O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 10 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Proust e o inarticulado

30 livros em um mês
Dia 04: Um livro que faz você chorar.

Tempos atrás, decidi ler Em busca do tempo perdido (À la recherche du temps perdu), de Marcel Proust. Tinha já uns 25, 26 anos. Sabia da edição publicada pela Globo, traduzida por nomes como Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade, mas era cara. Vi em uma promoção um dos “episódios”, O caminho de Guermantes, na tradução de Fernando Py, e o comprei.
Logo descobri, porém, que não é possível lê-lo sem conhecer os livros anteriores, No caminho de Swann e À sombra das moças em flor (na tradução de Quintana, raparigas e não moças). Na verdade, Em busca do tempo perdido é um romance só, gigantesco – com um sentido de tempo que lembra o Wagner maduro. Da última ópera desse compositor, Parsifal, já se disse algo parecido com isto: passam-se dez minutos na plateia, apenas dois no palco. As longas descrições dos acontecimentos nos salões, em Proust, obedecem a uma lógica parecida.
Após descobrir que não é possível ler Em busca do tempo perdido a partir do meio, tão forte é a unidade da obra, comprei os primeiros livros e, enfim, todos os outros (Sodoma e Gomorra, A prisioneira, Albertina desaparecida - A fugitiva na tradução de Py - e O tempo recuperado). Gostei tanto (foi um prazer prolongado: demorei mais de dois meses para ler tudo), que no ano seguinte reli a Recherche, já em francês, na ótima mediateca da Maison de France no Rio de Janeiro.
Várias passagens do livro gravaram-se na memória – a que mais me emocionou, e voltou a fazê-lo hoje, quando a reli por causa dessa nota, foi a da doença e da morte da avó de Marcel – o personagem narrador do livro. A primeira parte de O caminho de Guermantes termina com uma revelação literariamente magistral da gravidade da doença da avó. Lemos o diálogo dos dois – e ela mantém sua conversação repleta de citações e alusões literárias, com a Madame de Sévigné em destaque.
O problema, contudo, era outro: “J’eus peur qu’elle ne remarquât la façon dont elle prononçait ces mots.”, ele teve medo de que ela notasse a forma como ela pronunciava essas palavras. Na última frase, lemos que ela teve um derrame e havia percebido que não adiantava escondê-lo. A doença não se revelava nas palavras – ela ainda era senhora do seu discurso – mas na dificuldade de articulação que corroía lentamente a expressão.
Nenhuma das várias mortes na Recherche é tão marcante quanto a da avó, creio, nem mesmo a de Albertine, que se dá de forma repentina (não contarei como) e longe de Marcel. No primeiro capítulo da segunda parte de O caminho de Guermantes, são descritos o declínio e a morte da avó, previstos por um médico que, bem mais adiante, é descrito impiedosamente pelo narrador: ele somente quis saber se a avó já havia morrido há muito tempo para certificar-se da exatidão científica de seu diagnóstico...
Ela tentou suicidar-se depois de perder a possibilidade de articular as palavras. Quando percebeu que já ninguém mais compreendia o que ela dizia, deixou de falar, “domada por sua própria impotência”. Ela foi surpreendida tentando abrir a janela, e a filha, mãe do narrador, em uma “luta quase brutal”, impediu que a doente se matasse.
No entanto, ainda restaria um som: já necessitando de balões de oxigênio, a senhora inconsciente emitia, acompanhado em surdina por um murmúrio incessante, “um longo canto feliz que enchia o quarto, rápido e musical”. Ele tinha uma origem puramente mecânica, o narrador o sabia. Mas era um canto, que se fez ouvir até sua morte – “um nouveau chant s’embranchait à la phrase interrompue”, parecendo vir de uma fonte inesgotável.
O momento da morte não é nada sereno, no entanto, e é descrito com uma dramaticidade (em um tempo bastante rápido, para Proust: um parágrafo curto) que me comoveu novamente hoje, ao relê-lo.
A avó é lembrada em alguns momentos no restante da obra – e o narrador se arrepende de não tê-la tratado melhor em certos momentos (como da foto que tiram juntos). Ela permanece incessantemente nas alusões da mãe do narrador.
Albertina desaparecida tem um trecho revelador, em que Marcel afirma que sua esperança era de esquecer sua amada, Albertine, o que ele sabia que aconteceria, como ele já tinha esquecido Gilberte (que, mais adiante, ascenderá socialmente e casará com Robert Saint-Loup, amigo do narrador), a Madame de Guermantes (por quem teve uma paixonite de jovem) e sua avó. Nesse mesmo livro, escreve que o mal (a dor) não tem lições a receber da memória: o mal que ele causou à sua avó, o que Albertine lhe causou eram um último laço, assim como um homem que esqueceu as belas noites passadas nos bosques ao luar, mas sente ainda o reumatismo que essas noites lhe causaram.
O livro é escrito contra essa lei do esquecimento – essa busca do tempo perdido é um esforço; no famoso último parágrafo de O tempo recuperado, lemos que não parecia que Marcel “teria ainda a força de manter por muito tempo ligado a mim esse passado que já descia tão longe”. O livro é fruto dessa força.
Volto à avó. A sutileza do discurso de Proust chega aos píncaros no preciosismo da fala dela, com suas mil alusões e referências, superando as personagens nobres mais esnobes. É significativo que seja esse o personagem que vá perder a capacidade de articular as palavras. Creio que isso já prenuncia o fim da alta sociedade descrita por Proust, que será precipitado pela I Guerra Mundial – em O tempo recuperado, vê-se que uma nova elite toma o palco.
Se em sua morte é lícito ver o prenúncio do eclipse daquela sociedade que descendia do Antigo Regime, penso ainda que podemos ver, na sua agonia, uma poética: o canto sem palavras que vinha da agonizante, uma longa frase aparentemente inesgotável, que por vezes se interrompia e era retomada em outra tonalidade, não poderia ser equiparada, mais do que à música de Vinteuil (personagem de Proust, sua arte é um dos eixos de todo o livro) ou à de Wagner, à própria música da frase de Proust? Essa longa frase – acompanhada de um murmúrio incessante – não seria a própria estrutura desta obra grandiosa que, devido a essa mesma estrutura, traz em si a comovente queixa surda de tudo que não foi descrito e foi deixado sem voz, inarticulado, no tempo?



P.S. No blogue de Niara de Oliveira, pode-se ver quem está participando destes 30 dias de leituras.

5 comentários:

  1. Engraçado não ter lembrado desse livro quando fui escrever sobre o livro que me fez chorar. Talvez porque na minha lista estava como o primeiro livro que me fez chorar... O caminho de Guermantes foi também o capítulo mais marcante e eu o li depois da morte da minha avó (a única que tive), a qual assisti morrer. Nada fácil essa leitura... O li numa das longas viagens de ônibus entre Pelotas e o Rio de Janeiro para as reuniões da direção da ENECOS, no tempo da faculdade. Me foi emprestado por um colega, que não chegou a se tornar amigo mas por quem guardo um carinho especial. Da nossa última troca de livros, fiquei eu com Uma Casa no Fim do Mundo de Michael Cuningham (acho que é assim a grafia) e ele ficou com "A Mulher no Terceiro Milênio" da Rose Marie Muraro, que nem era meu.
    Chorei de novo lembrando da minha emoção lendo Proust, lembrando das emoções que me moviam naquela época e chorei com as inquietações causadas pelo teu texto desconcertante, Pádua. Só posso te agradecer. :'(
    Um beijo.

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  2. Eu tentei começar com Sodoma e Gomorra (a decadência outra vez) o que, claro, revelou-se completamente impossível. Em Busca do Tempo perdido não foi um livro fácil pra mim, li-o justamente em um período de grandes perdas afetivas e ele mais me parecia um espelho fosco que uma estrada aprazível. Nunca voltei a ele (um dos poucos que não reli) e não sabia ao certo porque, até que li este teu post. Não me lembro de ter chorado lendo, antes, o livro fazia-me árida, mesmo no que tanto gostava. Hoje, chorei. Obrigada.

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  3. Obrigado a vocês duas. Responderei em uma nota futura, em que retornarei a Proust.

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