O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 31 de dezembro de 2016

Nota para 2017: Sá-Carneiro, "em mira o grande salto"

2016, para mim, ficou marcado, entre outros episódios, pelo centenário da morte do escritor português Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). "Vencer às vezes é o mesmo que tombar", escreveu, e escolheu a dispersão de si mesmo em Paris, num quarto de hotel, dia 26 de abril, aos 25 anos.
No epistolário que manteve com Pessoa (cujas cartas infelizmente se perderam), gostaria de lembrar
da carta de 24 de agosto de 1915. Nela, Sá-Carneiro comparou-se ao amigo, afirmando-o superior, e se definiu como artista:
É assim, meu querido Fernando Pessoa, que se estivéssemos em 1830 e eu fosse Honoré de Balzac lhe dedicaria uma livro da minha COMÉDIA HUMANA onde você surgiria como o Homem-Nação [...] E é meditando em páginas como as que hoje recebi procurando rasgar véus ainda para além delas  que eu verifico a nossa grandeza, mas, perante você, a minha inferioridade. Sim, meu querido amigo  é você a Nação, a Civilização  e eu serei a grande Sala Real, atapetada e multicor [...] Amigo, confia-me, na crise em que ora se debate de se haver enganado: pois para si criar beleza não é tudo, é muito pouco  que "beleza" a ferro e fogo eu juro que você criou. A meus olhos pois o seu medo pode unicamente ser o de haver "criado beleza errada" (Estou certo que não, mesmo assim  é mera hipótese a minha suposição: um dia breve você encontrará a linha que ajustará tudo quanto volteia antagônico no seu espírito e tirará a prova rela de sua "razão"). Mas o meu caso é bem mais terrível a certas horas: Para mim basta-me a beleza  e mesmo errada, fundamentalmente errada. Mas beleza: beleza retumbante de destaque e brilho, infinita de espelhos, convulsa de mil cores  muito verniz e muito ouro: teatro de mágicas e apoteoses com rodas de fogo e corpos nus.
A impressão que apenas Sá-Carneiro tinha naquela época, e que para quase todos seria motivo de escárnio, confirmou-se décadas depois. Nos 50 anos da morte de Pessoa, o amigo já tinha sido sido considerado um dos nomes maiores da "nação", como Camões e Vasco da Gama.
O mesmo nunca ocorreu com Sá-Carneiro, embora reconhecido postumamente na condição de "um dos pais fundadores do século" (Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra, Século de ouro: antologia crítica da poesia portuguesa do século XX) e um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos. Ele, de fato, não tinha o objetivo de escrever um livro que pudesse ter como título "Portugal", muito menos uma obra cuja Mensagem, em certo sentido, fosse a nação. Jamais o criticaria por isso...
Creio ser muito necessário desconfiar da civilização, da nação e da beleza, e que o artista pode tratar todas elas à base da implosão. Dito isso, cito parte do "Escala", de Sá-Carneiro, em que ele trata daquela beleza que procurava:
Eh-lá! mistura os sons com os perfumes,
disparata de cor, guincha de luz!
Amontoa no palco os corpos nus,
Tudo alvoroça em malabares de lumes!
Recama-te de Anil e destempero,
Tem coragem  em mira o grande salto!
Ascende! Tomba! Que te importa? Falto
Eu, acaso?... Ânimo! Lá te espero.
Que nada mais te importe. Ah! segue em frente
Ó meu Rei-lua o teu destino dúbio:
E sê o timbre, sê o oiro, o eflúvio,
O arco, a zona – o Sinal de Oriente!
A escala dos corpos nus, das cores, perfumes, do palco  e do (grande) salto com outros. Ânimo. Lá, em 2017, seremos algo disto, ouro, eflúvio, arco... Espero.

Uma retrospectiva 2016: os direitos em colapso

Em 2016, consumou-se o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, mas, ao contrário do que ocorreu com Fernando Collor, a crise política não diminuiu, apesar do apoio político que Michel Temer ainda recebe de boa parte dos meios de comunicação. Marcos Nobre, em texto publicado na revista Novos Estudos do Cebrap, "1988 + 30", fala de colapso institucional:
O impeachment foi o sintoma mais grave de que as instituições entraram em colapso. Progressivamente, passaram a funcionar de maneira disfuncional, descoordenada, e mesmo arbitrária. Para ficar apenas no dia-a-dia dos três poderes: o Executivo perdeu capacidade de liderar o governo; o Legislativo instalou uma pauta própria, independente do governo; o Judiciário estabeleceu um regime cotidiano de decisões que se afastou de qualquer padrão conhecido de jurisprudência. Há poder de fato, mas não há poder legítimo.
wishful thinking (se consideramos que se trata de uma opinião sincera) de que "as instituições estão funcionando normalmente" não se verifica, tampouco no Judiciário. Nobre trata também dessa questão e da insegurança jurídica da crescente instrumentalização política desse Poder:
O Judiciário deixou de atuar exclusivamente segundo a lógica política indireta que o caracteriza — aquela dos pontos e das curvas que é própria do direito — para agir de maneira diretamente política sempre que acha necessário fazê-lo. Não aconteceu apenas em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi também diretamente política a decisão do juiz Sérgio Moro de divulgar sem restrições os grampos das conversas telefônicas do ex-presidente Lula, por exemplo. Como são diretamente políticos os vazamentos de pedidos de prisão, de indiciamento e de investigação que correm sob segredo ou mesmo sigilo de justiça. Até o momento, parece haver uma grande tolerância social para com a ausência de curvas visíveis nas decisões judiciais. Tolerância perfeitamente em consonância com a posição que assumiu o Judiciário de tutelar o país em meio à crise política. E só pôde se colocar nessa posição porque as instituições entraram em colapso, o próprio Judiciário, inclusive. Não se trata de uma crise conjuntural. Nada vai voltar a ser como antes depois que passar o vagalhão da Lava Jato. Porque a instabilidade não vem da operação, mas, ao contrário, vem do modo de funcionamento do sistema político que ela escancarou.
O modus operandi das instituições foi, de fato, escancarado; talvez o momento de abertura mais esclarecedor tenha sido a divulgação de gravação de conversa do ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, com Romero Jucá, em março deste ano. Machado fala que "a solução mais fácil era botar o Michel" e fazer "um grande acordo nacional", e Jucá acrescenta, "com o Supremo, com tudo", com o fim de parar a Lava Jato.
Enquanto isso, esperam-se outras delações, vindas da Odebrecht, que está sendo chamadas internacionalmente de "máquina de propina". Entende-se que, num país em que os escândalos se medem com bilhões, como nos indícios de superfaturamento da usina de Belo Monte, os Estados quebrem e a elite política queira fazer novos arranjos institucionais de saques da riqueza comum e dos direitos alheios.
Para tanto, ocorreu algum grande acordo? Veem-se grandes dissonâncias, apesar de momentos evidentes de pacto como a aprovação de impeachment e a desconstituição de direitos (a emenda constitucional n. 95/2016). Em outros momentos, a luta pelo poder torna-se evidente, entre os políticos e entre os Poderes instituídos. Ocorreram diversos atritos entre Executivo, Legislativo e Judiciário; em 14 de dezembro, decisão do ministro Fux, do STF, mandando refazer votação na Câmara dos Deputados do projeto anticorrupção que se afastou do projeto de iniciativa popular apoiado por parte do Ministério Público (especialmente a turma da Lava Jato), não gerou críticas apenas do Legislativo, como de seu colega Gilmar Mendes.
Trata-se de "briga de cachorro grande", escreveu André Dahmer, que acrescentou às perplexidades atuais esta perturbadora questão: "Você acha que cachorros devem controlar instituições?"
A produção do direito é uma atividade fundamentalmente política; por óbvio, em um ano como este, o direito brasileiro teria que ter sofrido diversas torções incompatíveis com critérios de integridade e coerência. Como os exemplos são diversos, listo apenas alguns - houve muito mais, espero ler reais retrospectivas que abordem os retrocessos jurídicos sofridos. Não ousei mencionar os projetos legislativos ainda não aprovados no Congresso Nacional pois se trata de matéria quase inumerável.

domingo, 25 de dezembro de 2016

Apequenamento da imprensa, estreitamento da literatura

Esta nota é apenas um desabafo no âmbito das coisas que se perderam em 2016. Provavelmente não houve nenhuma alteração na grande imprensa brasileira, nos últimos anos, que não tenha sido regida pela diretriz do dumbing down. O jornalismo digital, com sua política de clique a qualquer custo, baseada em bobagens apelativas, notícias falsas ou não verificadas, não mudou esse processo.
A literatura é uma das artes que sofrem nesse processo. Como sinal desse apequenamento generalizado da imprensa brasileira, os jornais vão extinguindo seus cadernos literários, e dando mais razões para que deixemos de lê-los.
O término do Sabático de O Estado de S.Paulo, anunciado curiosamente sob o pretexto de "oferecer mais conveniência aos leitores do jornal" (para esse jornal, a leitura é inconveniente?), o fim do caderno Prosa de O Globo, em setembro de 2015, curiosamente "comemorando" o aniversário do caderno, são algumas das imolações recentes. Quando tuitei a extinção do Guia de Livros, Discos e Filmes da Folha de S. Paulo, anunciada sob o título sorrateiro de estreia de novo projeto gráfico e editorial e realização de "mudanças", não vi nenhuma repercussão, talvez em razão do formato reduzido das resenhas publicadas, pouco maiores do que um tweet;  mas ainda eram melhores do que nada.
Continuam vivos o Suplemento de Minas e o de Pernambuco. A revista Brasileiros, na contramão dessa tendência, criou um caderno de literatura há poucos anos. Oxalá continue. A revista Continente prossegue, e o jornal Rascunho também.
A grande imprensa diária, porém, quase toda, decidiu que a literatura não é mais com ela, exceto pelos nomes e prêmios ligados aos anunciantes. A lógica do star system, tão nociva à arte, tão cultivada pelo marketing, impera. Não mais se poderá acompanhar os lançamentos da literatura brasileira, havendo tantos nomes interessantes em pequenas editoras, por esses periódicos.
Outra questão, correlata, está no marketing, a assumir gradativamente o comando das linhas editoriais, vem presidindo o fim dos departamentos de literatura em editoras. É o que me contam amigos editores.
Com o fim, por exemplo, do departamento de literatura da editora Ática, pessoalmente sinto nostalgia: na escola, algumas edições da série Para gostar de ler foram fundamentais para me interessar mais por literatura brasileira.
Em termos coletivos, este é mais um sinal da retração da literatura que vem nas gigantescas editoras especializadas em infantojuvenis, que se concentram nos livros didáticos, em geral de maior tiragem. A suspensão das compras governamentais é um fator importante dessa crise, e a forma como a gestão nessas grandes corporações é estruturada é outro fator.
Nesse ponto temos outro fator de estreitamento da literatura na cena pública, mas há  outros. O ódio à educação, exceto como oportunidade de negócios (venda parcelada de diplomas, compra de autorizações, promessas e programass eleitoreiros), é uma das características fundamentais da elite brasileira, que é, ela mesma, pouco educada, o que foi tema de artigo recente de Matias Spektor (https://www.google.com.br/amp/m.folha.uol.com.br/amp/colunas/matiasspektor/2016/12/1843582-a-formacao-da-elite-brasileira-patina-e-condena-o-pais-ao-atraso.shtml).
O espancamento de professores e alunos pelas polícias comandadas pelo PSDB em São Paulo e no Paraná,  pelo PMDB no Rio de Janeiro,  pelo PT na Bahia, e em outras partes do país,  mostram que se trata de uma questão suprapartidária. Os projetos de "escola sem partido", leis da mordaça, correspondem a outra feição desse ódio, bem como a lucrativa (para outros) entrega de escolas públicas para organizações sociais.
Esse ódio, claro, afeta a literatura. E a grande imprensa o fomenta, seja atuando como assesoria para as medidas do grupo que tomou a presidência da república (como a estupidez da reforma do ensino médio), seja emprestando seu megafone, sem contraponto algum, a figuras que nada entendem do assunto, como o ex-ministro do STF e da Defesa (entre outras funções públicas, inclusive a de alterar o texto da assembleia nacional constituinte: http://m.migalhas.com.br/quentes/187605/historia-dos-artigos-da-constituicao-que-nao-foram-votados), que recentemente deu uma longa entrevista atacando as universidades públicas. Também nesses momentos a imprensa se apequena.
Por pudor, não cito a matéria . Se essas instituições desaparecessem amanhã,  e ficássemos apenas com os grandes conglomerados privados que angariaram o título de universidades (muito incentivadas na penúltima e na antepenúltima administrações federais), além do corte gigantesco na produção acadêmica nacional, teríamos o desaparecimento de várias áreas do saber, menos lucrativas para esses conglomerados,  seja por exigirem mais investimentos,  seja pelo menor número de clientes.
Uma das áreas afetadas seria exatamente a Literatura, que tem diversos centros de destaque nas instituições públicas.
Creio que uma resposta possível a esse quadro seria o engajamento dos escritores, nessa condição de artistas, contra esse quadro de estreitamento e seus fatores.

domingo, 18 de dezembro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXXII: Cardeal Arns, "propagandista da rebelião popular"

Morreu Dom Paulo Evaristo Arns no último 14 de dezembro, com 95 anos. Seu velório, na Catedral da Sé, durou da quarta até a sexta-feira, dia 16, com missas de duas em duas horas. Assistia a uma delas, na tarde da quinta-feira. A foto abaixo, que tirei naquele momento, apenas sugere a multidão que lá estava para se despedir do religioso.

Li algumas das diversas notícias sobre o Cardeal, Arcebispo Emérito de São Paulo, um dos personagens mais importantes da história recente do Brasil. Elas abordaram a formação da Comissão Justiça e Paz, a substituição de Agnello Rossi, colaborador da ditadura militar, a atuação de Arns após o assassinato de Alexandre Vannucchi Leme, o ato inter-religioso por ocasião do assassinato de Vladimir Herzog, sua reunião com Jimmy Carter quando o presidente dos EUA visitou o Brasil, o apoio ao movimento pela anistia e ao movimento contra a carestia, seu auxílio a Adolfo Perez Esquivel, prêmio nobel da Paz preso no Brasil, a Pastoral de Direitos Humanos, o projeto Brasil: Nunca Mais, a divisão de sua Arquidiocese que o Vaticano promoveu para enfraquecê-lo...
São muitos os episódios que, em regra, ressaltam a coragem. Pois ele teve diversos inimigos que, em regra, agiam insidiosamente. Foi o caso, por exemplo, de uma edição falsa do jornal da Arquidiocese paulista, O São Paulo, em 1982, com uma declaração de mea culpa, inventada, atribuída a Arns sobre a infiltração do comunismo na Igreja Católica. Apesar de a declaração ter sido bem recebida por nomes conservadores da hierarquia católica, foi essa Igreja, e não o Deops/SP (imprestável para investigar crimes da direita), que descobriu uma das gráficas onde rodara a falsificação.

No Deops/SP, ele foi objeto de mais de quarenta fichas. Há centenas de páginas de documentos sigilosos da época da ditadura militar sobre Arns, que, por sinal, foi ameaçado de morte diversas vezes. Ao lado, vemos um panfleto da "Vanguarda de Caça aos Comunistas", um dos grupelhos terroristas de direita que se insurgiu contra o lentíssimo processo de abertura política (que ameaçava, em termos de cargos, verbas e oportunidades de negócios, os agentes da repressão).
O documento está no acervo Deops/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Um dos nomes marcados era o de Evaristo Arns, o segundo a ser mencionado: o primeiro, Dom Adriano Hipólito, e o terceiro, Pedro Casaldáliga, ambos de atuação tão conhecida, também foram importantíssimos nomes da hierarquia católica que se engajaram contra a ditadura militar.
Arns chegou a ser chamado de Satanás e de "propagandista da rebelião popular" por assessor do então Ministro da Justiça Ibrahim Abi Ackel, no Correio Braziliense em 30 de julho de 1980. Como a rebelião era uma necessidade da época da ditadura militar, queria recordar somente alguns destes momentos insurgentes.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXXI: Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo: Prêmio e relatório final



Neste dia 12 de dezembro, às 18 horas, no auditório do Ibirapuera, será entregue pela primeira vez o Prêmio de Direito à Memória e à Verdade Alceri Maria Gomes da Silva, criado para atender a uma das recomendações da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo.
A cerimônia ocorrerá durante o 4o. Festival de Direitos Humanos da Prefeitura. O jurista Fábio Konder Comparato receberá o troféu; o Centro de Arqueologia e Antropologia Forense da Unifesp e a cineasta Tata Amaral receberão menções honrosas.
Os vencedores desta edição foram escolhidos pelos atuais membros da Comissão: Adriano Diogo, Audálio Dantas, Camilo Vannuchi, Fermino Fecchio e Tereza Lajolo (coordenadora). Já foram membros Fernando Morais, que a deixou em 2015 e foi substituído por Diogo, e Cesar Cordaro, cuja vaga foi preenchida por Vannuchi em 2016.
O nome do Prêmio nasceu de sugestão de Vivian Mendes, assessora da Comissão. Alceri Maria Gomes da Silva pertencia à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Foi enterrada no Cemitério de Vila Formosa, na cidade de São Paulo, mas seu corpo continua desaparecido. Vejam nesta ligação, da Comissão "Rubens Paiva", a história da militante e os documentos concernentes.




Em 15 de dezembro, no auditório da Prefeitura (Viaduto do Chá n. 15, 7o. andar), às 11 horas, será entregue o relatório final da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo. Criada com base na lei municipal n. 16012, de 16 junho de 2014, ela foi instalada em 26 de setembro daquele ano, e encerrará suas atividades neste mês de dezembro de 2016.
O documento ficará disponível, pelo menos durante a administração de Fernando Haddad, no sítio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania.
A Comissão já havia publicado um relatório parcial em 2015 e outro, em 2016, com suas recomendações.
O documento final trará capítulos sobre a própria Comissão, sua competência e suas atividades, o regime de exceção, uma linha do tempo segundo os Prefeitos da cidade, bem como sobre a perseguição aos trabalhadores municipais, desaparecimento e ocultação de cadáveres, repressão aos movimentos sociais, os indigentes e o desaparecimento no serviço funerário, as recomendações  e uma seção de fotos.

P.S.: Os relatórios podem ser baixados aqui: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/comissao_da_memoria_e_verdade/index.php?p=223130

Esta nota foi escrita no âmbito da Blogagem Coletiva #DesarquivandoBr, cuja chamada pode ser lida nesta ligação: https://desarquivandobr.wordpress.com/2016/11/29/nova-mobilizacao-do-desarquivandobr/

domingo, 11 de dezembro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXX: Militar ou "civil-militar"? Continuidades da ditadura

Esta nota foi escrita para a blogagem coletiva #DesarquivandoBr, cuja chamada pode ser lida nesta ligação: https://desarquivandobr.wordpress.com/2016/11/29/nova-mobilizacao-do-desarquivandobr/

Recebi uma coletânea de textos sobre a ditadura militar, e um ou outro autor usa o termo "civil-militar", alguns "empresarial-militar", e vi quem falasse, a partir do livro, em ditadura "civil-empresarial". Entendo o ponto dos que usam as duas primeiras qualificações, mas acho a terceira fruto de uma grave alucinação histórica.
Pena que os argumentos dos autores não eram bons; o que significa, em termos do poder efetivo na administração do país e da configuração dos chamados "objetivos nacionais", que 39 médicos, em 13 anos, tenham frequentado a Escola Superior de Guerra? Isso bastaria para tornar a ditadura "civil-militar"?



Militantes políticos, na época, tinham outra impressão. Gregório Bezerra, que já tinha décadas de militância comunista, nas suas Memórias (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011), escreveu: "vejo e sinto que a ditadura militar fascista que tiraniza a maior parte do nosso povo é cada vez mais repudiada pelas massas trabalhadoras e por todos os patriotas, anti-imperialistas e democratas".
Muitos são os exemplos. Vejam esta carta, publicada pelo Comitê Brasileiro pela Anistia - São Paulo, dos presos políticos desse Estado anunciando nova greve de fome em 10 de março de 1979: "No momento em que a ditadura militar esmera-se em descaracterizar-se enquanto tal, acenando com 'abertura política', 'liberdade', 'anistia' etc, somos forçados a lançar mão desse recurso em defesa de uma direito elementar mas fundamental para nós."
A carta encontra-se no acervo Deops/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Jacob Gorender, em Combate nas trevas (cuja edição mais recente foi feita pela Expressão Popular), acentua a questão da militarização do Estado brasileiro, divergindo, porém (creio que com razão), dos que enxergavam na ditadura um caráter fascista:

terça-feira, 29 de novembro de 2016

"A bomba jogada agora/ para explodir por vinte anos"



A bomba jogada agora
para explodir por vinte anos
e substituir os tijolos por areia
e tornar a areia no pó
do que jamais voltará a se erguer
nem mesmo pelo vento
pois afundará até tocar
o centro da terra
e esvaziá-lo completamente
e depois fazer o oco
ascender à superfície do planeta
já sem terra alguma
o planeta apenas a atmosfera
toda formada pelos gases
da bomba jogada agora
para explodir por vinte anos
e substituir a atmosfera
pelo mau hálito do Estado
que só se alimenta de cassetetes
programas de tevê tiros juros
liminares dívidas orações
braços quebrados de militantes
olhos vazados de fotógrafos
marcas de botas
sobre as costas de estudantes
e outras úlceras da política
que explodirão por vinte anos
depois de vomitadas
pelo estômago do Estado
somente saciado
quando a bomba lançada agora
enfim chegar ao chão
e substituir o solo pela cratera
aposentadas rotação translação
e outros movimentos planetários
pois a cratera dispensará a matéria
fatigada
após explodir vinte anos
e todos as naves caírem afundarem
já sem terra à vista
que não tenha sido vendida pelo Estado
em troca de vinte anos
de explosão
de rios trocados por rejeitos
hospitais tornados em ágio
miseráveis convertidos no pó que os cobre
vendido em troca da pele
escolas e bocas
fechadas pelo arame farpado
nascido das sementes transgênicas
com que a política se reproduz
até o desfazimento do Big Bang
e suas consequências
já superadas pelo Estado
que num instante arremessou
a aniquilação do tempo

domingo, 27 de novembro de 2016

Os mortos têm voz: 10 anos dos crimes de maio e a continuidade das chacinas

Dia 17 de novembro, na sala dos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ocorreu o lançamento do livro Mães em luta: dez anos dos crimes de maio de 2006, editado pela Ponte Jornalismo, em projeto editorial de Danilo Dara e Debora Maria da Silva, das Mães de Meio. Foram lançados também a campanha Black Brazilians Matter e o dvd Vídeo-Memorial Mães de Maio, que reúne quatro curtas (Apelo, Chapa, Um memorial para mães e filhos, Mães - sobre reparação psíquica).

O fotógrafo Sérgio Civil fez uma pequena exposição da série "Piratas Urbanos".
O evento acabou com uma caminhada até a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, que não acompanhei, mas foi filmada. Tive de sair antes e não ouvi todas as falas.
Na página das Mães, há uma série de vídeos e matérias. Vi que a Revista Cláudia anunciou, em longa matéria, o lançamento do livro, que foi organizado por André Caramante. Sobre o evento, Débora Melo escreveu para a Carta Capital o texto "Consciência Negra: luta é contra a violência estatal, de ontem e de hoje", ainda mais longo do que o da Ponte Jornalismo. O Instituto Geledés enfatizou a campanha no texto que publicou.
Nem todos os anunciados na matéria do Cidade Lúdica conseguiram estar presentes: Eliane Brum, a autora do prefácio, apareceu, mas teve de ir embora antes de o evento começar (o atraso foi de quase uma hora) e Chico César teve um conflito de agenda.

Na foto ao lado, da esquerda para a direita, sentados, Milton Barbosa (Movimento Negro Unificado), Rosana Cunha (mãe de alunos secundarista), Silvia Bellintani (psicóloga e jornalista, viúva de Milton Bellintani, homenageado no livro), Rosária Ramalho (Secretária Municipal de Cultura), Paulo Magrão (Associação Capão Cidadão), Ângela Mendes de Almeida (Observatório da Violência Policial e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos), Felipe de Paula (Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania), Alípio Freire (jornalista e ex-preso políticos); em pé, Danilo Dara (Mães de Maio), Eliane Elias (S.O.S. Racismo) e Debora Maria da Silva (Mães de Maio). Eliane Elias está com a palavra na foto. A Prefeitura de São Paulo e a Associação Capão Cidadão apoiaram a obra.
O evento foi carregado de emoção e seguiu tranquilo no auditório mais do que lotado (muitos ficaram de pé, inclusive Latuff, autor da arte da bandeira das Mães de Maio na primeira foto). O único momento de inquietação deu-se quando um jornalista da TV Cultura, de terno, foi confundido com um P2; mas ele se identificou e continuou filmando o evento.
Somente consegui filmar algumas falas. Debora Maria da Silva, a face mais pública das Mães, que perdeu irmão, o pai do filho e seu filho para a violência policial, acusou que "Se os crimes de maio tivessem tido punição, com certeza não teríamos mães de 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, de 2014, de 2015 e de 2016." Com efeito, o livro conta histórias de violência até 2016;
Depois, Danilo Dara fez uma homenagem a Guilherme da Silva Neto, o Guilherme Irish, assassinado pelo próprio pai por participar de uma ocupação escolar em Goiânia, e chamou Rosana Cunha, mãe de um dos secundaristas presos com ajuda de um agente do Exército, que continua a espionar e reprimir movimentos sociais. Ela contou que seu filho usa lentes de contato e estava com soro, que foi considerado uma "arma química" pela polícia.
A criminalização do protesto permanece, o que era previsível depois da impunidade generalizada da brutal repressão aos movimentos de 2013. Continuamos nos tempos do vinagre tratado como arma de destruição em massa.
Ângela Mendes de Almeida lembrou do assassinato do jornalista Luiz Eduardo Merlino, seu ex-companheiro, durante a ditadura, dos processos contra Brilhante Ustra, da impunidade que permanece e dos movimentos de hoje em prol de uma nova ditadura, da "cambada de cafajestes, que são o núcleo fascista, que tomaram o palco da Câmara municipal [federal] para defender a volta dos militares e que gritavam o nome de seu herói. Qual o nome de seu herói? Sérgio Moro."
Consegui gravar Janete Arruda; mãe de uma menina internada, conforme sua fala ocorreram espancamentos de jovens em unidade da Fundação Casa, na unidade de internação Parada de Taipas. Ela disse: "as que têm visita de pai e mãe não apanharam tanto quanto as meninas que não têm, e as meninas que não têm, ninguém tem acesso a elas". Ela agradeceu à Ponte, que fez uma reportagem e a entrevistou: "Unidade em Taipas teria vivido manhã de tensão na sexta (11). Governo nega: diz que unidade é 'modelo' e tem até piscina". Dia 18, a Defensoria Pública esteve lá e colheu depoimentos das jovens.
Fausto Salvadori Filho, que não consegui gravar, falou das iniciativas do Estado para criminalização da Ponte Jornalismo e das Mães de Maio, fazendo referência ao vídeo censurado da Ponte que mostra membro do Ministério Público afirmando que as Mães atacavam os policiais que eram contra o tráfico de drogas. Bruno Paes Manso refere-se ao episódio no livro. Lembrou também do desembargador Ivan Sartori, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que sugeriu, dias depois de votar pela absolvição no caso do massacre do Carandiru (em 27 de setembro deste ano) e ser criticado pela decisão, que "a imprensa e organizações de direitos humanos são financiadas pelo crime organizado".



O livro foi escrito por jornalistas da Ponte, que contam histórias de vítimas, desde 2006, da violência do Estado. Ao lado, está o sumário. Os capítulos são intitulados pelas mães ou por outros sobreviventes (por exemplo, Francilene Gomes Fernandes é a irmã de um dos mortos dos crimes de maio; a estadunidense Waltrina Middleton teve sua prima assassinada no Massacre de Charleston em 2015).
Este livro, indo além dos crimes de maio, além de ampliar o horizonte geograficamente, além do Estado de São Paulo e do Brasil, faz o mesmo no recorte temporal, pois as chacinas não pararam em 2006.
A última vítima do livro foi assassinada em 2016. Luana Barbosa dos Santos (exceção deste livro, é ela, e não os parentes sobreviventes, quem nomeia o capítulo, escrito por Tatiana Merlino), negra, lésbica e moradora da periferia de Ribeirão Preto, foi espancada por policiais militares, entrou em coma e morreu. Ela estava com o filho, que presenciou a ação criminosa, mas os policiais, felizmente, não o mataram também. Um traço em comum dessa história com as outras é a impunidade:
Em maio de 2016, o juiz Luiz Augusto Freire Teotônio, de Ribeirão Preto, negou o pedido de prisão temporária dos três policiais acusados de espancamento. O juiz ainda remeteu os autos do processo à justiça militar, alegando que não se trata de um crime contra a vida. O promotor de justiça Eliseu José Gonçalves recorreu da decisão do juiz, alegando que houve homicídio. Até a conclusão deste livro, o recurso aguardava julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo [...]
Nesses momentos, como nas histórias do livro, vê-se o Judiciário como o Poder político garantidor da polícia, e não dos direitos fundamentais, agindo em estreita simbiose com o Executivo.
A noção do inimigo interno, que fundamenta o genocídio da juventude pobre, preta e periférica, é filha da doutrina de segurança nacional. E é ela que é aplicada quando decisões obviamente inconstitucionais de busca e apreensão coletiva em todo um bairro são proferidas, sob o pretexto de medida excepcional - o último caso desses que percebi ocorreu contra a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, no último 21 de novembro. Pretexto duplamente falso, por sinal, se temos em mente o papel histórico desse Poder. Excepcional, de fato, seria o Judiciário brasileiro garantir os direitos fundamentais da população periférica...
O livro Mães em Luta conta como prefácio uma crônica de Eliane Brum, publicada originalmente na versão brasileira de El País, que me parece analisar bem esta situação de barbárie institucionalizada pelos Poderes do país:
[...] onde está o golpe? E quem são os golpeados neste país?
Basta seguir o sangue. Basta seguir o rastro de indignidades dos que têm suas casas violadas por agentes da lei nas periferias dos que têm seus lares destruídos pelas obras primeira da Copa, depois das Olimpíadas, dos que têm suas vidas roubadas pelos grandes empreendimentos na Amazônia, dos que abarrotam as prisões por causa de sua cor, dos que têm menos tudo por causa de sua raça [...]
E muitos outros. Estou completamente de acordo com a jornalista.
A campanha Black Brazilians Matter já foi traduzida para o espanhol, o francês e o inglês; leiam na página das Mães de Maio.

Uma nota sobre a formulação escolhida. Sobre o movimento dos EUA, Black Lives Matter, alguns ousam dizer que o lema está errado, ou é racista, pois não são apenas as vidas negras que importam, mas todas.
Há limites seja para a ingenuidade, seja para a leviandade ou para a má-fé, mas essas pessoas os ultrapassam sem muito constrangimento. Em primeiro lugar, o movimento não diz " vidas dos negros importam"; se o fizesse, seria contraditório com "todas as vidas importam". Como não o faz, a sanidade exige constatar que "as vidas dos negros importam" não só não contradiz, mas está contido em "todas as vidas importam".
Se está contido, por que destacar essas vidas? Uma pessoa muito alienada, que leia (ou não) aqueles autores que ganham dinheiro clamando "não somos racistas", poderia fazer a pergunta. Respondo. Porque os dados demonstram que esse grupo, o dos negros, é alvo preferencial dos órgãos de vigilância e repressão do Estado, de uma discriminação social específica que pede ações próprias. Há necessidade de foco para atacar o problema.
Para quem só entende metáforas médicas, dizer que todas as vidas importam é neutro, é como dar um antibiótico genérico para uma bactéria que exige medicação específica. Não funcionará. Poderá levar à morte, que é, no fim, o resultado da postura dos repetidores do mantra "all lives matter", e das outras posturas que têm por fim referendar o racismo negando que ele exista, ou pretendendo que ele só ocorra entre as pessoas que justamente estão lutando contra ele (no caso, os que lutam são exatamente os militantes do Black Lives Matter; os seus críticos nada fazem, exceto desmerecer o trabalho dos reais ativistas contra a violência).
O estadunidense Deray Mckesson, do Black Lives Matter, respondeu bem que jamais iria a uma marcha contra o câncer de mama gritando que o câncer de cólon importa... E que o assassinato de negros pelo Estado (que, como se sabe, também ocorre nos EUA, embora não nas proporções do Brasil) é uma questão específica, que deve ser abordada com seu foco distinto. O lema "all lives matter", nesse contexto, é uma distração, acusa Mckesson, que os racistas usam contra os militantes do movimento Black Lives Matter. Eu não poderia estar mais de acordo.
No Brasil, evitou-se a discussão, adotando-se tanto o Black Brazilians Matter quanto o Brazilian Lives Matter.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXIX: Modesto da Silveira, a advocacia para presos políticos, os índios e a anistia

Morreu anteontem Modesto da Silveira, aos 89 anos. A matéria da EBC destaca sua atuação como o advogado que defendeu o maior número de presos políticos (o que lhe valeu ser detido ilegalmente pela repressão política), e sua participação na campanha pela anistia: "Morre Modesto da Silveira, defensor de presos políticos durante a ditadura".

Nunca vi os números, mas sempre vi repetida essa referência em relação à sua atuação, inclusive no livro Os advogados e a Ditadura de 1964, organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, publicado pela PUC Rio e pela Vozes em 2010. O capítulo que recolhe o depoimento dele foi escrito por Fernanda Machado Moreira.
Boa parte do que está ali escrito foi objeto de sua fala no seminário O Direito e a Ditadura na UFSC em 2010: https://vimeo.com/17770013.
Vejam ou leiam o que ele diz da extinção do habeas corpus para os crimes políticos, que levou os advogados, em exercício de imaginação jurídica, a buscar o mesmo efeito do instrumento proibido com outras petições.
Como ocorria com os (poucos) advogados de presos políticos, ele foi preso ilegalmente e sofreu ameaças, inclusive promovidas pelos grupos paramilitares de direita, responsáveis por diversos atentados no governo do general Figueiredo.
Vejam o panfleto ao lado, de 1980 (ele está no acervo do Deops/SP, no Arquivo Público do Estado de São Paulo). Modesto da Silveira é o terceiro dos alvos, que envolvem gente que havia sido de grupos da esquerda clandestina, nomes da Igreja, das artes, sindicatos e da política institucional.
Dalmo Dallari, referido pelos terroristas, havia sido capturado e espancado em 1980, depois de haver sido preso ilegalmente. O capítulo "A atuação dos advogados na defesa dos presos políticos" da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" conta o episódio, jamais esclarecido pela polícia, que facilitava os múltiplos atentados dessa época por meio da garantia da impunidade:
Os atentados terroristas contra o lento processo de abertura política, que vitimaram jornais de esquerda, militantes políticos, sindicatos, atingiram também os advogados. Em São Paulo, pode-se lembrar do atentado a Dalmo Dallari, que foi capturado e espancado em 2 de julho de 1980, pouco antes da visita do Papa João Paulo II ao Brasil. Segundo o advogado: “durante a greve dos metalúrgicos de São Paulo, foi preso juntamente com outro advogado ligado à Igreja, José Carlos Dias, e que a impunidade dos que o prenderam serviu para encorajar atos como o que aconteceu à porta de sua casa”.
Com efeito, em 19 de julho do mesmo ano ele havia sido preso imotivadamente por agentes à paisana e levado ao DEOPS/SP. O Secretário de Segurança Pública, o Desembargador Otávio Gonzaga Jr., apenas afirmou, assegurando a impunidade do aparelho de repressão, que não sabia quem o prendera, e que tudo ocorreu por causa do dia confuso, em que Luís Inácio Lula da Silva também havia sido preso, por causa da greve dos metalúrgicos.
O delegado Romeu Tuma negou-se a permitir a identificação dos agentes do DEOPS/SP que teriam cometido o atentado. A investigação foi arquivada sem apontar culpados.
A própria Ordem passou a sofrer ameaças de atentados, o que culminou, no Rio de Janeiro, em agosto de 1980, com a morte da secretária Lyda Monteiro da Silva devido à explosão de carta destinada ao presidente do Conselho Federal da OAB, Eduardo Seabra Fagundes.
Embora o capítulo dessa Comissão se concentre, evidentemente, nos advogados com atuação em São Paulo, Modesto da Silveira é nele citado como uma das referências da época.

sábado, 22 de outubro de 2016

O poeta está morto mas juro que não foi l'azur: Guilherme Gontijo Flores à guache

Depois de ter visto uma resenha que mencionava, com alguns equívocos, este livro, resolvi escrever esta nota. O resenhista julgou que o volume se anunciava como uma obra completa apesar de, já na nota inicial, ele ser apresentado como uma obra póstuma deixada dentro de uma pasta rosa (alusão a Ana Cristina Cesar?) pelo lamentado autor.
Guilherme Gontijo Flores continua vivo, felizmente, e já teve o raro privilégio de lançar este livro póstumo, L'azur blasé ou ensaio sobre o fracasso do humor (Curitiba: Kotter Editorial, 2016; na ficha, 2015), em Curitiba e em São Paulo.
A obra ficcionalmente póstuma integra uma tetralogia (Todos os nomes que talvez tivéssemos), anunciada por Gontijo Flores outras vezes, com Brasa enganosa e Tróiades - remix para o próximo milênio, que conhecemos, e o inédito Naharia, que os organizadores de L'azur blasé anunciam que também publicarão postumamente...
Tratando dessa forma da morte, na dimensão da autoria, este livro encontra uma de suas relações com Tróiades, que encontrava aí seu principal tema e partia de materiais de autores todos mortos. Formalmente, os dois livros são muito diferentes, e surpreende que possam ser partes de um mesmo conjunto. No entanto, além da questão da morte, há outras relações, que provavelmente vão se tornar mais claras quando vier o último volume da tetralogia.
A orelha deste livro apresenta uma foto do poeta com óculos de natação fazendo pose de afogado, e o primeiro poema refere-se a essa imagem, com alusão malandras a Rimbaud e Mallarmé. Em outra das brincadeiras com a intertextualidade, um dos poemas tem o título uma gertrude para bartleby. As referências clássicas também estão presentes no livro deste latinista.
A pasta rosa de l'azur divide-se em cinco partes: "parte da ética", "cítrica", "acadêmica", "etílica", "cataio", "a vida e as opiniões do barnabé guilherme gontijo flores, servidor do estado", "excurso". Os poemas, em geral correspondem às seções, mas nem sempre; algumas vezes, eles estão realmente com ar de incompletos - em nome da qualidade da ficção póstuma, Gontijo Flores sacrifica um pouco a fatura dos poemas e a organização, e creio que acertou em fazê-lo. Mensagens de internet, notas de rodapé, soneto, hai-kai, o livro programaticamente rejeita uma unidade formal.
Cito um trecho de cada parte; o primeiro é todo um poema:

a bên
ção pai
enquan
to não
te co
mo pe
ço tu
do me
nos u
ma voz 
eu disse naum ha mais nada pra fazer
q jah num teja feito LOL
terencio de botecos e outros blefes
msm q dito e feito - o que fazer? =) 
poeta ao molho de laranja
na ceia do antropofágico aníbal
lecter - eis a verdadeira
-------------------fragmentação
a mais interessante fragment
-------------------ação
do sujeito contemporâneo 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXVIII: Seminário Vala de Perus promovido pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos




Recebi este convite com o pedido de divulgação:
A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, preocupada com o andamento e perspectivas da investigação das ossadas de Perus, convidou a equipe de Arqueologia e Antropologia Forense responsável por este trabalho, para apresentar em um Seminário a situação atual para os familiares e militantes envolvidos com o tema.
O Seminário será realizado na próxima terça-feira, dia 18/10, das 10h às 13h, na Câmara Municipal (viaduto Jacareí, nº 100, sala Oscar Pedroso Horta, 1º subsolo).
Convidamos todos e todas a participarem conosco desta atividade.
O tema é importantíssimo. Trata-se de uma série de escândalos que acusam diversas debilidades do processo de justiça de transição no Brasil. Em primeiro lugar, o escândalo da própria vala, aberta durante a primeira prefeitura de Paulo Maluf, como prefeito nomeado durante a ditadura militar (a eleição para prefeitos de capitais havia sido eliminada pelo AI-3, de 1966), que acabou servindo para ocultar cadáveres de opositores políticos, de vítimas do Esquadrão da Morte e mortos pela epidemia de meningite, que estourou em São Paulo e foi censurada na imprensa, já que notícias tão negativas para o governo não poderiam ser divulgadas, o que teve o efeito de não realizar campanhas de saúde pública para a população. A ditadura também matou por meio da censura.
Cito Luiza Erundina, a prefeita que abriu a vala em 4 de setembro de 1990:

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O banquete como forma de governo


I - Devorados com gosto

Vamos dirigir o país
Gritamos enquanto os que apoiamos
nos pisam
com nossos próprios pés;

(outros
brincam de governo
usando os nossos brinquedos)

Vamos expulsar do país
aqueles que não querem
que dirijamos o país

Gritamos com a voz
dos que nos calam
com nossos próprios tiros;

(a gente brincava de governo,
mas outros
governavam o brinquedo)

Ultimato ao país:
Terras vastas mostrem-se à altura
de serem dirigidas por nós

Bradamos do subterrâneo
onde fomos trancafiados
por aqueles a quem demos a chave do país;

(se o governo é um brinquedo,
onde é que ele quebra?)

Olhem que paralisamos o país
Anunciamos decididos
enquanto corremos da chibata
que fabricamos freneticamente,
o produto mais abundante desta terra;

(parece que o brinquedo veio com defeito,
mas que é assim mesmo
que se torna governo)

O produto mais abundante,
todos já têm
e todos o querem comprar.


II - O banquete, forma de governo

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXVII: Aquarius e a atualidade do ontem

Eu não queria escrever sobre Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, porque ainda não conheço Recife, infelizmente. No entanto, algumas pessoas me sugeriram escrever alguma coisa e me fizeram ler algumas resenhas cinematográficas.
Curiosamente, muitas não reconheciam a marca do cineasta de O som ao redor: não só os ângulos e os zooms que parecem fazer de cada olhar uma ameaça, a câmera adotando uma poética do conflito ou da insegurança, e o tratamento do som: há muito som ao redor, muito ruído passageiro cuja origem não consegui identificar. Essas estratégias incorporam o aleatório e o acaso, dados imprescindíveis para que tenhamos a ilusão de que a própria vida está nas telas, e não aqueles joguinhos de armar onde tudo se encaixa, artifícios baratos de certo cinema comercial.
Não farei, no entanto, uma resenha cinematográfica, muito menos analisar a excelência das atuações, especialmente o tour de force da grande atriz Sônia Braga. Escrevo esta pequena nota para pensar nos pressupostos arbitrários, mas tão significativos, de certas críticas que li.

  • Criticar o uso da "trilha sonora" como típico de telenovelas sem nem mesmo mencionar nenhuma das peças musicais do filme, muito menos o seu compositor predominante, Villa-Lobos, é de uma superficialidade que talvez encontre correlato nos piores comentaristas de tevê. Note-se que, na festa de aniversário da tia Lúcia, toca-se a música de parabéns de Villa-lobos e Manuel Bandeira (ela volta depois), o que já é um dado político e estético essencial, em vez daquela bobagem estadunidense que é onipresente no Brasil (Adriano Brandão me chamou a atenção deste vídeo com o maestro Iván Fischer corrigindo a musiquinha: https://www.facebook.com/medicitv/videos/10153607377142352/). É chocante a ignorância musical dos críticos que dizem que é tocada uma "musiquinha de parabéns". A protagonista, por sinal, é autora de livro sobre o compositor, com título, de que não me recordo, que alude às músicas que não ouvimos. Fazer ouvir o que mal escutamos talvez seja um traço essencial da poética de Kleber Mendonça Filho.
  • Achar que um filme é ruim porque, no final, não ocorreu o fim da sociedade de classes é de um esquerdismo que não chega a ser juvenil; ele parou na idade dos contos de fadas. Revoluções precisam de uma mentalidade mais adulta.
  • Decretar que o filme é fraco por não ser de esquerda, ou não ser de esquerda o suficiente, é outro caso de esquerdismo, porém senil, de gente de um sectarismo velho, que não ouve Stravinsky porque ele era de direita e não lê Fernando Pessoa porque o poeta era contrário à democracia. A senilidade sectária também existe no lado oposto: gente de direita que não lê García-Lorca...
  • Considerar que a qualidade de uma obra depende de o personagem principal chegar a uma consciência mais completa de si mesmo significa confundir cinema com psicanálise para personagens. Grandes obras sobre a alienação não resolvida foram feitas, inclusive no cinema. Trata-se, aliás, de personagens pungentes.
  • Acreditar que as declarações do autor trazem a verdade sobre a obra é de uma inocência tão assustadora quanto a do segundo item. Se o cineasta diz que retratou uma presidenta impedida em sua personagem principal, espero que a declaração seja fruto de alguma militância, e não de uma convicção profunda, que seria muito equivocada. A presidenta afastada estava do lado das grandes empreiteiras e dos projetos desenvolvimentistas, ecocidas (Belo Monte é só um dos exemplos). Se ela estivesse retratada no filme, seria o personagem que não aparece e mandou licenciar o empreendimento contra o qual luta a personagem principal de Aquarius.
  • Comentar que o filme é fraco porque leva a uma identificação da plateia com a personagem principal pressupõe que o público é homogêneo. Pelo contrário, creio que as questões de gênero (cuidadosamente escamoteadas por boa parte das resenhas que li) podem levar muitas pessoas a terem até repulsa da personagem. A vida sexual da mulher de terceira idade, ou da mulher mastectomizada, ou da mulher tout court continua sendo tabu para muita gente. Pareceu-me belo que o filme não fingisse, na propaganda, ser "para toda família". A divulgação destacou uma conclamação de boicote do filme feita por aquele "lúcido" crítico que escreveu certa vez que Drummond não sabia escrever sonetos...
  • É interessante notar como o filme é diferente do cinema político dos anos 1960 (ainda bem, para que cópias requentadas do cinema novo?), mas ignorar que as questões de gênero fazem parte dessa diferença significa não só ignorar a história do cinema, mas a própria história tout court.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Inverter o mundo, erguer as vítimas do progresso: Josoaldo Lima Rêgo e "Carcaça"

Eu havia escrito três notas sobre poesia e tremor, a respeito de livros de Leonardo Gandolfi, Guilherme Gontijo Flores e Eduardo Jorge, que foram transformadas em um texto, a que agreguei outros autores, para um dossiê sobre poesia contemporânea brasileira que ficou inédito.
Entre as obras que analisei, está Carcaça (Rio de Janeiro: 7Letras, 2016), de Josoaldo Lima Rêgo.  O livro apresenta poemas de destruição da terra: “Floresta” é “A extinção/ certeira”; “alguém falou de pássaros/ quando devastava a floresta”; “é improvável que reste um rio” (um dos “64 títulos”). A carcaça que dá título ao livro, porém, continua a lutar, e ele termina com um animal extinto, do outro lado do planeta, pela colonização: o Tilacino, o Tigre da Tasmânia. Mesmo “extinto”, “manda lembranças”, e ecoa o primeiro poema, que tem por título a exclamação de Cunhambebe a Hans Staden, “Jauára ichê” (sou um tigre), em justificativa da antropofagia.
A poesia de Josoaldo Lima Rêgo apresenta explicitamente um perfil descolonial. O poema “Torres-García” parte da obra em que o artista uruguaio homônimo inverte a posição da América do Sul no mapa-múndi, realizando uma operação geopolítica e geopoética de inversão do norte, hemisfério do colonizador; Torres-García faz algo de semelhante também na afirmação dos povos originários americanos em obras como “Indoamérica”.
Em Carcaça, os povos originários também aparecem em vários momentos. Eusébio Kaapor, líder indígena assassinado perto de Santa Luzia do Paruá (no Maranhão) em 2015, provavelmente em razão da luta contra a exploração ilegal de madeira em terras indígenas, foi assimilado por Josoaldo Lima Rêgo à própria natureza devastada por meio da razão instrumental, em um dos mais impressionantes poemas do livro: “um rio morre assim, eusébio, com pólvora e razão nas entranhas” (“Eusébio”).
Este livro, porém, aprecia os cientistas ou teóricos que foram para o sul, como Goethe na Itália, ou que simplesmente desapareceram: é o caso de Ettore Majorana (no poema "Quando um italiano desaparece"), o físico italiano que sumiu antes de colaborar em programas de pesquisa colaborativa entre a Itália fascista e a Alemanha nazista.
Os poemas, em geral, são curtos e se esclarecem no conjunto; trata-se de um poeta que escreveu antes um livro do que uma coletânea de poesias (nesse aspecto, Carcaça é bem diferente de Paisagens possíveis, livro do mesmo autor publicado pela 7Letras em 2010, que apresenta um tratamento mais convencional dos espaços geográficos e poéticos). Destaco um poema sobre colonialismo interno, “Nos baixões de Altamira”, que cito integralmente:

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

#ForaTemer em São Paulo e o saque como método de governo

Em 4 de setembro de 2016, participei em São Paulo de uma das manifestações #ForaTemer que ocorreu no país contra aquele que no momento ocupa a Presidência da República. A manifestação, a partir do vão do Masp, desceu até o Largo da Batata pela Avenida Rebouças. Quando ela se dispersava, os manifestantes, a imprensa e os que simplesmente estavam presentes foram atacados pela Polícia Militar.
Não sei bem como foi em outras cidades. Em Belém do Pará, a polícia atirou: https://twitter.com/NoticiasdoPARA/status/771900820518559744
Eu não havia chegado ao Largo quando a repressão começou; ouvi de longe as bombas. E li alguns relatos e notícias:
No dia seguinte, era previsível que as manifestações não seriam a manchete principal de certos grandes jornais, e que O Estado de S.Paulo nem mesmo se daria ao trabalho de destacar uma foto, mesmo pequena, na capa. Note-se também a estratégia dos jornais que tiveram o cuidado de colocar a foto na metade inferior da capa:

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

"O Estado cobra dos olhos/ direitos da bala"





O Estado cobra dos olhos
direitos da bala;
a cegueira mostra aos olhos
como o Estado fala.

Viver na linha de tiro,
moradia crítica,
e o Estado abriga o tiro
na própria política.

Com a bala o Estado vê
enfim corpo adentro,
mas é no chão que revê
seu secreto centro:

o sangue, esteio mais sólido
da cidadania
de governos tão sólidos
quanto a hemorragia.

No entanto, existe a Justiça
e condena a luz
por ousar negar justiça
à ferida e ao pus

que tentarem sediar o Estado
em plena visão.
Tomou os olhos o Estado.
Nada mais verão.



sábado, 13 de agosto de 2016

Poesia e tremor III: Treme o corpo em fuga, ou A casa elástica de Eduardo Jorge

Já escrevi duas notas sobre a intimidade da poesia contemporânea com os abalos sísmicos: sobre Escala Richter de Leonardo Gandolfi e as Tróiades de Guilherme Gontijo Flores, livros muito diferentes entre si, de tão vários são os abalos de hoje, e tão diversos os temperamentos dos poetas. Outra obra recente, que também percorre trilhas originais, é A casa elástica (Minisséries) (São Paulo: Lumme Editor, 2015), de Eduardo Jorge. Poucas vezes a experiência do corpo migrante e sua passagem (seja no Brasil, seja no exterior) foi expressa com tanta intensidade na poesia brasileira quanto nesse livro.
Ele parte da experiência do estrangeiro que tem que compartilhar com outro, mais velho, um cômodo de "Dezessete metros quadrados". A seção é dedicada a Contador Borges. Nela, a experiência de confinamento é tanto física quanto social: “imigrantes em pares de sapatos, com pão e um aparelho rádio./ participam do país pelas orelhas”.
As "minisséries", além de constituírem sequências de poemas, expressam esse tipo de experiência no espaço: o mundo pode ser vasto, porém o espaço é pequeno, por mais que se viaje. Ao fim d'A casa elástica, resta a tentativa de fazer do próprio corpo a casa, ou da casa um corpo.
As seções seguintes do livro referem-se a outras experiências congêneres: diversas mudanças de endereço (muitos deles no Brasil, outros na Europa), correspondência devolvida, as palavras e os corpos sempre em viagem: “na pele escrita à unha,/ um pedido para ficar./ enquanto o barqueiro/ espera, há dois motivos/ para ensaiar o voo,/ abandonar a cidade em febre”.
A segunda seção, "A casa elástica", cita ironicamente um verso de Adoniran Barbosa, "tenho minha casa pra olhar"; no último poema, faz-se uma brincadeira com Mondrian: "uma linha seguida de outra, Mondrian Adoniran:/ mínima casa para morar". O poema termina, apropriadamente, com uma citação de Trem das Onze: "não posso ficar".
"Onze endereços, quase a mesma morada", a seção seguinte, é mais impactante na experiência desse corpo que tem que se deslocar incessantemente (tal é a experiência da "casa elástica") e, nos transportes e nos choques que vivencia nos diferentes lugares, vacila. O primeiro, "rua santa clara, 261". impressiona na apresentação das necessidades básicas do corpo (a epígrafe, agora, é de Valéry, com o trecho "Les voix de la chair sont élémentaires") e como elas determinam a própria experiência do tempo: "o dia seguinte está na distância entre os buracos brancos do pedaço de pão e o balanço sonoro dos corpos que dormiam no veículo. mesmo aos mais atentos, a música está no corpo que treme," Em outro momento marcante, temos a tensa experiência do imigrante a contar dinheiro brasileiro na "calle mártir olaya, 280".
Nessa seção e nas outras, a proliferação e a dispersão de imagens parecem emular o deslocamento incessante do sujeito; esta passagem é um bom exemplo da poética deste livro: “o herói incontornável/ do poeta olhando com/ escrita como um coro/ de toalhas brancas faz/ parte da imitação de/ Sófocles sétimo andar/ as toalhas, serpentes/ complicadas contra o/ látex azul e o pigarro/ da hóspede passada/ ornam a rota de fuga [...]”. Nos melhores momentos, a poesia se torna a própria rota de fuga.
A penúltima seção tem o nome de um endereço em Madri,"paseo de santa maría de la cabeza, s/n. (correspondência incompleta)", com imagens de migrantes que partem, ficam, passaportes, hematomas e tensões.
Mais interessante é o final, a seção “Peça para a casa”, toda de poemas em prosa, confirmando que o assunto do livro não são os bens imóveis. No final, temos: “Peça para a casa os princípios dos portos, das rodoviárias, dos aeroportos e das estações no sentido de que são ambíguos: quem está partindo, quem está voltando. Existem princípios móveis da casa. A casa está lá, sob a pele, inclusive, na sua superfície. [...] Em carne viva, a casa treme, ela está a caminho.” Trata-se quase de pedir que o corpo migrante seja a própria casa, a despeito de fronteiras e nacionalidades.
Falando em casas que tremem e fogem, boa parte da literatura brasileira contemporânea foi encontrar espaço em editoras pequenas. Afinal, o iletramento é a orientação política adotada, mais ou menos abertamente, pelos governos em geral, as políticas para o livro e a literatura se fecham e as grandes editoras estão a buscar alguma nova tendência que possa substituir os livros para colorir (a impressionante queda de trinta por cento, segundo publicação do PublishNews, na venda de livros no varejo é um exemplo disso). Parece que a bola da vez são os youtubers.
Essas editoras menores, infelizmente, nem sempre realizam o trabalho de revisão necessário. Um autor sempre precisa de mais um olhar. O resultado são erros de digitação que aparecem neste livro, como "poema à quatro mãos" (p. 16), "micro-paisagem" (p. 39), "se não houvessem nomes" (p. 65) etc. Isso é responsabilidade editorial - mas o Lumme Editor vacilou neste ponto.
Dito isso, espaçaria], que era a obra de Eduardo Jorge que eu conhecia, não me preparou para este salto do livro novo, para este movimento; "A água escorre em chuveiro aberto, ela escorre em torneiras, águas de permanência selvagem".

Jonas Kaufmann com Helmut Deutsch no Brasil

O tenor alemão Jonas Kaufmann veio ao Brasil, pela primeira vez, com o pianista Helmut Deutsch para um recital na Sala São Paulo no último 10 de agosto. Uma grande estrela da ópera, veio, no entanto, interpretar canções de câmara.
Já vi pessoas confundindo esses gêneros, mas as exigências são diferentes. Para um cantor de ópera, o repertório de câmera, que exige um canto mais íntimo, em que a restrição dos meios é tão importante, pode ser vocalmente muito desconfortável. Vejam a diferença entre cantar a "Ave Maria" de Schubert, no original (ou seja, em alemão e com piano) e uma cena de ópera; no caso, A Valquíria, de Wagner, com uma orquestra possante, nos dois casos, com Jessye Norman;
Schubert: https://www.youtube.com/watch?v=do5ZmQQM8AE
Wagner: https://youtu.be/vb_g8GXrZPc?t=1m15s
Vejam que não é realmente o mesmo uso da voz; um cantor pode ser adequado para a música de câmera e não para ópera, e vice-versa. Ademais, ao contrário da canção de câmara, muitas vezes, em ópera, a palavra é bem menos importante do que a música; veja-se o final d'As bodas de Fígaro, de Mozart (exemplo do Joseph Kermann em A ópera como drama), momento em que o libreto (de Lorenzo dal Ponte) não tem valor poético algum, e é a música que transfigura tudo.
Mas pode-se escolher este outro exemplo da mesma ópera; as cantoras (Renée Fleming e Cecilia Bartoli) repetem as mesmas palavras, é a música que sustenta o interesse: https://www.youtube.com/watch?v=BLtqZewjwgA
Dito isso, o libreto das Bodas é maravilhoso. Essas repetições ajudavam, claro, o público a entender o texto e tinham valor mnemônico.
Já a canção de câmera é, em geral, feita a partir de poemas; nem sempre os melhores, mas poemas (muitos dos maiores poetas foram musicados: Celan, Heine, Baudelaire, Goethe...). Nem sempre o cantor de ópera possui o tipo de sensibilidade para a palavra específica para a canção de câmera.
Alguns cantores conseguiram fazer coisas excelentes nos dois campos; creio que é o caso de Dietrich Fischer-Dieskau; também é o de Hermann Prey. Entre os tenores, o falecido Ernst Haefliger, schubertiano, bachiano e mozartiano, foi um exemplo e, com uma voz muito diversa (é só comparar ambos cantando o Florestan...), Jonas Kaufmann também é um caso de sucesso. O pianista Helmut Deutsch, que o acompanhou, é um dos grandes pianistas atuais do Lied (a canção de câmera germânica) e já gravou discos com o tenor.

domingo, 31 de julho de 2016

Desarquivando o Brasil CXXVI: O AI-5 dos estrangeiros, ainda em vigor

Na gestão de Aloizio Mercadante à frente do então Ministério da Educação, o governo federal já tinha adiantado que seria bom que o físico franco-argelino Adlène Hicheur deixasse o Brasil. Condenado em 2012 na França por trocar mensagens com um membro da organização jihadista Aqmi, ele veio ao Brasil em 2013, depois de cumprir a pena. Passou a trabalhar como professor visitante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em janeiro deste ano, a revista Época revelou que ele estava sendo vigiado pelo Abin. Naquela ocasião, colegas da Física manifestaram seu apoio a Hicheur;
A. Hicheur veio ao Brasil para realizar um pós-doutorado no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) por sugestão do coordenador do experimento LHCb e com 3 cartas de recomendação, do seu orientador de doutorado e dos diretores do Instituto de Física da Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL) e do Laboratoire d’Annecy le Vieux de Physique de Particules (LAPP). O doutor Hicheur veio ao Brasil de maneira totalmente legal e, como qualquer outro cientista, depois de um estudo detalhado do seu currículo e da avaliação das contribuições que ele poderia trazer para a área no Brasil. Os responsáveis por sua contratação e as autoridades brasileiras responsáveis pela concessão de visto foram informados do seu caso judicial. Após uma produtiva estadia de 2 anos no CBPF A. Hicheur foi contratado pela UFRJ como Professor Visitante. Ele é um dos membros do grupo LHCb-Rio com maior produção, tendo assumido a liderança de vários projetos no âmbito da Colaboração LHCb.
As vozes da comunidade científica, como é praxe, não encontraram eco algum no governo brasileiro, e o físico teve indeferido o pedido de prorrogação da autorização de trabalho no Brasil, neste governo interino de Temer; a publicação é de 15 de julho deste ano, e o despacho do Coordenador-Geral de Imigração é do dia anterior:
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=67&data=15/07/2016
Quando foi deportado, no dia 15, estava no meio de uma conferência virtual e teve uma hora para arrumar suas coisas. A UFRJ soltou nota à imprensa no mesmo dia, afirmando que "Manifestamos extrema preocupação com a ação, anunciada sem apresentação de justificativas claras e atenção a princípios democráticos básicos, como direito à defesa." Vi também o Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior, no dia seguinte, repudiar a deportação de Hicheur.
Pode surpreender que o governo federal, ao menos neste caso, estivesse amparado por lei brasileira. No entanto, a Universidade tem razão em apontar a falta de justificativas e de "princípios democráticos básicos". A norma que fundamentou o governo não os pressupõe, ela faz parte do chamado entulho autoritário: trata-se da lei federal nº 6815, de 19 de agosto de 1980.
A ditadura militar, após o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, que fechou o Congresso Nacional, teve como uma de suas preocupações continuar a reformular o ordenamento jurídico brasileiro segundo as diretrizes da doutrina de segurança nacional. E uma das questões era, sem dúvida, o controle dos estrangeiros (não os das multinacionais, claro; os militares abriram-se para elas, inclusive aceitando cargos  ou verbas dessas empresas, como Golbery com a Dow Chemical); afinal, o próprio comunismo era visto como uma doutrina "alienígena", incompatível com a democracia brasileira, a qual teria encontrado, segundo os ideólogos governistas da época, sua formulação mais fiel nos governos militares.
Tratava-se, na verdade, de expulsar o estrangeiro de esquerda, o que incluía religiosos que atuassem com índios, camponeses e operários. O decreto-lei nº 417 de 10 de janeiro de 1969, específico para "expulsão de estrangeiro", enquadrava-a como ato do presidente da república. Segundo o artigo 1º, ela destinava-se ao estrangeiro que  "atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade e moralidade públicas e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo ou perigoso a conveniência ou aos interêsses nacionais". Ou seja, quando o presidente bem quisesse praticar o ato.
Em se tratando de segurança nacional, o procedimento era sumário:

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Algo como um poema: "O poeta que fora de esquerda"

 

O poeta que fora de esquerda
agora a encerrar discussões
com uma cédula no fim da fala

O poeta antes anti-
-establishment a estabelecer ditos
com o fardão na ponta da língua

As palavras do poeta outrora
censurado
servem hoje de coluna ao diário de direita
de banheiro aos cães do centro financeiro

– Cães de guarda?
– Certo, como o poeta
que trocou a fala em risco
pelo liso da farda.

Crê que os títulos dependurados nos lábios
são os melhores argumentos 
e dedica-se aos títulos de crédito

O poeta fora de esquerda
agora, do lado em que depositam homenagens,
toda sua retórica política
consiste em distribuí-las
sem que mudem de lado

– Lado?
– Ladra. Em vão, porém.
Também as coleiras são ladras.