O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Desarquivando o Brasil CXXXIII: Raduan Nassar e a ditadura militar

O poeta Cláudio Willer escreveu ontem sobre o absenteísmo político, na época da ditadura militar, de Raduan Nassar. Nassar foi objeto de vários comentários por ter sido ontem atacado pelo político que no momento ocupa o ministério da cultura, na entrega do Prêmio Camões.
Outras pessoas, e não Willer, chegaram a dizer, a meu ver muito equivocadamente, que se tratava de premiação exclusiva do governo brasileiro, e por isso ele deveria tê-la recusado (a iniciativa também é de Portugal), embora ele tivesse aceito a premiação antes do impeachment (não sei se o atraso na entrega ocorreu em razão de má vontade da administração Temer, ou da visível falta de excelência administrativa da gestão), e que, se ele recebeu a premiação, deveria ficar calado - essa é a ideia que fazem do debate público e da relação dos escritores com o governo.
Willer escreveu que Nassar se absteve politicamente e que disse, em 1981, que não havia censura de livros na ditadura, apesar, lembro, dos vários exemplos de livros proibidos desde os anos 1960: https://www.facebook.com/claudio.willer/posts/1345869838802906
Eu não sabia disso. O curioso é que a literatura de Raduan Nassar não era absenteísta; a esse respeito, no volume dos Cadernos de Literatura Brasileira (publicado pelo Instituto Moreira Salles em 1996) dedicado a Raduan Nassar, tanto Milton Hatoum quanto Leyla Perrone-Moisés destacam Um copo de cólera, publicado pela primeira vez em 1978, pela sua relação com a ditadura militar.
A história, que se tornou filme de Aluizio Abranches, é muito conhecida. Na cólera deflagrada após o dono da propriedade ter humilhado os empregados, e a jornalista o chamar de fascista, o homem diz "escuta aqui, pilantra, não fale de coisas que você não entende, vá por a boca lá na tua imprensa, vá lá pregar tuas lições, denunciar a repressão [...]".
Depois de afirmar que ela se tornaria polícia feminina, é o fascista, em astuta estratégia do autor, que faz este comentário subversivo: "no abuso de poder, não vejo diferença entre um redator-chefe e um chefe de polícia, como de resto não há diferença entre dono de jornal e dono de governo, em conluio, um e outro, com donos de outros gêneros".
É interessante que a discussão da repressão passe pelo jornalismo. Na entrevista publicada nos Cadernos, Nassar contou que publicava um Jornal do Bairro, criado em 1967, que "Fazia oposição ao regime da época e identificava-se com as reivindicações do então chamado Terceiro Mundo. Dava atenção também aos grupos minoritários.". Ela pode ser lida no blogue do Instituto (http://blogdoims.com.br/entrevista-com-raduan-nassar-2/).
De fato, o jornal publicou oposicionistas como Paul Singer. Na ficha que o Deops/SP fez do escritor (por sinal, o simples fato de ele ter sido fichado pela polícia política sugere que ele não era completamente absenteísta), menciona-se a atividade da Pat Publicações, de que era um dos proprietários.

A editora era investigada por publicações consideradas subversivas pelo regime, especialmente material do movimento estudantil. Sobre isso, há várias referências de documentos da repressão, mas mencionarei apenas a que tenho comigo no momento. Reproduzo ao lado parte de um documento que está no acervo Deops/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Trata-se de um documento do Centro de Informações da Marinha, de 1978, sobre a chamada "imprensa nanica", isto é, os periódicos de menor circulação que faziam oposição ao governo, que eram alvo de preocupação gigante da repressão. Esses periódicos e as bancas de jornais que os vendiam é que seriam alvos de diversos atentados, inclusive a bomba, nos governos Geisel e Figueiredo.
Dados haviam sido coletados sobre a imprensa clerical, de entidades de classe e do movimento estudantil, "além das revistas que fazem 'resistência cultural', como 'ISTO É', 'ESCRITA', 'VERSUS', etc., por apresentarem características bastante identificadas com a 'imprensa nanica'".

3) - Os demais documentos referenciados, [sic] contêm subsídios sobre as seguintes publicações: "MOVIMENTO", 'EM TEMPO", "FLAGRANTE", "VERSUS", "ANISTIA", "REPÓRTER", "LAMPIÃO", "BOLETIM ABI" e da firma impressora "Publicações e Assistência Técnica Ltda - PAT". 
Vejam a preocupação da ditadura com a "proliferação" desses jornais, com a não identificação do editor-chefe (claro que por motivos de segurança) e com a tiragem: "as tiragens dessas publicações somam mais de 120 mil exemplares".
Nassar deixou essa carreira. Sua vida, de fato, foi marcada por uma série de abandonos: de cursos, de negócios, e da literatura pela agricultura, que ele também acabou por deixar em 2011, como conta esta reportagem da Revista Piauí, publicada em 2012 (http://piaui.folha.uol.com.br/materia/depois-da-lavoura/), com a distribuição de terras para agricultores e a doação de uma fazenda para a construção de um campus da Universidade Federal de São Carlos (a doação foi taxada em quase meio milhão, que ele pagou), depois de a USP, que não queria abrir cursos de graduação na região, não ter aceitado a propriedade. No entanto alguns, não sei se honestamente, chegaram a dizer que Nassar só teria aceitado o prêmio Camões por dinheiro.
Outros acharam que o escritor deveria ter-se mantido silencioso, cobrando coerência com o seu costumeiro caráter recluso. Não tenho nada contra reviravoltas em histórias, que fazem personagens que estavam quietos se manifestarem quando a situação é dramática, gerando impacto e destaque nos jornais, que documentaram a inversão da ordem nas falas, que permitiu que o ministro falasse no final, e a pouca intimidade da atual presidente da Biblioteca Nacional com a literatura (ela errou duas vezes o nome de Nassar). Achei admirável.
Admirei também que Raduan Nassar tenha centrado seu discurso na acintosa indicação do antigo comandante da repressão política no Estado de São Paulo, o antigo secretário de segurança pública de Alckmin, político do PSDB (desfiliado há alguns dias...), Alexandre de Moraes. Como se sabe, no atual consórcio do PMDB com o PSDB à frente do orçamento federal, Moraes ascendeu ao ministério da justiça, e o nacional desastre de sua gestão, com chacinas em presídios, cortes nos órgãos de direitos humanos, ataques aos direitos indígenas credenciaram-no para ser indicado ao Supremo Tribunal Federal...  O que seria um legado desastroso de Temer e do PSDB, que duraria muito mais do que este governo provisório, tendo em vista a vitaliciedade do cargo e a PEC da Bengala.
Foi pedida a cassação de seus títulos na USP pela "má conduta científica" e acusações de plágio, bem como requerimento à Procuradoria-Geral da República. Além disso, o currículo lattes do tinha informação falsa de um alegado pós-doutorado. Eis o que o governo Temer pode oferecer de notório saber e reputação ilibada (requisitos constitucionais para o cargo, acreditem ou não).
Raduan Nassar abandonou a literatura, mas não poderá deixar de ser o autor de sua própria obra. Àqueles que criticaram o escritor e defenderam o político que desdoura o ministério da cultura (afinal, é tão representativo do atual governo, que está a degradar o país), deixo esta citação de Lavoura arcaica:
– E fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico, menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o alto, e assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam [...] a vítima ruidosa que aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa pantomima atirada por seu cinismo.


20 comentários:

  1. perfeita a citação final, Pádua. adorei o texto.
    beijo.

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    1. Obrigado Renata. Deixei as palavras de Raduan Nassar como antídoto do discurso canhestro do ministro...

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  2. Impecável, Pádua. Excelente reflexão, sempre achei a literatura dele de uma intensa ação e movimento, assim como a vida dele. Querem agora que seja omisso!? Oras! Acho que essa gente fala mais é de si mesmo.

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    1. Muito obrigado. É possível que, em muitos casos, seja isso mesmo em relação à omissão.

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  3. Só agora pude ler. Excelente, obrigado pelo texto!

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  4. Excelente, Pádua, excelente!

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  5. Que maravilha de memória, prazado Pádua!

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  6. que oportunas que são suas palavras nesse momento! Obrigada!

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  7. Grande matéria sobre um grande escritor. Parabéns.

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  8. Tb é a palavra em que penso: oportunos. Texto e posicionamento mais do que oportunos

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  9. Parabéns pelo belo texto, lúcido, substancial, pontualmente necessário!

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  10. Excelente, amigo. Meus parabéns, tenho escutado cada absurdo sobre Raduan. Estou revoltado!

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