O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

30 dias de leituras: O Diabo em Pessoa

30 livros em um mês
Dia 06: Um livro de seu autor favorito.

A Hora do Diabo, de Fernando Pessoa, é um livro construído por Teresa Rita Lopes, reunido a partir de papéis da arca destinados ao projeto. Trata-se de um pequeno livro de prosa. No entanto, como a figura do Diabo não se limita a essas páginas de Pessoa, e nelas podem ser encontradas motivos que voltam na sua poesia e no Livro do Desassossego (nada sei em relação ao Tratado de Astrologia, que não tenho), creio que o breve conto é importante na obra do autor.
Pessoa tentou criar uma versão própria do Fausto, em poesia, de que só temos vários fragmentos, alguns de enorme beleza. A Hora do Diabo, em contrapartida, na montagem de Teresa Rita Lopes, tem começo, meio e fim. A Assírio & Alvim e a Companhia das Letras publicaram-no, e ele pode ser lido também aqui: http://lugardaspalavras.no.sapo.pt/poesia/pessoa/hora_diabo.htm (descontando os negritos introduzidos no texto).
É um "conto de raciocínio", categoria que o autor empregou para outro texto seu em prosa, O banqueiro anarquista. O Diabo, em uma festa de fantasia, dirige-se a uma mulher, mas não para falar-lhe. O que ele diz destina-se a seu filho (está grávida), pois ele será um gênio, e o gênio necessita de uma mensagem do Diabo.
A fala do Diabo é muito interessante. Pessoa discorda de Goethe, de Milton, bem como de visões tradicionais do Diabo:
Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um cavalheiro. Por isso esteja descansada: em minha companhia está bem. Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando assim não fosse da minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo.

O Diabo, enfim, obedece aos poetas - faz parte do seu caráter: "Sou naturalmente poeta, porque sou a verdade falando por engano". E debocha dos teósofos e de vários esotéricos: "Referia-me ao Arcano 18 do Tarot, isto é, da chave de todo o universo, como o é da Cabala, da qual os doutores da Doutrina Secreta sabem mais do que eu."
O Diabo de Pessoa confessa-se um ironista, e "todos os ironistas são inofensivos, exceto se querem usar da ironia para insinuar alguma verdade".
Ele "corrige" Goethe: o Diabo não é o espírito que nega, mas o que contraria; contrariar ideias (o que leva ao desalento), e não atos (o que estorvaria a ação e o giro do mundo). Ele é aquilo a que tudo se opõe e, fazendo isso, permite que tudo exista. E reclama que Goethe deu-lhe "um papel de alcoviteiro numa tragédia de aldeia"!
Afinal, o Diabo de Pessoa é assexuado e não gosta dos corpos:
[...]a gravidez vai por meses lunares, e eu mesmo não posso contar senão por meses de Lua que é minha filha, isto é, a minha cara vista nas águas do caos. Com a gravidez e todas as porcarias da terra não tenho nada que ver, nem sei por que graça me foram medir essas coisas pelas leis da lua que forneci. Por que não arranjaram outra bitola? Para que é que o onipotente precisava do meu trabalho?

Pessoa cria, pois, um Diabo a sua própria imagem. Isto poderia estar no Livro do Desassossego: "Corrompo, é certo, porque faço imaginar. Mas Deus é pior - num sentido, pelo menos, porque criou o corpo corruptível, que é muito menos estético. Os sonhos, ao menos, não apodrecem. Passam."
A frase final, um desabafo do Diabo, é bastante engraçada.
Penso no Arcano 18 do Tarô. O Arcano correspondente ao Diabo é o 15º. Quando os dois se associam em um jogo, isso pode ser sinal de magia que atua sobre o consulente. Invoco, pois, um poeta conhecedor desses sortilégios, Alberto Pimenta, no seu notável ensaio A magia que tira os pecados do mundo (Lisboa: Cotovia, 1995):

A lua é o lugar aonde não se vai, e aonde se quer ir; é o lugar da decepção, do perigo, do charme, da prisão. Da prisão sai-se, abandonado lá uma parte de si, como a raposa que se liberta da armadilha roendo a própria pata. Daí o descrédito da lua, a armadilha onde sempre fica uma parte de quem a contempla. [p. 252]

Essa armadilha também é a poesia, que captura o leitor - mesmo que se liberte, ao menos parte da pele permanecerá entre os dentes que o aprisionaram.
Invertendo o Diabo de Pessoa, sabemos assim por que o poeta é naturalmente demônio.

4 comentários:

  1. Adorei. Essa temática me pega. E as citações vão no ponto...e a lua filha do diabo. Sempre achei...

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  2. Obrigado - Pessoa entendia mesmo desses assuntos.
    Agora espero você entrar no desafio!
    Abraços,
    Pádua

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  3. De diabo em diabo, lembrei deste: http://pt.scribd.com/doc/831894/C-S-Lewis-Cartas-do-Inferno-completas-31-cartas

    que foi muito bem apresentado aqui: http://www.etudogentemorta.com/2011/04/diabolicamente-estranho/

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  4. De fato, há tantos diabos. Seu nome é Legião!

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