na Convenção:

Artigo 16
1. Resalvado o disposto nos parágrafos, a seguir, do presente artigo, os povos indígenas e tribais não deverão ser transladados das terras que ocupam.
2. Quando, excepcionalmente, a transladação e o reassentamento desses povos
forem considerados necessários, só poderão ser feitos com seu consentimento, dado livremente, e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter esse consentimento, a transladação e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos por lei nacional, inclusive consultas públicas, quando for o caso, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de ser efetivamente representados.
3. Sempre que possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram sua transladação e reassentamento.
4. Quando esse retorno não for possível, conforme decidido por acordo ou, na falta de acordo, mediante procedimento adequado, esses povos deverão receber, na medida do possível, terras cuja qualidade e situação jurídica sejam pelo menos iguais às das terras que ocupavam anteriormente, e lhes permitam atender a suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. Se esses povos preferirem receber indenização em dinheiro ou em bens, essa indenização deverá ser feita com as devidas garantias.
5. As pessoas transladadas e reassentadas deverão ser totalmente indenizadas por toda perda ou dano que tiverem sofrido em conseqüência do seu deslocamento.

O princípio não é absoluto; e a remoção pode ocorrer com autorização em lei, mas somente depois de audiências públicas, e o governo brasileiro parece não estar cumprindo essa exigência. Vejam este vídeo feito na Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados: http://www.youtube.com/watch?v=722cMGyeHFM
Segundo Kant, em À paz perpétua, o princípio da publicidade é garantia do direito público. Se o governo não quer mostrar o que fará, e as autoridades não querem esclarecer, isso não seria sinal de uma possível violação do direito, desta vez de proporções amazônicas?

terça-feira, 19 de abril de 2011

Terra sem lei: Belo Monte, OEA, índios e a fratura do arco-íris

Em um poema um tanto grotesco do Cinco lugares da fúria, que inseri neste blogue a propósito de outro racismo, escrevi este edificante diálogo:

- Meu filho ontem queimou um índio.
- Não é uma espécie protegida?
- Mas ele achava que era um mendigo.
- Meu filho ontem queimou um índio.
- Estudando História do Brasil?
- Juventude americanizada!

Já que os racistas estão abrindo a boca no Dia do Índio, queria rascunhar umas notas.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos outorgou, em primeiro de abril de 2011, uma medida cautelar contra o governo brasileiro a propósito da eventual usina hidrelétrica Belo Monte; trata-se do caso MC 382/10 - Comunidades Indígenas da Bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil:

A CIDH solicitou ao Governo Brasileiro que suspenda imediatamente o processo de licenciamento do projeto da UHE de Belo Monte e impeça a realização de qualquer obra material de execução até que sejam observadas as seguintes condições mínimas: (1) realizar processos de consulta, em cumprimento das obrigações internacionais do Brasil, no sentido de que a consulta seja prévia, livre, informativa, de boa fé, culturalmente adequada, e com o objetivo de chegar a um acordo, em relação a cada uma das comunidades indígenas afetadas, beneficiárias das presentes medidas cautelares; (2) garantir, previamente a realização dos citados processos de consulta, para que a consulta seja informativa, que as comunidades indígenas beneficiárias tenham acesso a um Estudo de Impacto Social e Ambiental do projeto, em um formato acessível, incluindo a tradução aos idiomas indígenas respectivos; (3) adotar medidas para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros dos povos indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingú, e para prevenir a disseminação de doenças e epidemias entre as comunidades indígenas beneficiárias das medidas cautelares como consequência da construção da hidroelétrica Belo Monte, tanto daquelas doenças derivadas do aumento populacional massivo na zona, como da exacerbação dos vetores de transmissão aquática de doenças como a malária.

Como se sabe, a medida causou uma reação furiosa do governo brasileiro. Em cinco de abril, o Ministério das Relações Exteriores divulgou a nota n. 142 afirmando que a decisão da Comissão é precipitada e injustificável. Afirmando ter seguido todas as exigências legais para a construção, adotou um discurso obviamente isolacionista no tocante à internacionalização dos direitos humanos:

O Governo brasileiro tomou conhecimento, com perplexidade, das medidas que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicita sejam adotadas para “garantir a vida e a integridade pessoal dos membros dos povos indígenas” supostamente ameaçados pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
O Governo brasileiro, sem minimizar a relevância do papel que desempenham os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, recorda que o caráter de tais sistemas é subsidiário ou complementar, razão pela qual sua atuação somente se legitima na hipótese de falha dos recursos de jurisdição interna.

A medida cautelar foi solicitada por organizações não governamentais, e o governo brasileiro havia sido notificado para informar a respeito (até o sítio do MRE registra isso), pelo que a perplexidade é estranha e pode soar à incompetência.
O que certamente soa à incompetência é o final da manifestação oficial, "sua atuação somente se legitima na hipótese de falha dos recursos de jurisdição interna". Isso certamente não é verdade no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, já que a simples inutilidade desses recursos já legitima a atuação da OEA - será que o governo desconhece a obra de Antônio Augusto Cançado Trindade? Ele, que explica muito bem essa questão do esgotamento dos recursos internos, foi presidente da Corte Interamericana e hoje está na Corte Internacional de Justiça. Provavelmente desconhece, já que ele foi professor no Itamaraty e consultor jurídico do MRE...
De qualquer forma, a desculpa oficial é ridícula, pois a alegação é descabida: em caso de medida cautelar, a Comissão pode agir sempre que houver riscos de danos irreparáveis, mesmo antes daqueles recursos internos. Transcrevo esta parte do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, caso alguém do governo tenha interesse no assunto:

Artigo 25. Medidas cautelares
1. Em situações de gravidade e urgência a Comissão poderá, por iniciativa própria ou a pedido da parte, solicitar que um Estado adote medidas cautelares para prevenir danos irreparáveis às pessoas ou ao objeto do processo relativo a uma petição ou caso pendente.
2. Em situações de gravidade e urgência a Comissão poderá, por iniciativa própria ou a pedido da parte, solicitar que um Estado adote medidas cautelares para prevenir danos irreparáveis a pessoas que se encontrem sob sua jurisdição, independentemente de qualquer petição ou caso pendente.
3. As medidas às quais se referem os incisos 1 e 2 anteriores poderão ser de natureza coletiva a fim de prevenir um dano irreparável às pessoas em virtude do seu vínculo com uma organização, grupo ou comunidade de pessoas determinadas or determináveis.
4. A Comissão considerará a gravidade e urgência da situação, seu contexto, e a iminência do dano em questão ao decidir sobre se corresponde solicitar a um Estado a adoção de medidas cautelares. A Comissão também levará em conta:
a. se a situação de risco foi denunciada perante as autoridades competentes ou os motivos pelos quais isto não pode ser feito;
b. a identificação individual dos potenciais beneficiários das medidas cautelares ou a determinação do grupo ao qual pertencem; e
c. a explícita concordância dos potenciais beneficiários quando o pedido for apresentado à Comissão por terceiros, exceto em situações nas quais a ausência do consentimento esteja justificada.
5. Antes de solicitar medidas cautelares, a Comissão pedirá ao respectivo Estado informações relevantes, a menos que a urgência da situação justifique o outorgamento imediato das medidas.
6. A Comissão evaluará periodicamente a pertinência de manter a vigência das medidas cautelares outorgadas.
7. Em qualquer momento, o Estado poderá apresentar um pedido devidamente fundamentado a fim de que a Comissão faça cessar os efeitos do pedido de adoção de medidas cautelares. A Comissão solicitará observações aos beneficiários ou aos seus representantes antes de decidir sobre o pedido do Estado. A apresentação de tal pedido não suspenderá a vigência das medidas cautelares outorgadas.
8. A Comissão poderá requerer às partes interessadas informações relevantes sobre qualquer assunto relativo ao outorgamento, cumprimento e vigência das medidas cautelares. O descumprimento substancial dos beneficiários ou de seus representantes com estes requerimentos poderá ser considerado como causa para que a Comissão faça cessar o efeito do pedido ao Estado para adotar medidas cautelares. No que diz respeito às medidas cautelares de natureza coletiva, a Comissão poderá estabelecer outros mecanismos apropriados para seu seguimento e revisão periódica.
9. O outorgamento destas medidas e sua adoção pelo Estado não constituirá pré-julgamento sobre a violação dos direitos protegidos pela Convenção Americana e outros instrumentos aplicáveis.

Não sei se o governo já encaminhou o pedido previsto no parágrafo 7o. No momento, vemos que, contra os direitos humanos, contra o meio ambiente e contra os índios unem-se governistas e oposicionistas; trata-se mesmo de uma causa comum. O senador Flexa Ribeiro, líder do PSDB, maior partido de oposição, chegou mesmo a dizer que decisão da OEA era "uma intromissão na soberania no país" ecoando o discurso isolacionista e contrário aos direitos humanos. O PC do B, membro da base aliada, bradou que "o Brasil não reconhece em nenhuma autoridade externa condições para criticar ou orientar suas políticas".
Tal postura parece ser a mesma da secretária nacional de direitos humanos, Maria do Rosário, que julgou ver "agilização desmedida" (cito do blogue da Belo Monte!) na ação da OEA. Trata-se de um elogio involuntário, na verdade: o mecanismo das medidas cautelares somente faz sentido se for ágil...
Aconselho a leitura do blogue do Xingu Vivo e o texto do procurador da república Felicio Pontes Junior:

[...] o Congresso simplesmente ignorou a legislação nacional e internacional e inventou um processo sem ouvir os indígenas. Daí a devida preocupação da Organização dos Estados Americanos com o caso Belo Monte.
[...]
Tão grave quanto a falta da oitiva dos indígenas pelo Congresso é o argumento do governo exposto ao contestar uma das ações promovidas pelo Ministério Público Federal. Diz que não é necessária a oitiva porque nenhuma terra indígena será inundada. É verdade. Na Volta Grande do Xingu não haverá inundação. Haverá quase seca, já que a maior parte do rio vai ser desviado, levando ao desaparecimento de 273 espécies de peixes nos 100 quilômetros que passam em frente às Terras Indígenas Paquiçamba e Arara do Maia.

Pero Magalhães de Gandavo, no século XVI, escreveu sobre os índios na América do Sul que "A língua de que usam, toda pela costa, é uma: ainda que em certos vocábulos difere em algumas partes; mas não de maneira que se deixem de entender. Carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente." O que hoje se pode dizer é que o Estado brasileiro que está sem lei, nessa violação explícita dos direitos humanos e do direito ambiental, tanto na ordem interna quanto na internacional.
Meu poeminha mencionava a "juventude americanizada"; pois bem. Para terminar esta nota rápida, lembro de outro Estado sem lei, os Estados Unidos, e a combinação de remoção com genocídio que os índios Navajo sofreram em razão dos recursos minerais de suas terras. O brilhante documentário de Maria Florio e Victoria Mudd Broken rainbow, de 1985, conta essa história, ao som da bela canção homônima de Laura Nyro.
Aqui a música, ali o filme.

domingo, 17 de abril de 2011

Daniel Murray e o violão de Tom Jobim II


Já saiu o disco novo de Daniel Murray, totalmente dedicado a Tom Jobim, sobre que já escrevi. Comprei-o no Rio de Janeiro na semana passada. Além de encontrar-se nas poucas lojas de discos que se interessam por música, ele pode ser adquirido no portal desse músico, ou pela Delira Música, que o lançou.
A capa e a contracapa são jobinianas ao mostrarem Murray no meio do mato. Embora o violonista não tenha preferido as músicas de temática ecológica ("Passarim", por exemplo, não está no disco), de qualquer forma uma minoria na produção do compositor, a natureza aqui é outra e se confunde com a arte: Jobim comparava sua ligação à música com o seu elo com a natureza.
Pode-se ler no livro de Helena Jobim sobre o irmão, Antonio Carlos Jobim: um homem iluminado, a entrevista que ele concedeu a Carlos Lacerda. O músico fala mais de ecologia do que de sua arte. Porém, ao insistir nessa preocupação com o mundo, falava de si mesmo, como notou com perspicácia Lacerda.
Depois de ouvir o disco pronto, tenho pouco a acrescentar ao que anotei em 2010. Os arranjos de Paulo Bellinati (a maior parte das canções), do próprio solista e de José Edwin Murray parecem-me traduzir muito bem a música de Tom Jobim, que não tem notas demais nem de menos - uma economia de meios para o que Silvio Ferraz, no Livro das sonoridades, chamou de "harmonia improvável".
Para quem está acostumado a ouvir essas canções com uma voz, creio que somente uma faixa deixará saudade do canto: "Por toda a minha vida", por culpa de Elis Regina (no disco que gravou com Tom), que desmoralizou, com seu drama contido, todas as interpretações pretéritas e posteriores dessa canção.
Sendo Murray não somente o grande instrumentista, mas um pesquisador e professor, preciosidades menos conhecidas de Tom Jobim (como "Antigua") podem ser (re)descobertas, ao lado de peças célebres. A suíte "Gabriela" foi gravada integralmente, o que não é comum (lembro agora apenas de André Mehmari e Ná Ozzetti, em seu disco conjunto Piano e voz).
Para quem quiser apreciar a versatilidade expressiva de Daniel Murray, aconselho comparar a cantilena de "Estrada branca" (a melancolia pulsa, talvez mais livre, porque sem a palavra), com a leveza de "Garoto" e os diferentes climas de "A felicidade", criados pelas possibilidades de ataque e de dinâmica de que Murray dispõe.
O disco deixa de indicar quem fez o arranjo de "Eu te amo", mas é do próprio violonista. E apresenta um erro na minutagem: em vez de 37 minutos e 41 segundos, tem 44'50. De fato, ele oferece ainda mais do que parece nos prometer.

sábado, 16 de abril de 2011

Fabio Weintraub na Virada Cultural


Hoje, 16 de abril de 2011, fala na Casa das Rosas o poeta Fabio Weintraub. Frederico Barbosa vai entrevistá-lo, bem como a João Bandeira. Trata-se de mais um evento da Virada Cultural em São Paulo.
Eu descobri sua poesia, antes de conhecê-lo pessoalmente, com Novo endereço (São Paulo: Nankin, 2002), que em 2004 receberia uma edição bilíngue português/espanhol devido ao prêmio Casa de las Américas (que recebeu em 2003). A tradutora foi a cubana Lourdes Arencibia Rodriguez.
Nesse livro, é impressionante o cruzamento que foi alcançado entre as esferas pública e privada. A intimidade está presente nessa poesia lírica, mas o poeta não finge que está fora do mundo. "Pai", por exemplo, começa assim:

Desempregado há três anos
no país do futuro

Batendo perna nas ruas
com o mostruário de meias

Adivinhando
o signo da morena
o ascendente da loira

O antiufanismo é indissociável desse retrato familiar.
Nesses cruzamentos do privado e do público, vemos retratos urbanos de uma carga emocional intensa. O jantar estava posto, mas o familiar não voltou: o taxista que rodava à noite foi assaltado e morto no poema "Por trás". O título designa a trajetória da bala:


Alguém disse que no caixão
ele tava bonito
Tava não

Repuxando o rosto
o tiro na cervical
varou a jugular
o esvaziou pela boca

Essa trajetória da bala também representa uma poética: o tiro que faz a boca confessar toda a vida.
Baque, de 2007, me parece radicalizar esse projeto. As deformidades do corpo relacionam-se diretamente aos bloqueios no espaço público (em outro poeta contemporâneo, Eduardo Sterzi, esse problema também renderia um livro: Aleijão, de 2009). Vejam esta passagem de "Estirpe":

os que entrevados fogem
com grande velocidade
os que amarram sobre os olhos
lenços ensanguentados
os que em frente às igrejas
espojam-se nus
os que afirmam ter sido roubados
os que pedem apenas o necessário
para inteirar a passagem

Estes são os personagens desta poesia, que a todo momento podem ser objetos de violência:

É fustigado nos albergues
nos hospitais públicos
e posto na rua a pontapés
quando o amor recupera a visão

O livro termina com o notável "Transplante", que possui o tema do transplante de rosto - provavelmente singular na poesia brasileira, mas próprio desta poesia que se dedica a uma estirpe dos sem-linhagem, cuja identidade parece a todo momento ameaçada, seja pela violência e pela loucura, seja por se terem rendido ao capital, como ocorre no engraçadíssimo "Pessoas jurídicas não odeiam":

Contraditório, e daí?
As pessoas mudam
os tempos mudam

Não sou neurótico de guerra
pra ficar defendendo
territórios já anexados

O ostracismo cansa:
se voltei ao mainstream
é porque estou vivo

Tenho 50 anos
não vou posar de herói
Quero que se foda
a coerência do criador
é a obra que importa

Não vou bancar o mártir
O Brasil está desse jeito
por ser católico, culpado e de esquerda
Vamos ser ricos, não coitados

Não sei se tem jabá:
cale a boca
ouça a música

No discurso do músico que aos 50 anos volta ao mainstream, ouvimos os urros violentos do capital, que exigem a atenção escrava da surdez.
É tarefa deste poeta quebrar tais correntes (por isso escolhi a foto acima, que dele tirei em viagem recente que fizemos).
Hoje, na Avenida Paulista, n. 37, um dos endereços da poesia em São Paulo, às 22 horas, poderemos ver Fabio Weintraub falar dessas questões ao vivo.

P.S. Para quem não está em São Paulo, pode-se vê-lo em alguns vídeos.
Filmei-o dizendo "Mais magro", de Novo endereço: http://www.youtube.com/watch?v=V4-oKfjQETU
Esta é a interessante entrevista que concedeu a Ivan Marques no programa Entrelinhas da TV Cultura, depois do lançamento de Baque: http://www.youtube.com/watch?v=ptDhmbqSy8M
Aqui, ele fala de literatura infantil, com que ele trabalha como editor: http://www.youtube.com/watch?v=8Tidg2bE9cs

domingo, 3 de abril de 2011

Desarquivando o Brasil V: o assassinato de Olavo Hanssen: comunismo e insuficiência renal aguda


Nesta campanha Desarquivando o Brasil, decidi deixar para o final um caso sobre que já escrevi mais de uma vez, a morte de Olavo Hanssen pelos agentes da repressão em 1970.
Ele era um sindicalista ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos e um dirigente do PORT – Partido Operário Revolucionário Trotskista. Ele havia sido aluno de Engenharia na Universidade São Paulo, mas deixou os estudos para se engajar na política sindical. Em 1970, trabalhava em uma indústria química em Santo André.
Em 1º. de maio de 1970, ele foi preso com outros sindicalistas, enquanto distribuía panfletos, por policiais militares, na praça de esportes da Vila Maria Zélia, na cidade de São Paulo, durante uma comemoração autorizada do dia do trabalho. Hanssen foi torturado até o dia 5 de maio. Apesar dos protestos de outros presos políticos no DEOPS/SP, ele não recebeu assistência médica adequada e foi levado ao Hospital do Exército em Cambuci somente em 8 de maio, quando já estava em estado de coma. Em 13 de maio, sua família foi avisada que ele teria se suicidado no dia 9, e que seu corpo teria sido encontrado perto do Museu do Ipiranga.
Escrevi, com Diego Marques Galindo (que era meu orientando de iniciação científica) dois artigos sobre esse caso - um deles foi publicado na revista do Arquivo Público do Estado de São Paulo: Tortura e assassinato no Brasil da ditadura militar: o caso de Olavo Hansen. O outro, sairá em livro sobre a repressão política em São Paulo coordenado por Maria Luiza Tucci Carneiro.
Toda a situação foi um exemplo do cinismo do Estado brasileiro - das autoridades policiais e as militares, sem dúvida, mas também do Ministério da Justiça e das Relações Exteriores, em sustentar teses (no Brasil e no exterior) que colidiam com qualquer critério de verossimilhança. Se Hanssen morreu no Hospital do Exército por suicídio, por que razão o corpo dele teria andado até perto do Museu do Ipiranga para ser encontrado apenas dias depois? Se ele teria se matado ingerindo veneno, por que estranho motivo seu corpo tinha todas estas marcas?

1) Ferimento contuso com perda da pele e células subcutâneas na região superior interna da pele direita;
2) Espoliação localizada na face interna do joelho direito;
3) Pequena escoriação localizada no centro da panturrilha da perna direita;
4) Escoriação localizada na face interna da perna esquerda;
5) Pequena escoriação circular na face anterior e terço superior da perna esquerda;
6) Escoriação localizada na região escrotal esquerda;
7) Pequena escoriação localizada no lado externo do cotovelo esquerdo;
8) Equimose localizada na região pré-cordeal.

Que veneno é capaz de produzir tudo isso? E, se o inquérito queria mesmo apurar a verdade, por que os companheiros de cela não foram ouvidos? Eles contariam (Geraldo Siqueira, por exemplo) que ele foi torturado por alguns dias até entrar em coma, sem receber assistência médica de Geraldo Ciscato, que só determinou que Hanssen fosse levado ao Hospital quando o preso já tinha entrado em coma; além disso que, além da tortura recebida, ainda lhe tenha sido aplicado veneno de rato, o que demonstra que elevado tipo de estatuto a repressão política atribuía aos militantes da esquerda.
Para o juiz que arquivou o inquérito, Hanssen era o próprio culpado de sua morte. Como o sindicalista estava distribuindo, na festa do sindicato, folhetos em que se pedia solidariedade aos povos do Vietnã e de Cuba, o excelentíssimo Nelson da Silva Machado Guimarães concluiu:
[...] a afirmação de que Olavo Hansen, se estava distribuindo os aludidos panfletos numa concentração pacífica de trabalhadores, era, ao mesmo tempo, mais um AGENTE e VÍTIMA do sistema de ideias mais abominável e desumano que a mente humana até hoje elaborou. [grifo do autor]

O comunismo, pois, causaria insuficiência renal aguda (que foi a causa mortis).
Trata-se, obviamente, de um dos casos que estão nos dossiês de desaparecidos políticos editados pela Imprensa do Estado de São Paulo e pelo Governo Federal, Direito à memória e à verdade.
Na minha pesquisa, o que pude acrescentar, e não está nesses dossiês, foi a análise do procedimento aberto na Organização Internacional do Trabalho (OIT) contra o Brasil por causa da morte desse sindicalista, preso irregularmente dentro de uma festa de primeiro de maio do sindicato.
Trata-se, evidentemente, de afronta direta à liberdade sindical (que foi, de fato, cerceada a todo momento pela ditadura militar, para o que contou com uma ajuda do Supremo Tribunal Federal - na minha tese analiso a funesta história).
O caso tomou uma dimensão internacional também na Comissão Interamericnaa de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos) - que acabou condenando o Brasil (lembro que, nessa época, ainda não existia a Corte Interamericana).
O governo brasileiro foi capaz de enrolar a OIT (e isso foi usado como "argumento" na OEA), o que era um sinal, na minha análise, das limitações dessa organização internacional em ver a questão do trabalho dentro do âmbito mais largo dos direitos humanos.
Cecília MacDowell Santos estudou o caso na OEA no livro Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil (São Paulo: Hucitec, 2 volumes, 2009), de que é um dos organizadores; James Green também o fez, verificando o impacto na opinião pública estadunidense, em Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985 (São Paulo: Companhia das Letras, 2009).
Sugiro também que vejam a foto de Hanssen e uma homenagem no arquivo da Federação dos Químicos, a Fequimfar. E que consultem os portais do Centro de Documentação Eremias Delizoicov e da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, e do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ.

P.S.: O sobrenome de Olavo Hanssen foi retificado segundo nesta nota: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/ato-em-memoria-de-olavo-hanssen-e.html

sábado, 2 de abril de 2011

Desarquivando o Brasil IV: o exemplo da Argentina: entrevista com Julián Axat


Já entrevistei o poeta, jurista e editor argentino Julián Axat quando ele esteve no Brasil para falar no Seminário sobre Exílio e Migrações Forçadas em 2010; o vídeo pode ser visto aqui. Falo com ele novamente em razão da Campanha Desarquivando o Brasil: a Argentina continua tendo um papel relevante e inovador no tocante à justiça de transição.
Axat atua como escritor e jurista nesse campo. Na entrevista, ele trata da HIJOS, organização que congrega os descendentes dos desaparecidos (como Axat, muitos seguiram o caminho militante já aberto pelas Madres e pelas Abuelas da Praça de Maio), da coleção Los detectives salvajes, que recupera escritos das vítimas do terror de Estado, e dos julgamentos dos agentes da repressão e do genocídio.

Pádua Fernandes - Como você é membro da organização HIJOS, pergunto-lhe como ela atua e atuou em favor do direito à memória e à verdade na Argentina.

Julián Axat - Hijos nasce em 1994 como organização. Participamos junto com os órgãos históricos de direito humanos no lema triplo: “memória, verdade e justiça”. Porém nossa forma particular de expressar-nos era “se não há justiça, há escracho”. O indulto aos militares viabilizava essa forma de protesto (ou forma de justiça popular) sobre o corpo e o contexto daquele que o Estado havia deixado impune.
Porém o Estado em 2003 faz seus os lemas de “Memória, verdade e justiça”. Eles passam a ser uma verdadeira Política de Estado com continuidade: o julgamento de repressores e seu encarceramento; a atribuição de lugares da memória; a reconstrução documental de cada desaparecido; a reescritura do prólogo do Informe Nunca Más que modifica a versão sobre “os dois demônios” que desde 1983 se pretendeu contar à sociedade; a educação sobre o tema às gerações mais jovens.
Hoje os Hijos tratamos de ir mais além e sustentamos (nos julgamentos) que, desde março de 1976, na Argentina houve um fato com as características de um Genocídio. Isto é, um plano sistemático para eliminar a dissidência política pelo método da tortura-desaparição-extermínio de grupos humanos em campos de concentração, com efeitos difusos no restante da sociedade civil e nas novas gerações. E, para isso, já não basta a palavra Terror de Estado e o conceito de Crime contra a Humanidade. É necessário analisar os Instrumentos Internacionais sobre o Genocídio pensados pela comunidade internacional depois do Nazismo.
Até aqui se pode falar da reconstrução de um relato compartilhado com elementos certamente objetivos. Mas também estamos trabalhando no nivel da subjetivação e transferência individual da memória. Hijos não é somente uma organização, mas um fato social que irrompe de muitas maneiras: H.I.J.O.S, hijos, hij@S. Nem tudo é consenso e compromisso coletivo. Memória individual e grupal são uma dialética permanente; uma ida e volta. Pluralidade necessária, válida. Cada lugar, cada filho, escolhe sua forma (ou dispositivo) para mostrar-se ou aderir, comprometer-se com o mundo e a história. No final, todos os rostos de Hijos formam um puzzle identitário cuja coincidência geracional alivia na door ou alegria de reconstruir a memória de nossos pais. A necesidade de contar politicamente a história (a luta) que nos deu à luz.

PF -Peço para que explique como a coleção "Los detectives salvajes" age no tocante à memória das vítimas do terrorismo de Estado.

JA- Los detectives salvajes é uma coleção de poesia que nasce como um projeto de dois filhos de desaparecidos em busca de toda uma geração silenciada e exterminada a resgatar. Esse é o trabalho de armar o puzzle que te dizia na tua pergunta anterior. O trabalho de grande Frankenstein da memória feita de andrajos, a que sempre falta uma peça para completar o rosto do monstro. Somos expertos profanadores de tumbas buscando cadáveres literários escondidos pelo terror (temos uma equipe forense poética). Com os cacos desses materiais linguísticos encontrados no nervo da noite tratamos de sustentar algumas certezas daquilo que não se sabe ou resulta inominável.
E, a partir do lugar que ocupa o registro da poesia, mergulhamos na trama de uma língua onde as palavras do perpetrador (ou cúmplice civil) também constituíram o veículo do terror e o engano. As palavras (insisto, civil e literariamente cúmplices) foram forçadas a dizer o que nenhuma boca humana deveria ter dito, nunca, palavras com que nenhum papel fabricado pelo homem deveria ter-se manchado jamais: como nomear a desaparição?
Recompor uma tradição da voz implica recuperar essa língua anterior amputada para fabricar nosso testemunho vicário. Recuperar a voz de nossos padres a partir da voz poética nossa, como filhos, é uma forma de nos reencontrarmos com o que fica de sua vida, ou, como diz Walter Benjamin: nos apossarmos da recordação tal e qual reluz em um instante de perigo.
Os versos que falam da ausência fantasiam a possibilidade de um resgate fantástico ao mesmo tempo em que criam um espaço real de encontro impossível. São versos que põem na boca do testemunho duas gerações fraturadas pelo mal radical que pressente o indizível, o silêncio no dizer de Paul Celan, mas que –apesar de tudo- tenta comunicar-se com novas vibrações e experiências.
Este trabalho da voz implica sair de uma vez por todas do lugar de filho-vítima-vitimizado-ofendido; para assumir o papel de filho fazedor da história, filho sujeito político-ofensivo.

PF- Como você avalia os avanços da Argentina nos julgamentos dos responsáveis pelo terrorismo de Estado?

JA- Avalio-os muito bem. O único problema é que as leis de impunidade que impediram julgar militares, policiais e civis fazem que hoje, depois de 29 anos, muitos estejam mortos, ou com incapacidade senil, ou enfermos. De todo modo, os julgamentos são um grande avanço e uma marca profunda no tecido social, e, simultaneamente, uma mensagem às novas gerações que não os veem como um fato distante, e sim presente em suas vidas.
No princípio, tivemos o julgamento de pessoas célebres, de forma individual; hoje estão sendo julgados grupos de pessoas em razão de centros clandestinos de detenção. Também são julgados civis cúmplices, eclesiásticos, médicos etc. Toda a estrutura do terror é submetida a julgamento. Todavia, ficam pendentes julgamentos de membros do Poder Judiciário com fortes vínculos com a ditadura. O problema é que muitos desses funcionários ainda se encontram ativos, ocupando cargos importantes, e têm muito poder. Também fica pendente o julgamento de civis ou pessoas jurídicas que cumpriram funções indiretas, por exemplo en meios de comunicação famosos, empresas, bancos, ou então vizinhos que fizeram o papel de delatores etc.
Volto à ideia que te mencionei no princípio, a necessidade de que se introduza o julgamento dos fatos no marco de um “Genocídio”, tal como o entendeu o Tribunal Federal Nº 1 de La Plata, na condenação do repressor Etchecolatz em 2006 (http://www.derechos.org/nizkor/arg/ley/etche.html) Nesse sentido, a obra do antropólogo Daniel Feierstein talvez seja a mais importante que se escreveu para abordar o caso argentino, me refiro ao texto El Genocidio Como Practica Social.
Muitos de nós, Hijos, somos querelantes nas causas criminais e acompanhamos dando impulso e ferramentas de análise, para que os julgamentos sejam históricos, que a sociedade os sinta como um antes e depois com efeitos concretos para solidificar a democracia e que, tendo noção do horror, ele não volte a se repetir.
Para isso, é muito importante que os genocidas possuam garantias constitucionais, que possam defender-se, que possam falar e dar seus pontos de vista. Os julgamentos são justos no marco de um Estado de Direito, e não são um teatro de castigo como os repressores objectam nas audiências.
Os repressores têm uma oportunidade inédita de defesa e humanidade no trato, que é o que eles não deram às pessoas que executaram e fizeram desaparecer. As vítimas não queremos vingança, tampouco reconciliação como quer a igreja e os setores da direita. Só queremos uma instância de justiça que é a que eles não deram. Só a justiça fecha parte da ferida (do luto), só a justiça tira nossos pais de um lugar difuso, de um purgatório, da instância fantasmática.

Desarquivando o Brasil III: Segurança nacional e batatinhas


Eu exibi e expliquei este documento (entre outros) do início da ditadura militar no Seminário Direito e Ditadura, organizado pelo PET da faculdade de Direito da UFSC, e em mais duas universidades que depois não me concederam certificado pela palestra (não sei se ofendi sensibilidades).
Ele está no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Trata-se do Pedido de Busca n. 554, de 4 de maio de 1964, do Conselho de Segurança Nacional. O Secretário-Geral do Conselho era Orlando Geisel. O Serviço Nacional de Informações e Contra-Informações, subordinado ao Conselho, informou que tinha “conhecimento” de que “Há perigo para o abastecimento face a redução das safras em São Paulo, ocasionadas pelas sêcas e geadas, especialmente de café, algodão, milho, feijão, amendoim, batatinhas, mandioca, cana de açucar, cebola, laranja e abacaxi.”; apesar desse conhecimento, indagou às autoridades estaduais se o fato era verdadeiro e poderia influir sobre a economia do Estado e do país.
O Pedido foi diretamente endereçado ao Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, General Aldévio Barbosa Lemos (hoje, em tempos mais democráticos, ele seria dirigido ao Governador do Estado), que o enviou ao DEOPS/SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social). O Delegado Titular de Ordem Política de São Paulo respondeu ao Diretor do DEOPS/SP que não tinha dados sobre a safra de cereais.
Não se tratava de linguagem cifrada (a safra não era de subversivos), e sim de uma questão agrícola. Dessa forma, pediram-se informações à Secretaria de Agricultura, a que tinha mais subsídios para a questão.
Ressalte-se que não a preocupação do Conselho de Segurança Nacional não era com os direitos sociais e a fome, e sim com a segurança do novo governo federal.
Como um problema desse tipo poderia ter-se tornado objeto de segurança nacional? A data do ofício, 26 de maio de 1964, explicava: tratava-se do início da ditadura militar no Brasil que, ideologicamente, fundamentava-se na doutrina da segurança nacional.
Essa doutrina, de inspiração francesa e estadunidense, caracterizou-se teoricamente por seu caráter antiteórico, pois a segurança nacional era um conceito sem delimitação. Qualquer tema poderia dizer-lhe respeito. Ela assumia a forma de um conceito jurídico indeterminado e servia de instrumento supraconstitucional para a ditadura.
Gabriel Périès, em artigo "La doctrina militar contrainsurgente como fuente normativa de un poder de facto exterminador basado sobre la excepcionalidad", publicado no livro Terrorismo de Estado y genocidio en América Latina (Buenos Aires: Prometeo Libros; PNUD, 2009), organizado por Daniel Feierstein, refere-se a uma "dimensão hermenêutica da doutrina militar" na Argentina, que

Por un lado integra totalmente el funcionamiento del aparatus coercitivo normativo y práctico del "quehacer" operativo; pero fundamentalmente legitima las prácticas "vedadas", es decir, ilegales, por la experiencia profissional anterior, abriendo campo a una toma del poder socio-político de facto.

No Brasil, houve algo semelhante. Nesse quadro institucional, é curioso que alguns quisessem e queiram falar de democracia. Os cidadãos possuíam tantas garantias quanto as batatinhas.