O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 31 de julho de 2011

Desarquivando o Brasil XIV e Terra sem lei V: Liberdade para romanistas e Belo Monte para urubus

A preocupação da ditadura militar no Brasil de se aparentar com um regime democrático atravessou todos os governos, de Castelo Branco a Figueiredo. Essa necessidade de tentar legitimar o regime relaciona-se ao acompanhamento, pelo governo, da imagem exterior do Brasil.
No acervo do DEOPS/SP, podem-se ler vários e vários recortes de reportagens estrangeiras sobre o Brasil. Notícias brasileiras que tratavam da percepção de estrangeiros sobre o Brasil também eram guardadas.
Um desses recortes foi de matéria do Jornal da Tarde de 23 de julho de 1970, "O que se fala do Brasil no externor: Em alguns países, a imagem do Brasil não é boa: continuam as acusações ao govêrno. E o presidente Médici está preocupado com isso".
Conta-se nela que Médici recebeu em Brasília os participantes do I Colóquio Internacional de Direito Romano, Língua e Literatura Latina e declarou-lhes que "Não há homem, não há ser humano que não goze nesta terra de toda aquela liberdade a que ele tem direito." Solicitou aos estudiosos que retornassem a seus países com essa imagem do Brasil, a da "liberdade"! Wandick Londres da Nóbrega, presidente do Colóquio, afirmou ter explicado aos participantes que nenhum brasileiro precisava de buscar a liberdade em outro país - exceto aqueles que a queriam destruir no Brasil...
O que parece ter interessado especialmente às autoridades policiais, no entanto, foi o trecho destacado à mão em que se contava da prisão do médico que havia reunido provas de que Olavo Hansen tinha sido assassinado por agentes do DEOPS. A advogada Eny Raimundo Moreira (uma das fundadoras do Comitê Brasileiro pela Anistia - vejam o vídeo em que ela explica a criação do projeto Brasil Nunca Mais), que trabalhava no escritório de Sobral Pinto, informava que havia apresentado uma petição ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana em favor do médico.
Como se sabe, o caso de Olavo Hansen acabou gerando procedimentos internacionais contra o Brasil. O governo fez o possível, em termos de chicana e politicagem, para freá-los; conseguiu-o na OIT, mas não na OEA. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos acabou por condenar o Estado brasileiro, que ignorou completamente a decisão.
Estudei, na tese, como o desprezo pelo direito internacional dos direitos humanos havia permanecido no Brasil após a democratização, mesmo com diversas mudanças políticas e institucionais que ocorreram. É possível verificar essa continuidade autoritária na jurisprudência - foi o que fiz - mas também por outros métodos. Estudos dos vários órgãos ligados Poder Executivo possivelmente revelariam o mesmo quadro.
Afinal, o Executivo, depois de 1988, continua a desprezar decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Um caso foi da lei de anistia, em que houve colaboração do Judiciário brasileiro para a impunidade. Mas também seria interessante estudar o IBAMA.
Esse Instituto, aprofundando o desprezo oficial ao direito brasileiro e ao internacional, concedeu, em 1° de junho, licença para as obras de Belo Monte (tecnicamente, trata-se da licença de instalação nº 795/2011 para o aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte) apesar de quarenta por cento das condicionantes previstas pela licença prévia (de número 342/2010) não terem sido cumpridas. O consórcio Norte Energia, em momento de grande criatividade da engenharia brasileira, elencou obras inexistentes de saúde e educação, o que foi percebido até pelo IBAMA, que reconheceu o não cumprimento das condicionantes.
O Ministério Público Federal (mais preocupado com a imagem exterior do Brasil do que o Poder Executivo), diligentemente, propôs ação civil pública contra essa nova ilegalidade. Na petição inicial, destaca as questões da qualidade da água e do saneamento, irresolvidas.

Não havendo como negar o não cumprimento da condicionante, o IBAMA, no RPL, inverte completamente a lógica. Ressuscita a máxima de privatizar o lucro e socializar os custos, ao declarar:

“51. Há ainda que se considerar que a responsabilidade pelos
serviços de saneamento é do Poder Público - governos estaduais
e municipais. Os principais municípios da região (Vitória do
Xingu e Altamira) apresentam, atualmente, situação precária
em relação ao saneamento básico: inexistência de esgotamento
sanitário e sistema de abastecimento público de água precário.
Isso posto, ainda que a responsabilidade da NESA diga respeito
somente aos impactos causados pelo empreendimento, restou
estabelecido no licenciamento que o empreendedor deve
implantar integralmente os sistemas de abastecimento público
de água e de esgotamento sanitário, em toda a área urbana
desses municípios, cobrindo um importante déficit préexistente.”

Por essa lógica, diante da pobreza da região, a NESA deveria se preocupar apenas com o impacto que causar pelos seus operários. Não deve haver qualquer compromisso ou dividendo da empresa para a comunidade local que suportará impactos como a contaminação de sua água.
Nada mais colonialista. Esse pensamento ajuda a compreender a diferença econômica e social entre as regiões do Brasil, que a Constituição da República Federativa do Brasil visa a combater em seu art. 3º, inciso III e demonstra a miopia na condução do licenciamento, que parece transformar o ônus da decisão da NESA em construir um imenso empreendimento na região em um favor, uma benemerência com a sociedade local, desprezando o impacto da atividade, em situação que desconsidera todo o arcabouço constitucional sobre o tema.


Creio que o Ministério Público Federal acerta na mosca ao mencionar a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos que, na verdade, não se limitam a custos financeiros, pois envolvem a degradação ambiental e destruição de comunidades, de culturas e formas de vida. Isso é irreversível e não pode ser quantificado - em geral, o mais valioso é incalculável. Talvez seja um problema de recusa à alteridade que mentes tecnicistas não compreendam valores que não possam ser depositados em contas bancárias.
Se alguém ainda tinha dúvida das intenções do IBAMA, o seu diretor, Curt Trennepohl, dissipou-as quando deixou claro, para a tevê australiana, que seu papel não era cuidar do meio ambiente, e que os brasileiros farão com os índios o mesmo que foi feito com os aborígenes na Austrália. Ele é servidor do órgão e advogado na área ambiental (não li seus livros, não sei se neles tenta justificar juridicamente o extermínio de povos, como ocorreu com os aborígenes), o que deve despertar sensações peculiares para a "comunidade jurídica" brasileira. Não surpreende que a entrevista reveladora tenha sido dada no exterior, uma vez que a tevê brasileira não está, de modo geral, comprometida com o meio ambiente e com os povos indígenas.
Imagino que a presidenta Dilma Rousseff deva ter apreciado tais declarações, já que ele segue no cargo.
No caso, creio que o Ministério Público deveria verificar se se planeja o crime de genocídio, especialmente no tocante a esta previsão da lei federal nº 2889 de 1956:

Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
[...]
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

Belo Monte deverá gerar tais condições de inexistência para as comunidades locais, especialmente as indígenas. O artigo primeiro dessa lei reproduz a previsão do artigo 2º da Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio, da ONU. Trata-se, no Brasil, de crime hediondo, segundo o parágrafo único do artigo da lei federal federal nº 8072, de 1990. Além da justiça federal brasileira, o Tribunal Penal Internacional é competente para julgar esse crime.
Lembro também que é crime de responsabilidade do Presidente da República, segundo a lei federal nº 1.079, de 1950:

Art. 5º São crimes de responsabilidade contra a existência política da União:
[...]
11 - violar tratados legitimamente feitos com nações estrangeiras.

O direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional ambiental estão sendo violados neste caso, o que inclui até mesmo Convenções da Organização Internacional do Trabalho!
Eduardo Sterzi havia comentado que o mesmo IBAMA que concedeu licença a quem não cumpriu os requisitos legais cancelou a que havia dado a Nuno Ramos para expor urubus na obra Bandeira branca, apesar de o artista ter cumprido todos os requerimentos necessários.
Um fez arte; quanto ao outro, planeja lucrativa (para poucos) destruição (para todos). É fácil descobrir de que lado está o governo federal.

domingo, 24 de julho de 2011

Dos direitos humanos a Murilo Mendes

Quando Fernando Matos Oliveira, que na época estava na editora Angelus Novus, pediu-me um ensaio para a extinta coleção Marfim, apresentou-me o formato e o título: Para que servem os direitos humanos? - e assim foi encomendado meu segundo livro português (o primeiro havia saído pela &etc em 2002).
Em 2004, enviei o texto, que só foi publicado, depois de dois alarmes falsos, em 2009. Como tive que reescrever e diminuir, em razão do número de caracteres, não gosto de relê-lo (não lembro quando fiz isso pela última vez - na verdade, não gosto de reler-me, há tantas outras coisas para estudar...): dá-me a incômoda vontade de transformar cada parágrafo em um capítulo novo.
Em regra, não me interesso muito pelo que já fiz, o que foi uma das razões para ter demorado a responder quando Alexandre Nodari me pediu uma entrevista, há pouco publicada no Sopro, numa edição que me deixou feliz, pois estou com meu pintor favorito e um de meus poetas preferidos - imagino que Nodari teve que compensar a presença do meu texto com esses pesos-pesados!
Não obstante o caráter modesto do livro, quis responder porque achei que seria uma tarefa de professor: tentar ensinar e esclarecer, talvez mais eficaz do que as tentativas que faço com alunos que institucionalmente me cabem na faculdade de direito.
A questão da multiplicidade das fontes e a outra, que é a dos usos do direito, em regra é profundamente recalcada nas faculdades de direito e, muitas vezes, ignorada em outras regiões da Academia.
Outro problema é reduzir o direito à jurisprudência: grande parte da aplicação das normas jurídicas simplesmente não passa pelo Judiciário. Felizmente, por sinal; se toda a vida do direito dependesse desse Poder, ele estaria como o paciente que morreu no dia 3, mas terá marcada no dia 30 sua operação para o dia 28 do mesmo mês, data em que o médico não aparecerá.
No exemplo que cito, da Favela Santa Marta, o paciente decidiu viver a despeito das instituições, e só poderia fazê-lo dessa forma.
Estudei a dimensão local do direito no mestrado, e a global no doutorado. Normalmente, combino-as. Nos idos de 2009, fizeram-me uma pequena entrevista com a indagação de que, se os direitos humanos eram invocados no Iraque, isso não mostraria sua inutilidade e falta de universalidade? Parece-me bem o oposto; a situação no mundo islâmico hoje trouxe novos elementos, e as perguntas que Nodari me fez permitiram-me falar mais da questão.
Quero, porém, falar de outra coisa: Vinícius Nicastro Honesko, nesse número do Sopro, traduziu uma fala improvisada em francês de Murilo Mendes. O improviso é visível, não há realmente um desenvolvimento de ideias, mas há passagens:

A distinção entre a poesia dita gratuita e a poesia “engajada” não tem muito mais de sentido já que o poeta, a partir o momento em que toma consciência de sua condição de poeta, está “ex-officio” engajado no drama humano e, de todo modo, evidentemente, no drama da linguagem, que é aquele do homem.

No poema "Conhecimento", de A poesia em pânico, Murilo diz "Sou a fome de mim mesmo e de todos,/ Sou o alimento dos outros" e termina com "Sou a própria esfinge que me devora". O poeta oferece sua fala, que se incorpora aos ditos e aos silêncios da sociedade, e pode alterá-los. Essa é sua fome (e a dos outros), da qual ele e os outros se alimentam. Mais tarde, em Convergência, ele lançaria murilogramas para os mais diversos destinatários. E Orfeu, mesmo "Lacerado pelas palavas-bacantes", "Impede mesmo assim sua diáspora/ Mantendo-lhes o nervo & a ságoma."
Quem o devora? Ele se oferece a todos: "Orfeu Orftu Orfêle/ Orfnós Orfvós Orfêles". Não se trata propriamente de um direito do autor, mas de um dever.
Muito diferentemente, no mau poeta engajado, aquela dicotomia logo se percebe (há compromisso social, mas não a formalização artística necessária), assim como no mau poeta "puro" ou "gratuito" (em que não há nenhum dos dois). Nos dois casos, os poetagramas não se constituem.
Isso fez-me lembrar a leitura que Rancière fez do político em Mallarmé. Claro que, se Mallarmé fosse mau poeta, o político faltaria, assim como a poesia. E o poeta francês não teria brinde algum para oferecer a nossa sede: nem solidão nem recife nem estrela.
De alguma forma, quando lançamos um livro, investimos naquela fome ou sede - nossas e do outro.

P.S.: Perto do final da entrevista, faço uma concordância atrativa (perfeitamente legítima) que uma pessoa estranhou, mas é assim mesmo: " A evocação dos direitos humanos nas revoltas atuais no Oriente Médio parecem-me confirmar essa tese" É claro que prefiro concordar com esses direitos, e não conjugar o verbo segundo uma simples evocação.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Indignação na Europa: Democracia real na França



No feriado nacional francês da Queda da Bastilha, o 14 de julho, não fui assistir ao tradicional desfile militar - não aprecio esse tipo de pompa, mesmo se decadente, o que é o caso desse país: no dia anterior, com a crise do euro, os jornais diziam que a França já não tinha os recursos militares para suas ambições políticas - felizmente, devemos dizer).
Eu não conhecia o movimento Réelle Démocratie, tampouco a agenda alternativa da região parisiense, a Démosphère. O acontecimento estava lá previsto.
Andando pela rua de la Roquette, em direção ao cemitério do Père-Lachaise, cruzei com uma marcha dos indignados franceses. Eu estava com Fabio Weintraub, que gravou um vídeo do começo da manifestação, que pode ser assistido no YouTube.

Os cartazes pediam "Democracia real" (Démocratie réelle). Também havia militantes da libertação da Palestina, vestidos com verde. O que gritavam? Paris, debout, soulève-toi! (Paris, de pé, rebela-te).
Abaixo, pode-se vê-los em frente à Ópera da Bastilha, de onde foram expulsos em 11 de junho deste ano. Em 14 de julho, foram cercados por policiais.
Retornaram, porém ao logradouro em frente ao da Ópera da Bastilha, e seguem acampados. Alguns de seus cartazes, pude vê-los em protestos em São Paulo, como Aucun être humain n'est ilégal. (Nenhum ser humano é ilegal.) Outros, não, como Tu la sens l'insurrection qui vient? (Tu a sentes, a insurreição que vem?), obviamente inspirado em Tiqqun, e Je pense donc je gêne (Penso, logo incomodo). Aqui e lá, temos a insatisfação com a democracia indireta e os partidos políticos.
Porém, mais forte do que Tiqqun parece ser, neste momento, o chamado que Stéphane Hessel voltou a colocar na ordem do dia: Indignai-vos. Para quem ainda não leu o texto, já traduzido para várias línguas, lembro que se trata da voz de um resistente francês da Segunda Guerra Mundial conclamando a que se saia da indiferença diante da ditadura do mercado dos dias de hoje, com um apelo normativo à Declaração dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948 (ele participou da elaboração do projeto da Declaração) como direitos universais (seguindo René Cassin) e não meramente internacionais.
Ele crê (e há exemplos disso, vários, na história) que uma minoria de indignados pode levar a mudanças, convencendo a maioria. Pelo que vi na França, essa minoria não chega ainda à dimensão da espanhola.





Acredito que a imaginação política da resistência precisa ainda estar à altura do momento de crise. Em outro momento histórico, na França, certo deputado teve a ideia de afirmar, e a teoria para justificar, que o Terceiro Estado era a nação, e que ele detinha o poder constituinte. Essa ideia permitiu dar forma à indignação e às demandas concretas do povo francês (sem essas demandas, claro, a imaginação seria infrutífera).
O momento foi o da Revolução Francesa, e esse homem foi Sieyès, que foi um dos que fui visitar no cemitério Père-Lachaise (o túmulo de Jim Morrison continua sendo mais frequentado, porém). Traduzi dele o discurso com que defendeu seu projeto da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Os indignados franceses de hoje precisam também daquela imaginação - ela é o que dá forma ao novo.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Desarquivando o Brasil XIII: Itamar Franco, Sérgio Macaco e o Caso Para-Sar

Imagine que um grupo de militares resolvesse explodir o gasômetro. A planejada morte de milhares de pessoas seria atribuída aos comunistas, o que desencadearia a perseguição e o assassinato de vários nomes da oposição, bem como a continuação da ditadura militar.
Tal foi a ideia do Bridadeiro João Paulo Burnier em 1968, que planejou que a Para-Sar realizasse o ato de terrorismo. Houve alguém que, como em Brecht, disse não: o capitão da Aeronáutica Sergio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido como Sérgio Macaco. A ordem era manifestamente ilegal, mesmo para os padrões jurídicos infames da ditadura militar.
Como o então capitão evitou um massacre que levaria à morte de milhares, opondo-se, portanto, ao espírito do regime, foi preso e, em seguida, reformado pelo AI 5.
Ainda no governo Geisel, em 20 de maio de 1974, o Brigadeiro Eduardo Gomes (que havia sido uma alternativa da direita à presidência da república, quando ela ainda estava disposta a concorrer a eleições diretas) escreveu ao presidente solicitando a reparação da injustiça:

O Capitão Sérgio tem o mérito de haver-se oposto ao plano diabólico hediondo do Brigadeiro João Paulo Burnier que, em síntese, se consumaria através da execução de atos de terrorismo, usando das qualificações técnicas possuídas pelos integrantes do Para-Sar. A explosão de gasômetros, a destruição de instalações de força e de luz, posteriormente atribuidas aos comunistas, propiciariam um clima de pânico e de histeria coletiva, permitindo, segundo a opinião do Brigadeiro Burnier, uma caçada a elementos já cadastrados, o que viria "a salvar o Brasil do comunismo". Ao mesmo tempo, executar-se-ia, sumariamente, a eliminação física de personalidades político-militares que, no seu entender possibilitariam uma renovação nas lideranas nacionais.
[...]
Creio que não se me pode negar autoridade moral para reclamar, em nome da própria Revolução, o deferimento do Recurso que o Cap. Sérgio ora lhe dirige.
Meu caro General Geisel, a reparação da clamorosa injustiça que sofre o Cap. Sérgio será um grande serviço que o digno Presidente da República prestará à Aeronáutica e ao país.
Para mim, pessoalmente, valerá como um alento. Não posso mais arrastar comigo o peso dessa injustiça que me oprime o cansado coração, pois que o Capitão Sérgio, sempre por mim apoiado e estimulado, curte o seu cruel castigo em silêncio e em resignação, com consciência do dever cumprido.
Se a justiça dos homens é incerta, a Justiça de Deus é infalível. Seja General Geisel, o nobre instrumento dessa justiça.


Cito-a da decisão do STF. Ela é interessante por demonstrar como, no âmbito dos padrões institucionais do período, não era possível reparar a injustiça feita ao militar, senão voltando às teorias medievais da política para ver o chefe político na qualidade de representante da vontade divina. Por algum motivo que me escapa, essa vontade não encontrou um instrumento na pessoa de Geisel.
Na justiça militar, ele foi absolvido da acusação de crime militar. Em dezembro de 1970, o Superior Tribunal Militar confirmou a absolvição. No entanto, a reforma não poderia ser desfeita nem pelo STM, pois os atos praticados com base nos atos institucionais não poderiam ser anulados pelo Judiciário.
Seu caso chegou ao Supremo Tribunal Federal: as Forças Armadas mantinham o curioso entendimento de que dar choques elétricos em órgãos genitais era um crime político a ser anistiado, mas que um militar como Sérgio Macaco não poderia ter sido promovido a Brigadeiro - de fato, se Burnier era digno do cargo, o ex-capitão não o poderia ser.
A Procuradoria-Geral da República, em mais um dos casos em que apoiou lealmente o legado autoritário da ditadura militar, opinou pela improcedência da ação, defendendo a legalidade dos atos praticados com base no AI 5.
Na época, soube do caso nos jornais por Millôr Fernandes (ele chegou a desenhar os desígnios burnierianos, com Dom Helder Câmara sendo jogado de um avião para o mar), que, infelizmente, não recolheu esses textos em livro. Para uma leitura rápida, vejam o texto de Luiz Cláudio Cunha.
A ação no Supremo Tribunal Federal ficou conhecida como Caso Parasar ou Caso Sérgio "Macaco". Ela foi julgada em 28 de outubro de 1992.
Curiosamente, a posição que predominou foi a do Ministro Marco Aurélio, e não a do relator, Celso de Mello, que entendia que o artigo 9o. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988 não era aplicável:

Art. 9º. Os que, por motivos exclusivamente políticos, foram cassados ou tiveram seus direitos políticos suspensos no período de 15 de julho a 31 de dezembro de 1969, por ato do então Presidente da República, poderão requerer ao Supremo Tribunal Federal o reconhecimento dos direitos e vantagens interrompidos pelos atos punitivos, desde que comprovem terem sido estes eivados de vício grave.
Parágrafo único. O Supremo Tribunal Federal proferirá a decisão no prazo de cento e vinte dias, a contar do pedido do interessado.

Ora, tratava-se, manifestamente, do caso do ex-capitão, como bem fez ver Marco Aurélio. Como a reforma foi pronunciada pelo triunvirato militar que tomou o poder, impedindo Pedro Aleixo, vice de Costa e Silva, de assumir o cargo de presidente da república, a Procuradora-Geral da República argumentou que o requisto previsto no artigo 9o., "ato do então Presidente da República", não estava contemplado... Nesse caso, temos ou um exemplo curioso de ignorância histórica (um manual destinado ao ensino médio explicaria que, entre a doença de Costa e Silva e a posse de Médici, um triunvirato exerceu a presidência da república) ou uma tentativa de fazer com que o Estado se beneficiasse de sua própria torpeza.
Já Celso de Mello não tinha visto "vício grave" na reforma do ex-capitão, então coronel, por ato complementar ao AI 5... Marco Aurélio corretamente argumentou, e foi vencedor, que o vício jurídico não poderia ser visto apenas como uma questão de forma, e sim também de fundo - dessa forma, ele era evidente. Lembrando-se da posição que tomaria na ADPF 153, não é estranho entender por que Celso de Mello não enxergava vícios nas punições fundamentadas nos atos institucionais!
Celso de Mello acabou por mudar o próprio voto nesse aspecto, mas continuou vencido por não julgar que o militar tivesse o direito de ocupar o posto de Brigadeiro. Ilmar Galvão, que votou inicialmente pela improcedência da ação (Celso de Mello foi pela procedência parcial) e depois reconsiderou seu voto, acabou também vencido.
No andamento da ação, vemos que o Ministro da Aeronáutica, Lélio Lobo, simplesmente ignorou o ofício do STF para que cumprisse o acórdão.
Itamar Franco se omitiu. Aparentando estar sob tutela das autoridades militares, simplesmente ignorou a decisão. Cumpriu-a apenas depois da morte de Sérgio Macaco, já gravemente doente na época da ação.
A falta de coragem cívica desse novo presidente acidental da república (o primeiro havia sido José Sarney) bem mostra que, após o fim da tutela direta dos militares, as virtudes cívicas foram mesmo acidentais nos altos escalões e o autoritarismo participou fortemente da própria substância política.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Algo como um poema: cartilha do poeta que não aprendeu a escrever...

Este meu escrito, publicado na antiga revista Cacto (São Paulo, vol. 3, primavera de 2003), editada por Eduardo Sterzi e Tarso de Melo, foi dedicado ao poeta (e meu amigo) Ricardo Rizzo.



Cartilha do poeta que não aprendeu a escrever para não ser influenciado pelo alfabeto


I

quer a página branca:
segura o sexo sobre o poema

quer a página branca:
o sexo começa a ler o poema

e assim aprende a ler o negro
enquanto escreve o branco

e, úmido do branco, o poema
ganha a tinta para escrever o nome de Deus


II

o espaço começa a soletrar,
mas é um mau aluno
e põe ruidosamente os lados esquerdos ao lado de outros lados esquerdos

o espaço está a alfabetizar-se,
porém falta muito à escola
e desenha todas as profundidades no nível da pele

o espaço foi posto de castigo
mais uma vez fugiu da sala de aula
e em todos os recintos plantou a fuga

o espaço, enfim, permanece analfabeto

este é o lugar da língua


III

a religiosa começou a gritar no trem lotado,
nenhum dos dois saía do lugar

mais um religioso começou a gritar no trem lotado,
nenhum deles tinha caminhos exceto a reta

outro religioso começou a gritar no trem lotado,
calos vocais também se emocionam, como os suores e os copos de plástico

quando mais religiosos começaram a gritar no trem lotado,
levavam bombas, Deus fala com línguas de fogo

enfim, os religiosos que começaram a gritar no trem lotado
continuaram a gritar no trem lotado, todos muito emocionados

o que gritavam? não se entendia, não entendiam, ocupados em
expulsar altares solteiros de casa, pisotear mães de outros deuses, votar em [dinheiro sujo, lavar traficantes e se cobrir de muitos panos

quando o trem, de tão parado, bateu em si mesmo.

cada ferro retorcido guardou uma lembrança do que foi humano

e o mineral manchado de sangue e pele e pelos parecia mais humano do que [uma escultura

(era uma escultura, assim como o homem)

e aquele ferro que cortou gargantas

foi o único passageiro que pronunciou o nome de Deus


IV

onde a língua vive?
onde tem uma casa?
nas bocas que dizem?
no golpe que cala?

onde a língua mata?
nos dentes que riem?
no canto da faca
se ouvem cicatrizes?

ela mata e vive,
a língua bilíngue,
e escolhe as moradas

que a todos exilem:
a voz, porque cala,
e o mundo, que fala


V

o poeta acordou após a polução:
"acordar o sêmen, eis a função social da poesia"
refletiu; e deitou mais um pouco.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Heine, riso e revolução

A primeira referência que vi a Heinrich Heine foi um soneto de Cruz e Sousa, que fala de rir como só Heinrich Heine sabia rir. Na verdade, ele escreve "Henri", que foi o nome francês dele, que havia nascido Harry.
As mudanças do nome representam as errâncias do escritor judeu e alemão. Nos estados alemães, era um cidadão de terceira classe. Com a invasão de Napoleão - que levava o Código Civil francês para os lugares que invadia - os judeus gozaram um momento de igualdade civil, mas a queda do conquistador francês fez o status quo discriminatório voltar. Heine batizou-se (e mudou o nome de Harry para Heinrich), o que, segundo o próprio, não só foi ineficaz para mudar sua situação entre os cristãos, como serviu para que fosse odiado também pelos judeus.
Ele não foi uma exceção, porém. Outros judeus, ainda no século XX, batizaram-se devido às barreiras legais e culturais que os Estados cristãos lhes opunham (que, às vezes, chegavam ao massacre). Gustav Mahler foi outro exemplo famoso: um judeu não podia reger na Ópera de Viena. Isso não lhes retira a vinculação cultural com o judaísmo, no entanto (achar o contrário e considerar aqueles grandes autores como cristãos seria insistir e legitimar aquela política discriminatória contra os judeus, roubando-lhes alguns de seus principais nomes).
É claro que, na Alemanha, não havia espaço para o gênio contestador de Heine. Quem não lembra de Weber afirmando que, se você era judeu, era inútil imaginar que conseguiria um lugar na universidade alemã? Um século antes, Heine não conseguiu. Ademais, todo movimento da Jovem Alemanha, contrário ao Antigo Regime, foi perseguido - e o escritor foi um dos alvos preferidos dos censores germânicos.
Ele se mudou para a França depois da queda de Carlos X (que tentou reintroduzir o Absolutismo) e, lá, teve outra mudança "onomástica": tornou-se Henri Heine, nome por que os franceses o conhecem e que está incrito em sua lápide. A vitória da revolução na França e sua derrota na Alemanha foram decisivas para o seu exílio francês, que se prolongou até a morte.
Os músicos (Schumann e Schubert principalmente) deram-me a conhecê-lo mais do que os outros poetas. Ouçam o dramático poema do Duplo (Der Doppelgänger) com a música de Schubert, que descobriu o poeta no fim da curta vida do músico (morreu em 1828, um ano depois de Beethoven). E também o ciclo Dichterliebe, "amores do poeta", na música de Schumann.
Ouvia ontem na Rádio MEC FM, no programa Som de Letra (produzido por Livio Tragtenberg), André Vallias, organizador e tradutor de Heine hein? Poeta dos contrários. Foi publicado neste ano pela Perspectiva; o livro é muito melhor do que o título, que seria mais adequado a um poeta visual. Enquanto isso, eu mesmo seguia tentando traduzir alguns trechos de Französische Zustände (Situações francesas). Tive, assim, a ideia de escrever esta nota.
Primeiro, lembro do livro de Vallias: trata-se de um marco na história da poesia traduzida no Brasil. Nunca foram traduzidos tantos poemas de Heine de uma vez só para a língua portuguesa - e uma parcela muito bem escolhida da prosa também foi incluída. Talvez haja alguma tradução melhor de um ou outro poema - e esse é o caso do Navio negreiro, que recebeu uma versão impressionante de Priscila Figueiredo e Luiz Repa no livro Navios negreiros (editora SM), que traz Heine e aquele poeta brasileiro que nele se inspirou, Castro Alves - mas o que Vallias fez foi notável. Vejam a resenha de André Dick.
Segundo, o gênio de Heine. Não tenho nada mesmo de relevante a dizer sobre ele, apenas posso admirá-lo. Talvez sua condição de estrangeiro em toda parte - mesmo entre os judeus, seguramente entre os alemães, também entre os franceses - teve algo que ver com o seu olhar crítico. Esse olhar heiniano (e não "heineano"; da mesma forma, é lockiano, e não "lockeano") podia ser extremamente sarcástico; Cruz e Sousa bem o notou: "Rir! mas com o rir demolidor e quente/ duma profunda e trágica ironia/ [...] Antes chorar que rir de modo triste.../ Pois que o difícil do rir bem consiste/ só em saber como Henri Heine rir!...".
Calado diante do gênio, posso apenas compartilhar algumas frases do que estou traduzindo:

Em vão graceja o clero: dê a César o que é de César. Nossa resposta é: durante mil e oitocentos anos nós sempre demos demais a César; o que restou é nosso agora.

Diz-se nas fábulas: os degraus mais altos de uma escada falaram arrogantemente outrora para os mais baixos: « Não acreditem que vocês são iguais a nós, vocês ficam na lama enquanto nós livremente erguemo-nos sobre vocês, a hierarquia dos degraus foi estabelecida pela natureza, ela foi pelo tempo sacralizada, é legítima »; porém, um filósofo que passava e ouviu essa fala aristocrática riu e virou a escada de cima para baixo.

Duas passagens frontalmente contrárias ao Antigo Regime.

Os povos possuem tempo bastante, eles são eternos; apenas os reis são mortais
.
Na verdade, também os povos não são eternos. Heine exagera para diminuir os reis, embora ele mesmo fosse monarquista. Ele afirmava que, enquanto a França era republicana, a Alemanha era monarquista em sua essência, e que somente depois de muito tempo após sua morte é que se poderia ver uma república na Alemanha. De fato, ela só chegou no século XX, com a derrota na Primeira Guerra Mundial.

[...]jamais os alemães desistiram de uma ideia sem terem ido até as suas últimas consequências.

O século XX daria razão a Heine, bem como à ideia dele de que a Alemanha faria com que a Revolução Francesa parecesse pacífica.

Todas as constituições, mesmo as melhores, não nos podem ajudar enquanto a nobreza inteira não for arrancada até a última raiz.

De fato. O princípio monárquico sobreviveu ainda muito tempo no solo germânico e foi parar no pensamento de Carl Schmitt e certos de seus discípulos à direita e à esquerda.

[...]o povo rejubilou-se e, como em 14 de julho o tempo estava muito favorável, ele iniciou a obra de sua libertação, e quem visitou, em 14 de julho de 1790, a praça onde a velha, rabugenta, desagradável Bastilha ficava, lá encontrou, em vez dela, um edifício arejado e alegre com a risonha inscrição: Ici on danse.

Lindo, não? Que escritor!

Onde as leis vivem na consciência do povo, o governo não pode destruí-las por meio de uma ordenação repentina.

Sim, trata-se da produção social do direito - a norma jurídica não é criada apenas pelo Estado.
Heine estudou direito, embora ele também tenha escrito (muito modestamente) que se tratava da área de conhecimento que ele menos sabia! Mas ele não ignorava essa produção social da norma, isto é, não acreditava que a sociedade fosse inerte e incapaz de traçar seus próprios destinos. Sem isso, não há revolução.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Terceirização e Terror: STF e o solo minado no Rio de Janeiro

Nota preliminar: neste início de 2014, dia 3 de janeiro, os bueiros continuaram o barulho dos fogos que saudaram o ano e explodiram na Tijuca: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/01/04/quatro-bueiros-explodem-na-tijuca-zona-norte-do-rio.htm
Ignoro se se trata realmente da minha hipótese de terror de Estado ou se estamos diante de ensaios de uma forma alternativa, com mais substância do que simples fogos de artifício, de comemorar as eventuais vitórias na próxima copa do mundo de futebol masculino.


Estive no Rio de Janeiro até esta quarta-feira. Depois de atravessar a Antonio Carlos me perguntei: o instituto jurídico da terceirização deveria ser enquadrado, em termos políticos, na categoria do Terror? Os bueiros que pegam fogo e explodem suscitaram-me a estranha dúvida.
A Rua da Assembleia, ironicamente, está há mais de dois dias interditada. Técnicos não acham problemas em alguns dos pontos onde houve explosões; a questão, aparentemente, é sistêmica, e não de simples defeitos localizados. A Light, companhia privatizada que terceirizou suas equipes técnicas, está a fazer a cidade literalmente explodir, sob os olhos semicerrados da agência reguladora, ANEEL e de outras autoridades.
A privatização vem sendo acompanhada desse tipo de precarização das relações de trabalho, que afeta a qualidade dos serviços públicos. Por sinal, há muito tempo o próprio poder público vem terceirizando vários serviços que são atividades-meio.
O resultado, em geral, é a negação dos direitos sociais, o que vem gerando paralisações aqui e acolá, como esta última na USP.
Uma questão é a da responsabilidade do poder público. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) decidia que o poder público tinha responsabilidade subsidiária nesses casos, o que gerou a súmula 331 do TST, que afastava o parágrafo 1º do artigo 71 da Lei 8666/1993 ("§ 1o. A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.")
O Supremo Tribunal Federal, na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16, decidiu que o artigo referido da Lei n. 8666/1993 é constitucional. No entanto, ainda poderá ocorrer a responsabilidade subsidiária do poder público:

“O STF não pode impedir o TST de, à base de outras normas, dependendo das causas, reconhecer a responsabilidade do poder público”, observou o presidente do Supremo. Ainda conforme o ministro, o que o TST tem reconhecido é que a omissão culposa da administração em relação à fiscalização - se a empresa contratada é ou não idônea, se paga ou não encargos sociais - gera responsabilidade da União.


O TST modificou, em seguida, a súmula 331 para adequá-la ao entendimento do STF.
Outra questão, que afeta mais gravemente, creio, a qualidade dos serviços públicos, é a da extensão da terceirização - que tipo de atividades ela pode englobar? As leis de concessão têm sido extremamente favoráveis aos interesses das empresas.
Seria, porém, um preconceito esquerdista ver prejuízos na terceirização? Um preconceito que decorre da falta de leitura de livros tão profundos quanto a "Comendo a concorrência: Antropofagia e Oswald de Andrade para executivos"; "Você é uma exceção: Agamben e o mundo corporativo"; "Você pode chegar parangolá: o método Oiticica de gestão empresarial" etc.? Criei estes títulos em homenagem a meus amigos antropófagos.
Não! O próprio presidente da Light (que não é um radical da extrema-esquerda), o senhor Jerson Kellman, afirmou que seria responsabilidade dos terceirizados a explosão de diversos bueiros no Rio de Janeiro.
Trata-se de uma forma aparentemente torpe de transferir responsabilidade: a companhia optou por essa forma de precarização do trabalho, que fez com que haja equipes compostas não só de técnicos que não dominam tecnicamente seu trabalho, mas de criminosos que furtam os equipamentos e os revendem.
A companhia optou e lutou na Justiça para manter essa precariedade lucrativa. Quem permitiu essa terceirização dos serviços técnicos? O Ministro do STF Gilmar Mendes, concedeu liminar favorável à Vivo, monocraticamente (isto é, ele sozinho), em 9 de novembro de 2010, na Reclamação n. 10132:

DECISÃO: Trata-se de reclamação, com pedido de medida liminar, ajuizada por Vivo S.A. Empresa de Telecomunicações contra ato da Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho que, nos autos do Recurso de Revista n. 6749/2007-663-09-00, teria descumprido a Súmula Vinculante 10 deste Supremo Tribunal Federal, ao afastar a aplicabilidade do art. 94, II, da Lei n. 9.472/1997.
Referido dispositivo estabelece que a concessionária de serviço de telecomunicações poderá, observadas as condições e os limites estabelecidos pela agência reguladora, contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço, bem como a implementação de projetos associados.
A decisão reclamada foi proferida por órgão fracionário do Tribunal Superior do Trabalho e afastou a incidência do referido dispositivo, fundamentando-se no enunciado 331, III, daquela Corte, [...]
Verifico que, enquanto a Súmula 331, III, do TST limita a possibilidade de terceirização à atividade-meio das empresas de telecomunicações, o art. 94, II, da Lei n. 9.472/1997 permite a contratação com terceiros para o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares.
Em um juízo sumário de cognição, os termos utilizados não parecem ser sinônimos, o que evidencia a existência de fumus boni juris que justifica a concessão da medida liminar pleiteada.
Esse entendimento é reforçado por outras decisões recentes do Tribunal Superior do Trabalho cujo entendimento é contrário ao do acórdão ora questionado, dentre as quais cito o RR 13400-51.2009.5.03.0004, Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, DJe 22.10.2010; o RR 106040-34.2009.5.03.0114 , Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, 2ª Turma, DJe 8.10.2010; e o RR 160100-28.2008.5.03.0134 , Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, DJe 15.10.2010, [...]
Ademais, reconheço que a decisão reclamada pode acarretar graves prejuízos de difícil reparação ao Reclamante, além de estar fundamentada em ato normativo cuja incerteza quanto à efetividade tem gerado insegurança.
Ante o exposto, defiro o pedido de medida liminar para suspender os efeitos do acórdão proferido pela Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho proferida nos autos do Recurso de Revista n. 6749/2007-663-09-00 até o julgamento final desta reclamação.

A Vivo lutava na Justiça do Trabalho para que a terceirização do call center fosse considerada regular. Não conseguiu no TST, e sim no STF. Quais eram os "graves prejuízos de difícil reparação"? Cumprir a lei trabalhista...
À vista disso, a Light conseguiu que fosse julgada procedente outra ação referente à terceirização, na 8a. Turma do TST. Nessa ação, o Ministério Público do Trabalho levantou que a Light demitiu mais da metade de seus funcionários. Não admira que a cidade exploda.
Voltando à minha indagação inicial; seria a Terceirização, nesse contexto de aniquilação dos direitos sociais apoiada pelos três Poderes do Estado (o STF, Tribunal que historicamente aplica mal o direito do trabalho - na minha tese tratei um pouco disso - não tem servido de contraponto eficaz aos abusos contra esses direitos), uma forma de Terror? Há pontos em comum:

a) A Terceirização, assim como o Terror, marca-se pela indeterminação das vítimas - o efeito deve ser o da insegurança geral: a bomba ou o bueiro podem explodir em qualquer parte, o que deve preocupar a população civil;

b) A destruição dos espaços públicos, pelo Terror e pela Terceirização, gera o temor do encontro nos logradouros - deve-se atingir o próprio ânimo associativo, o que é uma forma de ferir politicamente a comunidade - a assembleia dos cidadãos deve ser fechada, o que se verificou agora com a interdição da Rua da Assembleia;

c) As ações do Terror e da Terceirização são imprevistas, sem o que o pânico geral não é alcançado: as forças subterrâneas poderão aclodir a qualquer momento, trazendo a insegurança para toda a sociedade.

A Terceirização seria, pelo menos neste caso, uma espécie de Terror de Estado? Creio que sim, pois as explosões ocorrem em um serviço público, embora na mão de agentes privados. O fato de esses agentes o operarem não retira, a meu ver, a responsabilidade estatal. A Corte Interamericana de Direitos Humanos já afirmou, por exemplo, a responsabilidade internacional do Estado por crimes cometidos por paramilitares (como o caso dos massacres de Ituango, contra a Colômbia).
No caso da Light, trata-se de uma categoria nova: o Terror involuntário de Estado. A imaginação política no Brasil é infinita.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Memória e poesia: Los detectives salvajes e Rosa de María Pargas

A coleção Los detectives salvajes, coordenada por Julián Axat, acaba de lançar mais um título. Dentro de sua missão de recuperar a literatura das vítimas do terror de Estado na Argentina, ou de publicar autores contemporâneos vinculados a essa temática, resgata-se Rosa María Pargas, que foi sequestrada em 1977 e jamais reapareceu. O lançamento será em 15 de julho, em Buenos Aires.
A coleção tem seu nome inspirado, obviamente, em Bolaño. Mas não quero lembrar do livro de que o título foi retirado, e sim de 2666. Na página 262 da tradução brasileira (feita por Eduardo Brandão), lemos uma observação sobre o caráter social da memória. Comparam-se os milhares de mortos da Comuna de Paris com o caso de um amolador de facas que assassinou suas próprias esposa e mãe. A segunda notícia foi transmitida por vários jornais da Europa e também em Nova Iorque. Os mortos da Comuna não despertaram nem de longe essa compaixão porque "não pertenciam à sociedade", assim como os negros transportados no tráfico de escravos. Sua dor não saiu nos periódicos.
Poderia a literatura transformar esse quadro? Bolaño tentou fazê-lo, certamente. Lembro que, a partir da Comuna, Rimbaud escreveu um poema profético sobre aquela sociedade que se julgava civilizada ao dizimar seus trabalhadores. A poesia tem esse poder de desfazer consensos.
Creio que a coleção de Axat quer, de certa forma, realizar uma redefinição da sociedade argentina por meio do resgate das vozes suprimidas.
Vejam-no falar recentemente sobre a coleção e sobre poesia em dois vídeos no YouTube.