O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 29 de maio de 2011

Desarquivando o Brasil VIII e Desbloqueando a Cidade I: a Marcha da Liberdade

Em 28 de maio de 2011, realizou-se em São Paulo, do vão do MASP à Praça da República, a Marcha da Liberdade. Motivados pela repressão armada à Marcha pela descriminalização da maconha, diversos grupos e indivíduos congregaram-se contra a decisão do Judiciário paulista, tomada em solicitação do Ministério Público Estadual.
Acompanhei a marcha a partir da rua da Consolação. Ela estava sob ameaça, porque o MP e o TJ de São Paulo concordaram em proibi-la. No entanto, os organizadores entenderam-se com a polícia (que é, normalmente, mais razoável do que o Poder Judiciário - os juízes estão isolados das ruas, bem ao contrário dos policiais) e ela foi realizada sob o compromisso de não se mencionar a maconha.
Com efeito, a pamonha, como produto natural, substituiu o outro na voz dos manifestantes.
Ocorreu, pois, uma forma de desobediência civil (simultaneamente acordada com a polícia e vigiada e controlada por ela), que sempre deve acontecer quando o Estado afronta os direitos da população. Houve mesmo essa afronta no caso da Marcha da Liberdade? Para responder, basta analisar a visão do Desembargador Paulo Antonio Rossi sobre a liberdade de expressão e de reunião, que é realmente interessante. Reproduzo parte da decisão:

MANDADO DE SEGURANÇA Nº0100202-05.2011.8.26.0000-Protocolo n.º 2011.00472031-4 (37) Impetrante: Promotores de Justiça da Capital-Impetrado: MM. Juiz de Direito do Departamento de Inquéritos Policiais - DIPO TJSP - 2ª. Câmara Criminal-2ª.Câmara Criminal-Decido no impedimento ocasional do Des. Teodomiro Mendez, relator designado.[...]
Não se trata de reprimir o direito da livre manifestação, mas sim coibir apologia ao crime ou a eventual induzimento no uso de drogas, o que é diferente de afastar ou coibir necessárias discussões ao desenvolvimento, aperfeiçoamento e modificação das normas penais. Saliento que, em matéria publicada em 12/05/2011 - Julio Delmanto, Membro dos Coletivos Antiproibicionistas, indaga: Nossas ruas pertencem à Polícia e ao Judiciário ou ao povo? Claro, sem dúvida, ao povo, mas a todo povo e, portanto, entendendo que a realização da chamada "Marcha da Liberdade" procura simplesmente inviabilizar a determinação Liminar que proibiu a "Marcha da Maconha", e pelos fundamentos nela expostos, estendo a liminar com todos seus efeitos, a este pedido, proibindo a realização do evento, até a decisão do presente mandamus.Comunique-se, com a máxima urgência, via fac-símile, os Promotores de Justiça subscritores, ao Exmo. Senhor Secretário de Segurança Pública, às autoridades responsáveis pela Polícia Civil, Polícia Militar, Guarda Civil Metropolitana e Companhia de Engenharia e Tráfego, para que adotem as medidas legais necessárias para coibir a manifestação.Dê ciência da medida, ao impetrante do habeas corpus nº050.11.032723-3.São Paulo, 27 de maio de 2011. Paulo Antonio Rossi- Desembargador

Não escrevo sobre o absurdo da presunção de incitamento ao consumo de tóxicos em uma questão de debate de reforma das leis na esfera pública. Trato do argumento realmente notável que o magistrado cunhou: a praça é do povo, mas de todo o povo; por conseguinte, parte dele, apenas, não a pode ocupar.
De que forma entender o fundamento jurídico invocado pelo excelentíssimo magistrado? Pode-se pensar que se trata de uma compreensão peculiar do direito constitucional de liberdade de reunião, entendido de forma a que ele não tenha, de fato, eficácia. Exigindo-se o que a Constituição não prevê - isto é, que o povo só possa se manifestar quando ele estiver inteiramente presente, o que é, de toda forma, impossível -, temos uma aplicação da norma jurídica que é realizada de maneira contrária aos próprios fins da norma: o que deveria assegurar a liberdade, é interpretado de forma a impedi-la. Nisso, temos uma produção legal da ilegalidade que impede a efetividade dos direitos humanos, no âmbito de uma cultura jurídica autoritária que sobreviveu ao fim da ditadura militar.
Essa é uma forma de entender a decisão: uma afronta à democracia pelo MP e pelo Judiciário de São Paulo. No entanto, poder-se-ia pensar outra coisa - que o excelentíssimo magistrado estaria, na verdade, a conclamar a população, inteira, a lutar pela liberdade: "venham todos, para que não se proíba a manifestação". Se a vontade popular só pode se manifestar pela integralidade do povo, temos aí uma radical negação da democracia indireta.
Essa afirmação radical da democracia direta, no entanto, conduz à completa inadequação da existência de um poder político destinado a julgar composto por uma corporação distinta do povo. De acordo com o próprio fundamento da decisão, o desembargador não teria poder de decidir! Logo, a decisão, também sob esse ângulo, se revela inconsistente, por cair em contradição performativa. Que lástima! Não é sempre que o pensamento libertário encontra um consistente fundamento teórico!
A primeira hipótese, de uma decisão contrária à democracia, faz lembrar de como sistematicamente se aplicava o direito na ditadura militar. E como essa aplicação era usada, entre outros fins, para impedir manifestações populares e atingir movimentos sociais.
As épocas são diferentes, claro, mas, em termos de metodologia jurídica, há uma continuidade - um continuísmo até, porque, exatamente como os Poderes Executivo e Judiciário, o Judiciário não sofreu nenhuma depuração depois do fim da ditadura. Sofreu ainda menos, pode-se dizer, pois não há mandato e o povo não poderia expulsar por meio do voto os juízes comprometidos com a tortura e os abusos do poder.
Os exemplos, na época da ditadura militar, são inúmeros de cerceamento da esfera pública. Momentos específicos, como o da campanha pela Anistia, conviviam com a vigilância sistemática dos sindicatos, dos movimentos estudantis, e a censura prévia dos meios de comunicação.
Uma das formas de vigilância, naturalmente, era o controle das passeatas e das manifestações, com infiltração de agentes (essencial para os serviços de informação), que faziam relatórios até mesmo de palestras e cursos que poderiam ser vistos como contrários ao regime e, assim, serem caracterizados como "propaganda adversa" - uma forma de violação da segurança nacional.
Agora, que estamos em outra época, vimos que a polícia filmou os manifestantes, pelo menos no vão do MASP, e cercou a manifestação. Vê-se, na foto, o final físico dela, ainda na rua da Consolação.
No final temporal dela, o mesmo ocorreu: os policiais, que tiveram um dia tranquilo (pois tudo foi pacífico, com exceção deste incidente, para o qual a Folha de S.Paulo deu outra versão), continuavam acompanhando maciçamente a manifestação. Com os manifestantes, várias viaturas entraram na Rua Barão de Itapetininga. Era muito bem humorado o cartaz que pedia menos bombas e mais diálogo aos policiais.
Ignoro, naturalmente, quantos policiais infiltrados havia entre os manifestantes - no ano passado, no ataque ao movimento de greve dos professores de São Paulo, descobriu-se o policial infiltrado somente porque socorreu uma colega. Esses "elementos" parecem ter a função de vigiar e também causar confrontos.
Sobre os dias de hoje, sugiro, para uma leitura rápida, este texto de Vladimir Aras, "Policiais poderão cometer crimes no Brasil".
Na época da ditadura militar, não havia propriamente a questão da autorização legal para o policial cometer crimes. Se o próprio regime era criminoso, é evidente que seus órgãos de segurança também deveriam sê-lo. E o Judiciário, em sua maioria, fez-se presente para manter a impunidade desses órgãos.
Uma questão vital para o regime era o controle dos movimentos sociais - e das manifestações de autonomia da sociedade civil em geral. A campanha pela anistia, como já escrevi, foi monitorada e reprimida pelos órgãos de segurança.
No documento ao lado (50-Z-130-5122 do Arquivo Público do Estado de São Paulo), vê-se o início de relatório sobre a abertura do I Congresso Nacional pela Anistia, na PUC de São Paulo, em novembro de 1978. Ele não foi assinado, como era de praxe. Também era de praxe que eventos relevantes e maiores recebessem mais de um relatório - apenas um agente não conseguiria dar conta de toda a situação. Nesses documentos, encontramos várias fotos de passeatas, em que algumas pessoas são identificadas - especialmente os organizadores e os líderes. Não vou incluí-las aqui.
Diversos pleitos sociais fizeram-se presentes na Marcha da Liberdade. Eu não saí com máquina fotográfica, mas com um mero telefone celular, com que pude captar, e mal, apenas algumas dessas reivindicações. De partidos políticos, só vi bandeiras (poucas) do PSOL e do PCO. O PT parece já não ser mais um veículo para esse tipo de manifestação...
Além das imagens abaixo, pude notar vários outros manifestantes contra a impunidade no campo e pela reforma agrária e militantes de movimentos negros, todos abrigados sob a bandeira abstrata da liberdade. Essa é uma das vantagens desses direitos abstratos: eles acolhem as demandas concretas, o que é esquecido por alguns entusiastas da imanência.



Essa diversidade na esfera pública mostra que, apesar dos três Poderes oficiais, nem tudo está perdido em São Paulo; vejam o cartaz que mostra políticos de diversos matizes - a presidenta, dois senadores (um da base de apoio, outro da oposição, mas elas sabem unir-se contra várias demandas populares) e o prefeito de São Paulo: "Não somos seus escravos". Uma grave advertência, já que eles foram eleitos para servir o povo, e não o oposto.
Faço lembrar que essa diversidade é que poderá mover o "excesso democrático", de que trata Rancière, e fazer a política. Em caso contrário, temos o povo como objeto da polícia, como é tradição no Brasil - a gestão administrativa das populações...
A ditadura militar, obviamente, reforçou essa tradição que ainda se manifesta hoje na criminalização dos movimentos sociais.
No documento ao lado (50-Z-00-15314, verso, do Arquivo Público do Estado de São Paulo), temos outro exemplo do monitoramento das manifestações populares durante esse período em São Paulo. Tratou-se de marcha organizada em 1979 por movimentos dos negros contra a discriminação racial, reivindicando o 20 de novembro (que, hoje, é feriado em alguns Estados e Municípios) como dia da consciência negra.
Foram anotados os slogans da multidão, que marchou do Viaduto do Chá até a Praça da Sé; um deles, "O negro na rua derruba a ditadura". Segundo as fontes policiais, a manifestação oscilou entre mil e, no final, trezentas pessoas.
No final do relatório, pode-se apreciar a diversidade mesmo nessa manifestação: a reivindicação dos direitos dos homossexuais também fez-se presente (como na Marcha da Liberdade de ontem - vejam o cartaz pela escola sem homofobia) por meio do grupo Somos, e também manifestações contra a violência policial (que, como se sabe, ainda afeta esses dois grupos).


Já que pesquiso essas continuidades no Brasil recente, devo dizer que é belo que a cidade de São Paulo não perca sua frágil tradição de manifestações públicas, apesar das decisões judiciais em contrário. Na Marcha da Liberdade, havia também grupos que representavam os desaparecidos políticos. E os trotskistas estavam na marcha. Na foto, uma militante segura o cartaz com a foto de Olavo Hanssen. Sua morte gerou uma condenação do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Não tivesse morrido depois de tortura na OBAN e no DEOPS/SP, provavelmente estaria distribuindo panfletos (razão pela qual foi preso) nessa marcha. Na imagem, (documento 50-Z-9-20415 do Arquivo Público do Estado de São Paulo) um dos que estavam sendo distribuídos quando ele foi preso por policiais militares em primeiro de maio de 1970. Trata-se de uma convocação ao povo do Estado de São Paulo que incluía "o direito de ter garantia de reunião, de organização, de discutir e escrever, formulando nossas reivindicações, de votar e ser votado em eleições livres, de denunciar os exploradores do povo e os inimigos da pátria, abolindo-se a violência como meio de investigação da verdade."
Tais metas ainda não foram realizadas, quarenta e um anos depois: a tortura permanece nos órgãos de segurança e, como se viu de novo em São Paulo (e em outras cidades) neste mês, a liberdade de reunião continua a ser desrespeitada.
O panfleto terminava de forma efusiva:

Viva a Solidariedade Internacional dos Trabalhadores!
Viva os que Lutam em defesa da paz mundial!
Viva os Trabalhadores Brasileiros!
Glória aos que Tombaram pelo Primeiro de Maio!

Ele acabou por ser um dos que tombaram; agora, ele mesmo é o panfleto e distribui-se, disperso e uno, na multidão.

P.S.: O sobrenome de Olavo Hanssen foi retificado segundo nesta nota: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/ato-em-memoria-de-olavo-hanssen-e.html

2 comentários:

  1. Um Brasil de “todos” -
    Ler este texto de fato me fez retroagir no tempo: Ainda pequeno, mas atento, fui vítima da ditadura e das suas limitações. Depois de crescido, na faculdade de jornalismo ainda sob controle, nos amordaçavam os pensamentos. Não se podia andar nas ruas livremente, pois que, elas por vezes, se fechavam em barricadas oficiais: policiais e homens e armas a serviço de nos amedrontar e reprimir. E o povo, se escondia e se protegia como podia. Eu, um garoto, filho de um militar que sofria igualmente com o descontrole oficial - as ordens desastrosas - e meu querido primo, jornalista do Jornal do Brasil, que estava de bandeira em punho tentando ser/existir. Ainda me lembro. E como lembro!
    Como minha dor é subjetiva, não posso mostrar as marcas. Ele, foragido. Crime: lutar pela liberdade do povo. Minha tia, mãe dele, e todos nós na sala da casa de minha avó, no centro do Rio de janeiro - todos com as mãos na cabeça e um monte de homens abrindo gavetas e jogando tudo pelo chão. O que queriam? Eles e suas armas – muitas armas – desejavam panfletos subversivos e motivos para torturar. Eu, com as mãos na cabeça junto de minha irmã e minha mãe, que chorando e assustada, tentava nos proteger deles; os homens armados e donos da verdade. Ao final do estrago mental e da ditadura do canhão contra as flores, eles foram embora levando minha tia, com um capuz preto na cabeça. Seu crime? Ser mãe de um jornalista “subversivo e baderneiro” e comunista. Pois que ela foi torturada, durante vários dias pelo crime de ser mãe.
    Enfim, ler o texto de Pádua Fernandes me fez repensar a vida e os diversos encontros que a mesma nos proporciona. As frustrações alegres e as frustrações tristes, confundidas com as paixões alegre e triste.Gostei muito do texto do Pádua Fernandes, já disse isso, bem sei. Mas o repito para que meu gostar possa seguir em ondas pelo universo a fora. Ressalto este pensamento a ser ajuizado não como uma dicotomia. No entanto, como um axioma em si: “No entanto, poder-se-ia pensar outra coisa - que o excelentíssimo magistrado estaria, na verdade, a conclamar a população, inteira, a lutar pela liberdade: "venham todos, para que não se proíba a manifestação".
    Estamos diante de uma “ditadura populista” e os mecanismos de controle estatal ainda estão ativos como um vulcão demoníaco.
    Que vivamos o simples direito ao amor pleno e as liberdades livres. Pois que eles ainda tentam nos fazer acreditar que somos livres, mas isso é uma falácia. Nossas liberdades não são livres. Sonho com o dia em que não celebremos os índios, as mulheres, os fracos e os homossexuais. Pois que neste dia, não seremos homens e mulheres nem homofônicos, mas tão somente humanos e, por conseguinte, nos igualaremos em nossa humanidade.
    Somos subjetivos e devíamos nos entender na intersubjtividade. Não carecemos de tribunais medievais, mas de amor e respeito ao nosso semelhante. E então, conseguiremos de fato, a tão sonhada liberdade de ser/existir – e este princípio nos lembrará que somos unos e que a unicidade é possível em nossa igualdade humana. Somos todos seres humanos e isso nos basta. Então busquemos a existência única, no ser humano, de corpo e na alma.
    A bela reflexão me trouxe ainda a lembrança da melodia que faz da busca da paz um hino em si.
    Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores. Composição : Geraldo Vandré
    “Caminhando e cantando e seguindo a canção
    Somos todos iguais braços dados ou não
    Nas escolas nas ruas, campos, construções
    Caminhando e cantado e seguindo a canção
    Então, vem vamos embora que esperar não é saber
    Quem sabe faz a hora e não espera acontecer
    Então, vem vamos embora que esperar não é saber
    Quem sabe faz a hora e não espera acontecer”.

    Valeu Pádua Fernandes, por seu grito de alerta e de socorro.
    Miguel Hermógenes

    ResponderExcluir
  2. Prezado Miguel Hermógenes,
    obrigado pelo depoimento familiar, musical e histórico.
    Abraços, Pádua

    ResponderExcluir