Eu já havia escrito sobre o livro de Amartya Sen, A ideia de justiça, quando foi publicado em inglês. O jornalista Guilherme Freitas, de O Globo, pediu-me para escrever sobre a tradução brasileira, feita por Ricardo Doninelli Mendes e Denise Bottmann.
Claro que há muito o que comentar nas quinhentas páginas dessa obra. Algo que é de uma cortesia intelectual notável é que o livro, todo voltado contra a teoria de Rawls da justiça como equidade, é dedicado à memória desse filósofo: "Na verdade, Rawls fez do tema o que ele é hoje", Sen chega a escrever.
Tive um professor no doutorado que se recusava a mencioná-lo, bem como a Habermas, alegando que eles só copiavam filósofos do passado! Outro, porém, queixou-se amargamente da em geral fraquíssima ou inexistente cobertura jornalística no Brasil da morte do filósofo em 2002, pois ele teria sido um dos maiores do século que terminara... Não obstante os méritos que se possam achar ou negar na obra de Rawls (no meu pequeno livro de direitos humanos, tive que discordar dele), gerar novos discursos (mesmo que sejam contrários) é um sinal de fecundidade.
Na área jurídica nacional, são comuns livros de homenagem a certo autor que não dialogam com a obra do homenageado, ou o fazem de forma perfunctória. Também no doutorado, tive um professor que, convidado para participar de homenagem a certo polígrafo brasileiro, quis escrever sobre certo tema na extensa obra do autor falecido e recuou ao perceber que a obra não fazia muito sentido. E tomou outra direção, mais tangencial, menos esclarecedora.
A cordial recusa à divergência, além de não estar comprometida com o esclarecimento, seria profícua? Sim, para uma cultura de adulação mútua e homenagens recíprocas, hostil, em princípio, ao conhecimento. Machado de Assis bem sintetizou a questão na "Teoria do Medalhão"; o medalhão, em vez de escrever um tratado científico sobre a criação de carneiros, manda matar um e dá uma festa.
Na segunda resenha, tentei destacar o tema da justiça global. Ele não está claro, no entanto. No capítulo 6, lemos que "A justiça internacional simplesmente não é adequada para a justiça global." e que "Há algo de tirania das ideias em ver as divisões políticas dos Estados [...] como sendo, de alguma forma, fundamentais, e em vÊ-las não apenas como restrições práticas a serem resolvidas, mas como divisões de significado básico na ética e na filosofia política."
Sim, mas Amartya Sen não nos fornece a imaginação institucional para pensar uma sociedade internacional não estadocêntrica, que teria de ser muito diversa da atual. De onde viria esse outro poder? Das organizações não governamentais?? Ou das empresas transnacionais - que dariam ao lucro um novo nome, justiça, assim como estão tentando renomeá-lo de "responsabilidade social" e "desenvolvimento sustentável"?
O autor não responde, e talvez sua teoria só possa mesmo dar "formas frouxas de resultados", como escreveu, ao problema.
De qualquer forma, creio mesmo que poderia ser um retrocesso um modelo global de direitos humanos, se se quiser que ele substitua os outros mecanismos internacionais. É importante que existam sistemas globais e regionais simultaneamente. No meu livrinho, defendi que sistemas regionais de direitos humanos poderiam ser mais efetivos, justamente por poderem, em suas previsões, serem mais detalhados e, assim, mais colados à realidade concreta. Congregarem menos Estados do que um sistema global faria com que, presumivelmente, esses Estados tenham mais traços em comum e possam concordar seja com um número maior de direitos, seja com previsões que permitam maior eficácia a esses direitos.
O problema da eficácia deixa a nu a dimensão política desses direitos.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
domingo, 30 de outubro de 2011
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Irregularidades na superfície dos discursos cotidianos...
Em 27 de fevereiro de 2009, a jornalista Mariane Morisawa publicou matéria extensa sobre poesia para o Valor. Várias pessoas (Chiu Yi Chih, Marília Garcia, Fabio Weintraub, Carlito Azevedo, Ruy Proença, Frederico Barbosa etc.) foram entrevistadas, até eu - que estava no Verão de Poesia da Casa das Rosas e entrei no balaio. Uma frase minha, de teor mais "econômico" (sobre exército de reserva), foi publicada. Como o resto não saiu, transcrevo aqui. Imagino que responderia diferente hoje, mas como ninguém me perguntou nada, não pensarei em novas respostas...
1. Qual é o estado da poesia no Brasil, na sua opinião?
Não creio que se possa divorciar essa questão do problema do largo panorama do acesso à cultura. A poesia exige domínio das competências linguísticas, porém a educação no Brasil não tem conseguido cumprir a difusão do letramento – e a situação da infância é um desastre. Aqui, contudo, gostaria de lembrar apenas do ensino superior, que deveria conseguir formar professores. As cinco maiores universidades do país em número de alunos, todas privadas, estão entre as quarenta piores no índice de qualidade dos cursos e seguem a lógica da metástase em sua expansão. Pessoas iletradas diplomam-se e contentam-se com o que já (não) sabem, convencidas de que jamais precisarão ler. Nesse sentido, o ensino superior tem fechado ainda mais as portas da literatura e da cidadania: pessoas que não podem ler Cecília Meireles, Murilo Mendes e Drummond estão privadas de parte do melhor que nossa cultura produziu, além de privadas de sentidos de vida presentes na obra desses autores.
2. Há diversas tendências na poesia contemporânea brasileira?
Felizmente sim, mas um mapeamento delas exigira um ensaio. Pode-se dividi-las no tocante ao diálogo com a tradição poética e com outras linguagens. Autores como Sérgio Medeiros, Nuno Ramos, Veronica Stigger (que é, principalmente, ficcionista), Ricardo Domeneck e Alberto Pucheu tendem a criar objetos híbridos em busca de sínteses com outras artes, como teatro, ou novas formas de produção (como o uso de vozes alheias, materiais publicitários etc). Outros autores prolongam lições de movimentos passados, ou combinam de forma pessoal esses movimentos dentro das linguagens já tradicionalmente poéticas. Mas, também nesses casos, a forma não é (ou não deve ser) algo previamente dado. A poesia deve desestabilizar os dados prévios: mesmo o tradicional verso livre deve produzir algum tipo de instabilidade no discurso (penso, por exemplo, na curiosa vocação para o precipício no verso de Ronald Polito).
3 e 4. Acha que falta espaço à poesia? Acredita que eventos como o Verão da Poesia são importantes? Por quê?
A questão do espaço da poesia diz respeito à participação dessa arte na esfera pública. Nesse sentido, esses eventos são úteis para aproximar poetas do público e, também, de outros poetas. Servem para forjar alianças. Deve-se lembrar que o evento Verão da Poesia deveu-se à destinação pública do equipamento cultural feita na administração do escritor Frederico Barbosa.
5. Sente que existe uma renovação no público da poesia?
Certamente. Em minha experiência pessoal, geralmente essa renovação é feita por jovens que escrevem, ou desejam escrever poesia. Em geral, não serão poetas. Mas a poesia, mesmo a que jamais conseguirão escrever, os enriquecerá humanamente.
6. Quais as principais dificuldades para os poetas hoje em dia? Essas dificuldades diferem em que das dificuldades vividas por poetas de outras gerações?
Meu primeiro livro, O palco e o mundo (Lisboa: &etc, 2002), saiu somente em Portugal; no Brasil, não houve interesse. Inversamente, tive dificuldade em publicar aqui uma antologia de Alberto Pimenta, escritor português que é um dos maiores poetas de nossa língua em todos os tempos. Continua a haver um “exército poético de reserva”, no sentido de que a oferta de poetas que desejam publicar é muito superior à demanda das editoras, o que estimula práticas abusivas dos editores. Mas esse problema não é novo: Manuel Bandeira só encontrou editor aos 50 anos, Manoel de Barros, aos 60. O suporte da internet, uma novidade tecnológica, tem contribuído para amenizar essas dificuldades; porém essa biblioteca infinita é também altamente volátil. Contudo, a principal dificuldade do poeta continua sendo buscar a si mesmo; perto disso, esses problemas de edição, prêmios, incentivos não são realmente questões literárias.
7. Você estuda poesia? Quais seus poetas contemporâneos favoritos?
Claro, sempre se procurar saber sobre o que se ama. Sobre poetas de hoje, para citar apenas três de gerações e países diferentes: o português Alberto Pimenta, que, após os 60 anos, não se acomodou e continua a lançar livros poderosos, como Marthiya de Abdel Hamid, sobre a invasão dos EUA no Iraque, e Indulgência plenária, sobre a tortura e o assassinato de Gisberta Salce, transexual brasileira, na cidade do Porto; o espanhol José Ángel Cilleruelo, autor espanhol que combina lirismo, uma fina observação do cotidiano e poesia de pensamento; e, na Argentina, o jovem Julián Axat, com sua mistura de epistemologia, memória e política, a tratar, entre outros temas, do período da “Guerra Suja” e dos desaparecidos.
8. Por que escreve poesia?
Porque desconfio da linguagem e do mundo. É preciso criar irregularidades na superfície dos discursos cotidianos para que o mundo se reinaugure continuamente.
1. Qual é o estado da poesia no Brasil, na sua opinião?
Não creio que se possa divorciar essa questão do problema do largo panorama do acesso à cultura. A poesia exige domínio das competências linguísticas, porém a educação no Brasil não tem conseguido cumprir a difusão do letramento – e a situação da infância é um desastre. Aqui, contudo, gostaria de lembrar apenas do ensino superior, que deveria conseguir formar professores. As cinco maiores universidades do país em número de alunos, todas privadas, estão entre as quarenta piores no índice de qualidade dos cursos e seguem a lógica da metástase em sua expansão. Pessoas iletradas diplomam-se e contentam-se com o que já (não) sabem, convencidas de que jamais precisarão ler. Nesse sentido, o ensino superior tem fechado ainda mais as portas da literatura e da cidadania: pessoas que não podem ler Cecília Meireles, Murilo Mendes e Drummond estão privadas de parte do melhor que nossa cultura produziu, além de privadas de sentidos de vida presentes na obra desses autores.
2. Há diversas tendências na poesia contemporânea brasileira?
Felizmente sim, mas um mapeamento delas exigira um ensaio. Pode-se dividi-las no tocante ao diálogo com a tradição poética e com outras linguagens. Autores como Sérgio Medeiros, Nuno Ramos, Veronica Stigger (que é, principalmente, ficcionista), Ricardo Domeneck e Alberto Pucheu tendem a criar objetos híbridos em busca de sínteses com outras artes, como teatro, ou novas formas de produção (como o uso de vozes alheias, materiais publicitários etc). Outros autores prolongam lições de movimentos passados, ou combinam de forma pessoal esses movimentos dentro das linguagens já tradicionalmente poéticas. Mas, também nesses casos, a forma não é (ou não deve ser) algo previamente dado. A poesia deve desestabilizar os dados prévios: mesmo o tradicional verso livre deve produzir algum tipo de instabilidade no discurso (penso, por exemplo, na curiosa vocação para o precipício no verso de Ronald Polito).
3 e 4. Acha que falta espaço à poesia? Acredita que eventos como o Verão da Poesia são importantes? Por quê?
A questão do espaço da poesia diz respeito à participação dessa arte na esfera pública. Nesse sentido, esses eventos são úteis para aproximar poetas do público e, também, de outros poetas. Servem para forjar alianças. Deve-se lembrar que o evento Verão da Poesia deveu-se à destinação pública do equipamento cultural feita na administração do escritor Frederico Barbosa.
5. Sente que existe uma renovação no público da poesia?
Certamente. Em minha experiência pessoal, geralmente essa renovação é feita por jovens que escrevem, ou desejam escrever poesia. Em geral, não serão poetas. Mas a poesia, mesmo a que jamais conseguirão escrever, os enriquecerá humanamente.
6. Quais as principais dificuldades para os poetas hoje em dia? Essas dificuldades diferem em que das dificuldades vividas por poetas de outras gerações?
Meu primeiro livro, O palco e o mundo (Lisboa: &etc, 2002), saiu somente em Portugal; no Brasil, não houve interesse. Inversamente, tive dificuldade em publicar aqui uma antologia de Alberto Pimenta, escritor português que é um dos maiores poetas de nossa língua em todos os tempos. Continua a haver um “exército poético de reserva”, no sentido de que a oferta de poetas que desejam publicar é muito superior à demanda das editoras, o que estimula práticas abusivas dos editores. Mas esse problema não é novo: Manuel Bandeira só encontrou editor aos 50 anos, Manoel de Barros, aos 60. O suporte da internet, uma novidade tecnológica, tem contribuído para amenizar essas dificuldades; porém essa biblioteca infinita é também altamente volátil. Contudo, a principal dificuldade do poeta continua sendo buscar a si mesmo; perto disso, esses problemas de edição, prêmios, incentivos não são realmente questões literárias.
7. Você estuda poesia? Quais seus poetas contemporâneos favoritos?
Claro, sempre se procurar saber sobre o que se ama. Sobre poetas de hoje, para citar apenas três de gerações e países diferentes: o português Alberto Pimenta, que, após os 60 anos, não se acomodou e continua a lançar livros poderosos, como Marthiya de Abdel Hamid, sobre a invasão dos EUA no Iraque, e Indulgência plenária, sobre a tortura e o assassinato de Gisberta Salce, transexual brasileira, na cidade do Porto; o espanhol José Ángel Cilleruelo, autor espanhol que combina lirismo, uma fina observação do cotidiano e poesia de pensamento; e, na Argentina, o jovem Julián Axat, com sua mistura de epistemologia, memória e política, a tratar, entre outros temas, do período da “Guerra Suja” e dos desaparecidos.
8. Por que escreve poesia?
Porque desconfio da linguagem e do mundo. É preciso criar irregularidades na superfície dos discursos cotidianos para que o mundo se reinaugure continuamente.
domingo, 23 de outubro de 2011
Desbloqueando a cidade III: Conselho Municipal de Habitação e cidadania express
Por meio do Fórum Centro Vivo, descobri que a Prefeitura de São Paulo está a realizar algo que (talvez curiosamente) se assemelha ao cerceamento da participação popular no Conselho Municipal de Habitação.
O cadastramento foi anunciado neste edital de 19 de setembro de 2011 e deve ser realizado aqui:
http://www3.prefeitura.sp.gov.br/sd2114_internet/Forms/frmManterCadastro.aspx
A eleição, segundo o edital, ocorrerá em 4 de dezembro deste ano:
IV- Publicação da relação dos eleitores cadastrados no
Diário Oficial da Cidade:
Ao término do período de cadastramento será publicada no
Diário Oficial da Cidade uma relação contendo os Nomes dos
Eleitores, os Números de Títulos de Eleitor, seus Locais de Votação
e respectivos Números dos Protocolos para os eleitores
que tiveram seus cadastramentos realizados com sucesso.
V- Como proceder para VOTAR:
No dia da realização das eleições, ou seja, em 04/12/2011,
o eleitor que se cadastrou previamente com sucesso
deverá comparecer pessoalmente ao local de votação para
depositar seu voto na urna eletrônica do Tribunal Regional
Eleitoral de São Paulo, munido de seu título de eleitor e de um
documento com foto .
As urnas eletrônicas estarão parametrizadas pelo Tribunal Regional
Eleitoral de São Paulo para aceitar os votos dos eleitores
que se cadastraram, previamente, nos locais escolhidos no
momento do cadastramento.
O pleito será realizado das 8:00 horas às 17:00 horas do
dia 04/12/2011 Excedentes de eleitores cadastrados presentes
neste horário receberão senhas, que garantirão seu direito ao
voto.
O cadastramento começou no dia 21 de outubro e encerra-se dois dias depois, em 23. Um caso notável de cidadania express, voltada para os que têm acesso ao mundo virtual.
A comissão eleitoral que decidiu o pré-cadastro foi escolhida pela Portaria n° 194/11/SEHAB: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/portaria_194_11_sehab_doc_07_7_11_pg_19_1316616804.pdf
Na ata da 6ª reunião ordinária da Comissão executiva do Conselho, a conselheira Violêta S. Kubrusly, representante da Secretaria Municipal de Habitação, tratou do processo eleitoral e expressou preocupação com a participação do eleitorado:
Vamos falar de eleição. Esse é um ano eleitoral, a gente vai aí mais uma vez para um ano eleitoral no CMH para os movimentos populares e para as vagas que se apresentam com maior demanda do que vagas na sociedade civil, isso já aconteceu também outras vezes, hoje eu tentei que esta noticia já tivesse com mais conteúdo, mas eu estou indo agora saindo daqui, a gente vai para o TER (Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo) nosso parceiro desde 2005. Para realização dessas eleições, que elas como vocês sabem e tantos de vocês já foram eleitos várias vezes, passamos por vários formatos, mais do bom disso é que apesar de que a gente tem uma ação que está correndo aí, que a gente tem respondido que o conselheiro Dito impetrou aí no ministério público e a gente tem respondido na medida de todas as demandas que a gente têm a Dra Vera acompanha também este caso nós tivemos um saudável incremento de mais do dobro dos votantes entre uma eleição e outra, então vamos ver pelo lado positivo de que esse é um conselho ativo que os movimentos populares se interessam por ele e a sociedade civil também está aqui presente ativa. Então a gente apesar do revés, e tem revés sempre. É positivo que a gente tenha o dobro de votantes e com isso a gente quer incrementar e que mais pessoas conheçam o CMH.
Essa representante da Prefeitura mostrou bem a preocupação institucional com a participação popular nas eleições, "resolvida" agora por meio da restrição do pré-cadastramento. Na reunião da Comissão Eleitoral em 8 de agosto deste ano, a mesma representante defendeu o modelo de pré-cadastramento, que foi aprovado:
Eu queria defender que o pré-cadastramento não é restritivo. Ele só organizaria melhor o nosso modo de operação. Nem os Movimentos têm de fazer essa gestão, nem a PRODAM teria, nem a Prefeitura de São Paulo, um exército de 18.000 pessoas só para estarem de pé junto de cada urna dessas. Ao passo que com o pré-cadastramento, dada toda a publicidade necessária, o meu desejo era que fosse ao site do TRE, mas eles não aceitaram postar, então será no site oficial da Prefeitura de São Paulo, que é um site sério.
Sim, a situação é séria. A publicidade não é suficiente e o prazo para o pré-cadastramento é curtíssimo.
Antônio L. Abad, da Empresa de Tecnologia do Município, foi claro nessa reunião a respeito das intenções da Prefeitura: "Sou gerente de relacionamento da PRODAM. O ano passado efetuou uma eleição com pré-cadastramento e dos 9 milhões, somente 43.000 se cadastraram. Dos 43.000, 7.000 votaram." Obviamente, a intenção é de restringir o acesso.
A conselheira Maria da Graça Jesus Xavier Vieira protestou: "Nós do Movimento achamos que não é democrático. A molecada vai mesmo no Orkut, no Facebook mas esse não é o nosso público, tem molecada na favela sendo despejada, pai de família, mãe de família, esse público que são os que vão votar."
A questão é, de fato, o público. As regras impuseram uma barreira de classe, a mesma lei da segregação que governa a cidade de São Paulo. Falta saber se essa restrição é lícita, à luz do princípio democrático na gestão da cidade e da tipificação como improbidade administrativa do impedimento à participação popular, segundo o Estatuto da Cidade, que completou dez anos em julho de 2011 sem muita festa.
Outra questão: a restrição a esse exercício dos direitos políticos não é um problema relativo ao direito eleitoral, e não ao de direito administrativo? E, sendo assim, não é inconstitucional que o Município institua esse pré-cadastramento de eleitores, tendo em vista que a União Federal possui competência privativa para legislar sobre direito eleitoral (art. 22, I)?
P.S.: Apenas para lembrar que uma saída tradicional das elites brasileiras, quando o sistema ameaça ficar democrático, é restringir o direito de voto: assim foi na reforma eleitoral de 1881, que reduziu a um décimo o eleitorado (aumentando a exigência de patrimônio e vedando o direito de voto aos analfabetos); até, mais recentemente, na ditadura militar, com a instituição de eleição direta para presidente, para governador e, enfim, com o Pacote de Abril de 1977, feito para impedir que a soberania popular conseguisse transferir o domínio do Congresso para o MDB.
Devemos lembrar que ano que vem é de eleições municipais, e os setores imobiliários têm o hábito de financiar campanhas de vereadores e prefeitos. Um CMH em 2012 afinado com os interesses desses setores - que são opostos aos dos movimentos pela moradia - poderia gerar perversos efeitos duradouros sobre a cidade.
Dedico esta nota para quem acha que no Brasil os direitos de "primeira geração" estão garantidos...
sábado, 22 de outubro de 2011
Desarquivando o Brasil XXII: Rubens Paiva e desaparecidos desde o nome
A jornalista Niara de Oliveira chamou-me atenção para o curioso projeto de resolução da Câmara dos Deputados (PRC 85/11) que prevê que "o corredor de acesso à Biblioteca da Câmara dos Deputados passará a ser chamado de Espaço Rubem Paiva". Quem seria essa pessoa tão importante?
Vejam o projeto:
Com a justificativa, descobrimos que o líder do PT na Câmara e essa deputada do PCdoB queriam referir-se ao ex-deputado federal Rubens Paiva, cujo nome não sabiam ao certo. O erro não era inevitável, no entanto; bastaria que os nobres parlamentares tivessem visto a exposição que a própria Câmara dos Deputados fez no início deste ano, com lançamento do livro Segredo de Estado: o desaparecimento de Rubens Paiva, de Jason Tércio (que ainda não li).
O projeto foi apresentado por seus autores em dez de outubro; em 18, pediu-se urgência para a tramitação, em um requerimento multipartidário que foi apoiado pelas ldieranças não só dos partidos dos deputados autores, mas também do PMDB, PSOL, DEM, PDT, PSDB, PSB, PTB, PV, PPS etc. Ou seja, governistas e oposicionistas uniram-se neste interessante colapso mnemônico em relação ao nome de Rubens Paiva. A Agência de Notícia da Câmara publicou com esse erro a notícia [já foi corrigida].
O curioso é que o deputado federal Chico Alencar (PSOL/RJ), responsável pelo parecer, corrigiu o nome (não fora ele professor de História!). O parecer foi apresentado em plenário no dia 19 deste mês e aprovado no mesmo dia o requerimento de urgência. Aqui não lemos a redação final, e notícia da Câmara a respeito mantém o erro.
Na fala de Chico Alencar, lemos que "nós entendemos que a aprovação deste Projeto tem que ter, como consequência inclusive, a recondução ao Parlamento de Rubens Paiva, com esse símbolo da sua memória". O curioso é que o projeto carregue em si a marca do esquecimento, eis que nem o nome do desaparecido foi lembrado corretamente.
O deputado teve seus direitos políticos suspensos no décimo dia do golpe militar, por meio do Ato do Comando Supremo da Revolução nº 1, de 10 de Abril de 1964.
A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em vinte de abril de 2011, aprovou a outorga post mortem da Medalha Tiradentes ao ex-deputado. Tratou-se de projeto do deputado estadual Paulo Ramos (PDT); o texto que apresentou para a justificativa é superior ao do projeto aprovado na Câmara dos Deputados.
Para lembrar de Rubens Paiva, um documento que mostra a forte vigilância que precedeu o golpe de 1964: um relatório sobre reunião em setembro de 1963 na sede do Comitê Estadual de São Paulo do Partido Comunista, acompanhada por algum informante da polícia. Nessa época - o governo de João Goulart teria ainda apenas menos de um ano - o general Peri Bevilacqua se indispunha com as centrais sindicais - depois de ter sido o primeiro general a defender a posse de João Goular na presidência.
Segundo o relatório, o Partido Comunista teria decidido por uma estratégia de confronto com Bevilacqua, que hoje pode ser considerada equivocada.
Lemos no documento que "os deputados paulistas ROGÊ FERREIRA e RUBENS PAIVA estão articulando um movimento de repúdio ao Gen. Pery". Menos de um ano depois, os dois estariam cassados pelo mencionado Ato do Comando Supremo da Revolução nº 1, de 10 de Abril de 1964.
Alguns anos depois, seria a vez de Peri Bevilacqua, que foi aposentado compulsoriamente pelo Ato Institucional nº 5. O AI-5 foi empregado pela ditadura militar para, entre outros fins, intervir no Superior Tribunal Militar, onde estava o general legalista, e também - apesar do negacionismo dos juristas de direita - no Supremo Tribunal Federal.
Vejam o projeto:
Projeto de resolução Nº , de 2011
(Dos Srs. Paulo Teixeira e Manuela D´Ávila)
O corredor de acesso à Biblioteca da Câmara dos Deputados passará a ser chamado de Espaço Rubem Paiva.
Art. 1º - O corredor de acesso à Biblioteca passará a ser chamado de Espaço Rubem Paiva.
§ único – No local será instalado busto do ex-deputado Rubem Paiva, a acompanhado de uma placa que conterá as seguintes informações: “Deputado Rubem Paiva – (1929 -1971) – Defensor da liberdade e da democracia”.
Art. 2º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Justificação
Rubem Paiva é um mártir da liberdade e da democracia no Brasil. Na condição de militante do PTB, partido do então Presidente João Goulart, ele foi eleito deputado federal nas últimas eleições democráticas realizadas antes do golpe militar de 1964.
Ele era engenheiro civil formado pela Universidade Mackenzie, foi Presidente do Centro Acadêmico de sua faculdade e vice-presidente da UEE (União Estadual dos Estudantes), na condição de militante do movimento estudantil da época, Rubem Paiva participou das grandes mobilizações populares da campanha o “Petróleo é Nosso”, que comoveram a nação e que criaram as condições para o estabelecimento do monopólio estatal da exploração do petróleo e para a criação Petrobrás.
Como Deputado, Rubem Paiva participou das investigações levadas a efeito pela CPI destinada a investigar as atividades do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), duas instituições financiadas pela CIA, e que estiveram na raiz da preparação e do financiamento do golpe de estado que seria desfechado em 31 de março de 1.964.
Foi por este passado democrático que o Deputado Rubem Paiva tornou-se objeto da ira dos golpistas desde o primeiro momento do estabelecimento do regime. Não foi, portanto, uma surpresa que o nome de Rubem Paiva aparecesse da primeira lista de parlamentares cassados pelo regime de exceção, divulgada em 10 de abril de 1964.
Logo depois do golpe, compelido pelo ambiente de caça às bruxas instalado no país, Rubem Paiva esteve exilado na antiga Iugoslávia e na França. Mas em menos de um ano voltou ao Brasil e se reintegrou na resistência pacífica ao regime de exceção.
Em 20 de janeiro de 1971, quando retornava do Chile, então governado pelo Presidente Salvador Allende, socialista que liderava o governo de Unidade Popular, Rubem Paiva teve sua casa invadida e foi sequestrado, desde então ele é considerado desaparecido, mas existem testemunhos de sobreviventes das masmorras do regime que dão conta que Rubem Fonseca foi barbaramente torturado e assassinado.
Diante do exposto, creio que a homenagem proposta a Rubem Paiva, nos termos desse Projeto de Resolução, é mais do que justa e pretende contribuir para a perpetuação no espaço físico desta Câmara dos Deputados da memória de um mártir da democracia e da liberdade.
Sala das Sessões, setembro de 2011
Deputado Paulo Teixeira
PT
Deputada Manuela D´Àvila
PCdoB
Com a justificativa, descobrimos que o líder do PT na Câmara e essa deputada do PCdoB queriam referir-se ao ex-deputado federal Rubens Paiva, cujo nome não sabiam ao certo. O erro não era inevitável, no entanto; bastaria que os nobres parlamentares tivessem visto a exposição que a própria Câmara dos Deputados fez no início deste ano, com lançamento do livro Segredo de Estado: o desaparecimento de Rubens Paiva, de Jason Tércio (que ainda não li).
O projeto foi apresentado por seus autores em dez de outubro; em 18, pediu-se urgência para a tramitação, em um requerimento multipartidário que foi apoiado pelas ldieranças não só dos partidos dos deputados autores, mas também do PMDB, PSOL, DEM, PDT, PSDB, PSB, PTB, PV, PPS etc. Ou seja, governistas e oposicionistas uniram-se neste interessante colapso mnemônico em relação ao nome de Rubens Paiva. A Agência de Notícia da Câmara publicou com esse erro a notícia [já foi corrigida].
O curioso é que o deputado federal Chico Alencar (PSOL/RJ), responsável pelo parecer, corrigiu o nome (não fora ele professor de História!). O parecer foi apresentado em plenário no dia 19 deste mês e aprovado no mesmo dia o requerimento de urgência. Aqui não lemos a redação final, e notícia da Câmara a respeito mantém o erro.
Na fala de Chico Alencar, lemos que "nós entendemos que a aprovação deste Projeto tem que ter, como consequência inclusive, a recondução ao Parlamento de Rubens Paiva, com esse símbolo da sua memória". O curioso é que o projeto carregue em si a marca do esquecimento, eis que nem o nome do desaparecido foi lembrado corretamente.
O deputado teve seus direitos políticos suspensos no décimo dia do golpe militar, por meio do Ato do Comando Supremo da Revolução nº 1, de 10 de Abril de 1964.
A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em vinte de abril de 2011, aprovou a outorga post mortem da Medalha Tiradentes ao ex-deputado. Tratou-se de projeto do deputado estadual Paulo Ramos (PDT); o texto que apresentou para a justificativa é superior ao do projeto aprovado na Câmara dos Deputados.
Para lembrar de Rubens Paiva, um documento que mostra a forte vigilância que precedeu o golpe de 1964: um relatório sobre reunião em setembro de 1963 na sede do Comitê Estadual de São Paulo do Partido Comunista, acompanhada por algum informante da polícia. Nessa época - o governo de João Goulart teria ainda apenas menos de um ano - o general Peri Bevilacqua se indispunha com as centrais sindicais - depois de ter sido o primeiro general a defender a posse de João Goular na presidência.
Segundo o relatório, o Partido Comunista teria decidido por uma estratégia de confronto com Bevilacqua, que hoje pode ser considerada equivocada.
Lemos no documento que "os deputados paulistas ROGÊ FERREIRA e RUBENS PAIVA estão articulando um movimento de repúdio ao Gen. Pery". Menos de um ano depois, os dois estariam cassados pelo mencionado Ato do Comando Supremo da Revolução nº 1, de 10 de Abril de 1964.
Alguns anos depois, seria a vez de Peri Bevilacqua, que foi aposentado compulsoriamente pelo Ato Institucional nº 5. O AI-5 foi empregado pela ditadura militar para, entre outros fins, intervir no Superior Tribunal Militar, onde estava o general legalista, e também - apesar do negacionismo dos juristas de direita - no Supremo Tribunal Federal.
quinta-feira, 20 de outubro de 2011
30 dias de leituras: Do coletivo e do incompleto, a literatura
30 livros em um mês
Dia 30: Um livro que você ainda não leu e quer ler.
Este tópico, diferente dos outros que mantive, é impossível, se eu o seguisse literalmente. Imaginar apenas um livro que eu queira ler? Eu poderia ser tão ignorante para pretender que bastaria um livro para minha ignorância? Ou tão arrogante para achar que só necessitaria ler mais um?
De crenças desse tipo podem ser originar fundamentalismos a partir de uma obra sacralizada, seja a bíblia, o corão, o livro vermelho, o livro verde... A ideia de que possa haver o Livro é contrária à própria ideia de literatura, que é sempre incompleta e vária.
No meu caso, faltam-me integralmente diversas literaturas... Somente este tópico, para ser honesto, deveria ser muito maior do que os trinta anteriores reunidos e multiplicados (trinta e não vinte e nove, pois fiz uma introdução).
Uma boa forma de ingressar nas literaturas são as épicas - principalmente as de autor anônimo, isto é, coletivo. Vou indicar somente três. Pretendo ler Dede Korkut, que se tornou, no ano passado, o primeiro livro traduzido do turco para o português. Marco de Pinto foi o tradutor que logrou esta façanha histórica. Em outras línguas, ele existe há mais tempo, como em inglês.
Não o tenho ainda. Estou em casa há mais de um ano com outro livro, de autoria coletiva, mas não traduzido da língua original (o original foi consultado, porém): a edição de Popol vul, o épico maia que inspirou esta música a Ginastera, pelo poeta Sérgio Medeiros (um autor que admiro) e Gordon Brotherst.
Esperam-me também as Mil e Uma Noites que o professor Mamede Mustafa Jarouche está traduzindo pela primeira vez diretamente do arabe para o português. Vejam, na entrevista, como ele discretamente revela a fonte de histórias que Paulo Coelho assinou...
Paulo Coelho recorreu às águas das fontes anônimas, porém as ressecando e reduzindo os horizontes coletivos a uma estreiteza quase individual.
Bem ao inverso, essas obras coletivas, também por terem passado por milhares de bocas, podem alcançar uma riqueza impressionante, de que só conseguem se aproximar os autores excepcionais. Elas passaram por diversas vidas, contêm diversas vidas, e tenho apenas uma para lê-las.
Isso remete para a questão da leitura. Uma das histórias tristes do Nietzsche louco foi a de encontrarem-no atentamente lendo um livro - de cabeça para baixo.
Não seria essa, porém, uma forma legítima de ler? Essa inversão? Quando escrevi sobre livros que li, não estava escrevendo sobre mim mesmo? E, ao escrever sobre mim mesmo, não estava a inventar outro? Um outro que pode ser tantos e que não tem nome?
Não sei, por isso devo continuar lendo e escrevendo.
Sobre aquele episódio com Nietzsche, escrevi aos vinte e tantos anos um poeminha que ficou inédito. Para acabar esta série de forma singela, deixo-o aqui, um pouquinho revisto:
Dia 30: Um livro que você ainda não leu e quer ler.
Este tópico, diferente dos outros que mantive, é impossível, se eu o seguisse literalmente. Imaginar apenas um livro que eu queira ler? Eu poderia ser tão ignorante para pretender que bastaria um livro para minha ignorância? Ou tão arrogante para achar que só necessitaria ler mais um?
De crenças desse tipo podem ser originar fundamentalismos a partir de uma obra sacralizada, seja a bíblia, o corão, o livro vermelho, o livro verde... A ideia de que possa haver o Livro é contrária à própria ideia de literatura, que é sempre incompleta e vária.
No meu caso, faltam-me integralmente diversas literaturas... Somente este tópico, para ser honesto, deveria ser muito maior do que os trinta anteriores reunidos e multiplicados (trinta e não vinte e nove, pois fiz uma introdução).
Uma boa forma de ingressar nas literaturas são as épicas - principalmente as de autor anônimo, isto é, coletivo. Vou indicar somente três. Pretendo ler Dede Korkut, que se tornou, no ano passado, o primeiro livro traduzido do turco para o português. Marco de Pinto foi o tradutor que logrou esta façanha histórica. Em outras línguas, ele existe há mais tempo, como em inglês.
Não o tenho ainda. Estou em casa há mais de um ano com outro livro, de autoria coletiva, mas não traduzido da língua original (o original foi consultado, porém): a edição de Popol vul, o épico maia que inspirou esta música a Ginastera, pelo poeta Sérgio Medeiros (um autor que admiro) e Gordon Brotherst.
Esperam-me também as Mil e Uma Noites que o professor Mamede Mustafa Jarouche está traduzindo pela primeira vez diretamente do arabe para o português. Vejam, na entrevista, como ele discretamente revela a fonte de histórias que Paulo Coelho assinou...
Paulo Coelho recorreu às águas das fontes anônimas, porém as ressecando e reduzindo os horizontes coletivos a uma estreiteza quase individual.
Bem ao inverso, essas obras coletivas, também por terem passado por milhares de bocas, podem alcançar uma riqueza impressionante, de que só conseguem se aproximar os autores excepcionais. Elas passaram por diversas vidas, contêm diversas vidas, e tenho apenas uma para lê-las.
Isso remete para a questão da leitura. Uma das histórias tristes do Nietzsche louco foi a de encontrarem-no atentamente lendo um livro - de cabeça para baixo.
Não seria essa, porém, uma forma legítima de ler? Essa inversão? Quando escrevi sobre livros que li, não estava escrevendo sobre mim mesmo? E, ao escrever sobre mim mesmo, não estava a inventar outro? Um outro que pode ser tantos e que não tem nome?
Não sei, por isso devo continuar lendo e escrevendo.
Sobre aquele episódio com Nietzsche, escrevi aos vinte e tantos anos um poeminha que ficou inédito. Para acabar esta série de forma singela, deixo-o aqui, um pouquinho revisto:
Como aceitar presentes
O filósofo lê o livro de cabeça para baixo;
chega o visitante
e lhe dá uma estátua;
o filósofo aceita-a como o livro
em que a leitura a converterá.
O filósofo vira o mundo de cabeça para baixo;
o visitante vai-se
e não vê que a estátua foi lida:
o filósofo quebra-a como ao mundo
que a leitura subverterá.
Dar ao filósofo uma representação,
ele a devolverá em cacos.
(quando os visitantes chegassem,
diz o filósofo, escrevi muitas coisas belas, a sede dada à água quando a história sorveu a guerra, lembrar que para o abismo todas as vias são livres exceto as da queda, desonestidade ou o partido da utopia, também a sepultura anônima de Deus e as impressões digitais dos clérigos, na escola do perigo só os expulsos são aprovados, sobretudo que a beleza não escreve -
para verem o próximo século tentarão copiar meus óculos, mas, faltos de olhos, apenas moldarão os aros segundo o formato do nariz)
O filósofo oferta o livro de cabeça para baixo,
mas os visitantes deixam a casa
supondo que no mundo encontrarão a ordem.
O filósofo quebra-se.
Esse é o presente que dá ao mundo;
cada caco uma leitura do todo
inverterá
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
30 dias de leituras: Machado, ainda
30 livros em um mês
Dia 29: Um livro que você adiou ler.
Antes de tratar do livro, faço um anúncio que me pediram: saiu número novo da Revista Ética e Filosofia Política, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Neste volume 2 da edição 14, foi publicado um dossiê Direito e Arte, organizado por Bruno Amaro Lacerda.
Nesse número, entre outros textos, há um artigo de Mônica Sette Lopes, "Os juízes no espelho: ver e ser visto", e nada menos do que dois trabalhos sobre Machado de Assis - um deles, meu: "Machado de Assis e o olhar irônico no país dos bacharéis".
Não se deve adiar Machado; no entanto, confesso que fiz isso e somente li em 2010 Memorial de Aires. Não sei bem a razão. Mas lembro que achei Quincas Borba tão fantástico que temia que esse último romance fosse uma obra do declínio.
Um Machado menor ainda seria superior a uma obra maior dos outros, é verdade. Mas não se trata de uma obra menor.
Depois de ter feito uso dos cadernos do conselheiro Aires em Esaú e Jacó, Machado escreveu no seu último romance um "recorte" do Memorial relativo aos anos de 1888 e 1889. Machado, sorrateiramente, apresenta a obra (mais curta do que os grandes romances anteriores) como fragmento e escolhe os anos da Abolição e da República. Significativamente, a narrativa não chega até a República.
À semelhança de Falstaff na obra de Verdi, o último romance de Machado mostra o autor mais ágil do que nunca: os acontecimentos fluem e logo o velho enamorado desilude-se, vê o jovem chegar, a viúva deixar a fazenda de vez, voltar ao piano e ao amor, casar-se e, enfim, deixar o país. A época é de mudanças no país também.
O livro foi publicado em 1908 e retomou problemas que tinham atravessado sua obra. Em crônica de 1º de janeiro de 1893, Machado havia escrito sobre a fraca eficácia social da Lei Áurea:
No artigo na revista da UFJF, comentei que esse trecho representava um exemplo do privatismo a impedir a eficácia da liberdade. O individualismo liberal, fundado no direito de propriedade, só poderia considerar a escravidão como algo natural, e Abolição como interferência indevida do Estado em um direito privado absoluto.
Memorial de Aires, discretamente, mostra-nos a perversidade dessa ordem social. Na anotação de 3 de outubro de 1888, lemos a conversa de Campos - desembargador - com Aires; o homem da Justiça (justiça brasileira, bien sûr) refere-se a uma "fuga de libertos" na fazenda da sobrinha. Se libertos, por que fuga? O desembargador não estava atualizado no tocante à lei de primeiro de maio?
Ele estava atualizado - a ordem social é que não. Em 10 de abril do mesmo ano, Aires conta que o desembargador havia sido consultado pelo seu irmão, um barão, sobre a redação de um ato de alforria coletiva dos escravos daquela mesma fazenda. A fala do barão é um sinal desse privatismo; somente o proprietário teria o direito de dispor de seus bens, e ele o fazia antes que o governo interferisse em seu patrimônio por meio da Abolição: "Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso."
Não se tratava propriamente de princípios, no entanto; havia muito de cálculo no gesto do escravista: "Estou certo de que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, pelo gosto de morrer onde nasceram."
Morrer onde nasceram - "onde", aqui, assinala menos um lugar do que um estatuto, o da escravidão.
A morte perpassa todo o romance, em parte por causa das preocupações do aposentado Aires, na provecta (para a época) idade de 63 anos, e do casal Aguiar, que acaba por perder seus "filhos" informais, que casam um com o outro e viajam para Portugal. O retrato que Machado faz dessa velhice é comovente, principalmente na cena final, que não tem data: os dois velhos estão em frente um ao outro, calados, e Aires não ousa prosseguir.
O tom crepuscular é reforçado pelo fato de a narrativa não chegar ao 15 de novembro: aquele mundo acabava. E o futuro estava, curiosamente, na Europa: Tristão e Fidélia, ambos com nome de personagem de ópera alemã, instalam-se em Portugal, onde os "chefes de Lisboa" já fizeram todos os arranjos para que Tristão fosse eleito por lá. É claro que, durante toda a "campanha", ele estava no Brasil...
Velhas práticas políticas lusitanas, que tão bem copiamos! Ao fazer a nova geração voltar para a monarquia portuguesa, para o colonizador, não estaria o romance sugerindo que o futuro permaneceria agrilhoado ao passado e seria tão republicano quanto o proprietário de Uberaba e seus capangas?
A expansão da fronteira agrícola na Amazônia, as grifes estrangeiras instaladas no Brasil, a troca do descanso semanal pelo mensal em obras do PAC parecem mostrar que o Brasil ainda não saiu do universo retratado por Machado de Assis.
Dia 29: Um livro que você adiou ler.
Antes de tratar do livro, faço um anúncio que me pediram: saiu número novo da Revista Ética e Filosofia Política, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Neste volume 2 da edição 14, foi publicado um dossiê Direito e Arte, organizado por Bruno Amaro Lacerda.
Nesse número, entre outros textos, há um artigo de Mônica Sette Lopes, "Os juízes no espelho: ver e ser visto", e nada menos do que dois trabalhos sobre Machado de Assis - um deles, meu: "Machado de Assis e o olhar irônico no país dos bacharéis".
Não se deve adiar Machado; no entanto, confesso que fiz isso e somente li em 2010 Memorial de Aires. Não sei bem a razão. Mas lembro que achei Quincas Borba tão fantástico que temia que esse último romance fosse uma obra do declínio.
Um Machado menor ainda seria superior a uma obra maior dos outros, é verdade. Mas não se trata de uma obra menor.
Depois de ter feito uso dos cadernos do conselheiro Aires em Esaú e Jacó, Machado escreveu no seu último romance um "recorte" do Memorial relativo aos anos de 1888 e 1889. Machado, sorrateiramente, apresenta a obra (mais curta do que os grandes romances anteriores) como fragmento e escolhe os anos da Abolição e da República. Significativamente, a narrativa não chega até a República.
À semelhança de Falstaff na obra de Verdi, o último romance de Machado mostra o autor mais ágil do que nunca: os acontecimentos fluem e logo o velho enamorado desilude-se, vê o jovem chegar, a viúva deixar a fazenda de vez, voltar ao piano e ao amor, casar-se e, enfim, deixar o país. A época é de mudanças no país também.
O livro foi publicado em 1908 e retomou problemas que tinham atravessado sua obra. Em crônica de 1º de janeiro de 1893, Machado havia escrito sobre a fraca eficácia social da Lei Áurea:
Há fatos mais extraordinários que a desolação da Babilônia. Há o fato de um preto de Uberaba que, fugindo agora da casa do antigo senhor, veio a saber que estava livre desde 1888, pela Lei da Abolição. [...] O rei não entrou na casa do ex-senhor de Uberaba, nem o presidente da república. O que completa a cena é que uns oito homens armados foram buscar o tal João (chama-se João) à casa do engenheiro Tavares, onde achara abrigo. [...] Renunciar ao escravo é um crime, terá dito o senhor de Uberaba [...]
No artigo na revista da UFJF, comentei que esse trecho representava um exemplo do privatismo a impedir a eficácia da liberdade. O individualismo liberal, fundado no direito de propriedade, só poderia considerar a escravidão como algo natural, e Abolição como interferência indevida do Estado em um direito privado absoluto.
Memorial de Aires, discretamente, mostra-nos a perversidade dessa ordem social. Na anotação de 3 de outubro de 1888, lemos a conversa de Campos - desembargador - com Aires; o homem da Justiça (justiça brasileira, bien sûr) refere-se a uma "fuga de libertos" na fazenda da sobrinha. Se libertos, por que fuga? O desembargador não estava atualizado no tocante à lei de primeiro de maio?
Ele estava atualizado - a ordem social é que não. Em 10 de abril do mesmo ano, Aires conta que o desembargador havia sido consultado pelo seu irmão, um barão, sobre a redação de um ato de alforria coletiva dos escravos daquela mesma fazenda. A fala do barão é um sinal desse privatismo; somente o proprietário teria o direito de dispor de seus bens, e ele o fazia antes que o governo interferisse em seu patrimônio por meio da Abolição: "Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso."
Não se tratava propriamente de princípios, no entanto; havia muito de cálculo no gesto do escravista: "Estou certo de que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, pelo gosto de morrer onde nasceram."
Morrer onde nasceram - "onde", aqui, assinala menos um lugar do que um estatuto, o da escravidão.
A morte perpassa todo o romance, em parte por causa das preocupações do aposentado Aires, na provecta (para a época) idade de 63 anos, e do casal Aguiar, que acaba por perder seus "filhos" informais, que casam um com o outro e viajam para Portugal. O retrato que Machado faz dessa velhice é comovente, principalmente na cena final, que não tem data: os dois velhos estão em frente um ao outro, calados, e Aires não ousa prosseguir.
O tom crepuscular é reforçado pelo fato de a narrativa não chegar ao 15 de novembro: aquele mundo acabava. E o futuro estava, curiosamente, na Europa: Tristão e Fidélia, ambos com nome de personagem de ópera alemã, instalam-se em Portugal, onde os "chefes de Lisboa" já fizeram todos os arranjos para que Tristão fosse eleito por lá. É claro que, durante toda a "campanha", ele estava no Brasil...
Velhas práticas políticas lusitanas, que tão bem copiamos! Ao fazer a nova geração voltar para a monarquia portuguesa, para o colonizador, não estaria o romance sugerindo que o futuro permaneceria agrilhoado ao passado e seria tão republicano quanto o proprietário de Uberaba e seus capangas?
A expansão da fronteira agrícola na Amazônia, as grifes estrangeiras instaladas no Brasil, a troca do descanso semanal pelo mensal em obras do PAC parecem mostrar que o Brasil ainda não saiu do universo retratado por Machado de Assis.
domingo, 16 de outubro de 2011
30 dias de leituras: Música, Cecília e Augusto
30 livros em um mês
Dia 28: Um livro que você cita de cor.
São tantos, que é difícil escolher. Alguns deles (Rimbaud e Pessoa) já apareceram nestes trinta dias de leituras, que viraram quase quarenta (não consegui manter o ritmo de uma nota por dia).
Como são muitos, creio que é legítimo escolher os primeiros na minha experiência de leitura. Eu lia Cecília Meireles na edição da Obra poética de 1958, pela José Aguilar, que meus pais tinham em casa, e Augusto dos Anjos, em uma edição do Eu e outras poesias um pouco menor do que as atuais. Hoje, temos a edição da Ática com os comentários de Sérgio Alcides.
A edição da José Aguilar era linda, muito diferente da que lançou a Nova Aguilar. Em 2001, foi publicada pela Nova Fronteira, com organização de Antonio Carlos Secchin, a primeira edição realmente completa da poesia, com os dois primeiros livros da autora, mas hoje também está esgotada.
O livro de 1958 incluía os desenhos de Cecília - que hoje estão publicados em Batuque, samba e macumba pela Martins.
Essa edição não tinha, evidentemente, os últimos poemas e o vasto material inédito que ela deixou ao morrer - tão nova - em 1964. Consegui, depois (faz tempo), achar em sebo esses poemas (inclusive o livro Solombra) nas edições organizadas por Darcy Damasceno.
Dela, porém, não saberia destacar um livro: desde Viagem, ela muda muito pouco. Romanceiro da Inconfidência é diferente pela matéria, mas a poética, nós a reconhecemos prontamente. Mar absoluto e outros poemas talvez seja o mais diverso nesse aspecto. Já Solombra se destaca pela adoção de uma mesma forma para todos poemas. E Vaga música? Retrato natural? Canções?
Entre os inéditos, há coisas desiguais, que ela provavelmente não teria publicado. Mas neles encontramos versos como "Mas eu amo o eterno e o efêmero e queria fazer o efêmero eterno."; "Ah! do que se disse nada mais se diga!/ Vai-se a tua Amada - vai-se a tua Amiga!"// Ah! do que era tanto, não resta mais nada.../ Mas houve essa Amiga! mas houve essa Amada!"; "Mas essa estrela,/ Rua da Estrela,/ com que o teu nome/ me deslumbrara,/ essa eu não via./ Talvez chegava/ pela alta noite?/ De madrugada?"; "Vão saindo da tua cabeça as campinas sangrentas./ Como a cauda dos cometas, vão para longe/ as perspectivas de corpos caídos e mãos abertas."
Tantos desses poemas tematizam a morte. Ela justificava essa temática com sua experiência pessoal. Creio até que foi a morte dos chamados inconfidentes o que a motivou para escrever o Romanceiro, livro em que os fantasmas literalmente falam.
O som predominante na obra acaba sendo o da elegia. A música na poesia de Cecília - ela, entre outros mil talentos, também era musicista - é tão forte que somos tomados por seu ritmo, que atinge diretamente a sensibilidade, antes mesmo de podermos apreender-lhe o sentido. E assim, sem notar, aprendemos de cor seus poemas.
O ritmo é explicitamente sentido nesta poesia ("Tem sangue eterno a asa ritmada"). Um exemplo disso é "Ária", de Retrato natural, um prodígio técnico com forte carga emocional: "Quem nos vai recordar/ na noite profunda?/ Pensamento tão gasto,/ amor sem milagre/ na profunda noite./ Os amigos se extinguem."
E nem citei os poemas que sei de cor...
Música de caráter bem diverso é a de Augusto dos Anjos. É curioso notar que os dois poetas são sucesso de público - e foi a fidelidade dos leitores que salvou a poesia de Augusto do esquecimento, já que nem mesmo os modernistas, em um primeiro momento, deram-lhe atenção. Talvez a musicalidade de ambos, que atinge o coração antes mesmo do entendimento, tenha criado essa empatia.
A de Augusto dos Anjos é mais violenta do que a de Cecília, mas tão característica que o leitor pode entender o sentido do poema sem compreender todas as palavras - o que é notável, pois ele usava muito léxico científico, e palavras não normalmente associadas à poesia, ainda mais no início do século XX, tempos de principado parnasiano no Brasil. Imaginem a coragem de começar um soneto desta forma: "Eu, filho, do carbono e do amoníaco."; escrever um decassílabo somente com duas palavras, e estas: "Profundissimamente hipocondríaco" (versos do soneto "Psicologia de um Vencido", que sei de cor).
Cientificismo? Não é tão simples, pois a astrologia e os misticismos entram nesse caldeirão poético e lexicográfico, além de filosofia - especialmente Schopenhauer. Augusto dos Anjos sempre me soou como um desbravador que tentava incorporar novos continentes à poesia: "Sofro, desde a epigênesis da infância,/ A influência má dos signos do Zodíaco!"
Um desses continentes é a pobreza. Essa poesia tão pessimista em tantos momentos nasce de uma experiência brasileira: "Sol brasileiro! Queima-me os destroços!", lemos na última estrofe do poema longo "Gemidos de arte". No quadro universalista de dor pintado pelo poeta, temos "É o dinheiro coberto de azinhavre/ Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!"
A consciência e a autocrítica no tocante à dominação de classe aparece em poemas muito anteriores a Drummond rever a oligarquia mineira. O soneto "Ricordanza della mia Gioventù" compara o furto de moedas do patrão com o "furto" (para o Código Penal burguês, não se poderia caracterizar assim...) do leite que a ama-de-leite poderia ter destinado à própria filha, mas tem de ser dividido com o filho do patrão...
Nesse poema, está ausente o léxico científico; não é necessário. Porém, para traçar o quadro geral de "Os doentes", Augusto dos Anjos convoca todos os seus recursos para ultrapassá-los: "Tentava compreender com as conceptivas/ Funções do encéfalo as substâncias vivas/ Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...// E via em mim, coberto de desgraças,/ O resultado de bilhões de raças/ Que há muitos anos desapareceram!"
Ele de forma alguma está interessado em simplesmente repetir ensinamentos científicos e filosóficos, e sim submete esses recursos a uma síntese pessoal (não por acaso o livro chama-se, atrevidamente, Eu) e poética - a poesia tem uma dignidade nesta obra impressionante, de traçar uma imagem não só do humano, mas como do universo - em vários momentos, ele rompe com o antropocentrismo e tenta fazer a matéria e outros animais falarem, numa espantosa solidariedade com todos os seres.
Não é de estranhar que poetas com ambição artística mais restrita e literatura mais palatável e cordial tenham rejeitado essa obra. Lembro de Mário Quintana, afirmando que Augusto dos Anjos era Baudelaire em último estado de decomposição...
Na IV seção de "Os doentes" temos o extermínio dos indígenas, assunto sempre atual, ainda mais com o governo de Dilma Rousseff e a possibilidade de genocídio com a eventual construção de Belo Monte:
Uma crítica contundente ao progresso. Ele também é um poeta da morte, de vários tipos de morte, inclusive o genocídio e seus sons tonitruantes, que a história brasileira já conhece - de cor.
Dia 28: Um livro que você cita de cor.
São tantos, que é difícil escolher. Alguns deles (Rimbaud e Pessoa) já apareceram nestes trinta dias de leituras, que viraram quase quarenta (não consegui manter o ritmo de uma nota por dia).
Como são muitos, creio que é legítimo escolher os primeiros na minha experiência de leitura. Eu lia Cecília Meireles na edição da Obra poética de 1958, pela José Aguilar, que meus pais tinham em casa, e Augusto dos Anjos, em uma edição do Eu e outras poesias um pouco menor do que as atuais. Hoje, temos a edição da Ática com os comentários de Sérgio Alcides.
A edição da José Aguilar era linda, muito diferente da que lançou a Nova Aguilar. Em 2001, foi publicada pela Nova Fronteira, com organização de Antonio Carlos Secchin, a primeira edição realmente completa da poesia, com os dois primeiros livros da autora, mas hoje também está esgotada.
O livro de 1958 incluía os desenhos de Cecília - que hoje estão publicados em Batuque, samba e macumba pela Martins.
Essa edição não tinha, evidentemente, os últimos poemas e o vasto material inédito que ela deixou ao morrer - tão nova - em 1964. Consegui, depois (faz tempo), achar em sebo esses poemas (inclusive o livro Solombra) nas edições organizadas por Darcy Damasceno.
Dela, porém, não saberia destacar um livro: desde Viagem, ela muda muito pouco. Romanceiro da Inconfidência é diferente pela matéria, mas a poética, nós a reconhecemos prontamente. Mar absoluto e outros poemas talvez seja o mais diverso nesse aspecto. Já Solombra se destaca pela adoção de uma mesma forma para todos poemas. E Vaga música? Retrato natural? Canções?
Entre os inéditos, há coisas desiguais, que ela provavelmente não teria publicado. Mas neles encontramos versos como "Mas eu amo o eterno e o efêmero e queria fazer o efêmero eterno."; "Ah! do que se disse nada mais se diga!/ Vai-se a tua Amada - vai-se a tua Amiga!"// Ah! do que era tanto, não resta mais nada.../ Mas houve essa Amiga! mas houve essa Amada!"; "Mas essa estrela,/ Rua da Estrela,/ com que o teu nome/ me deslumbrara,/ essa eu não via./ Talvez chegava/ pela alta noite?/ De madrugada?"; "Vão saindo da tua cabeça as campinas sangrentas./ Como a cauda dos cometas, vão para longe/ as perspectivas de corpos caídos e mãos abertas."
Tantos desses poemas tematizam a morte. Ela justificava essa temática com sua experiência pessoal. Creio até que foi a morte dos chamados inconfidentes o que a motivou para escrever o Romanceiro, livro em que os fantasmas literalmente falam.
O som predominante na obra acaba sendo o da elegia. A música na poesia de Cecília - ela, entre outros mil talentos, também era musicista - é tão forte que somos tomados por seu ritmo, que atinge diretamente a sensibilidade, antes mesmo de podermos apreender-lhe o sentido. E assim, sem notar, aprendemos de cor seus poemas.
O ritmo é explicitamente sentido nesta poesia ("Tem sangue eterno a asa ritmada"). Um exemplo disso é "Ária", de Retrato natural, um prodígio técnico com forte carga emocional: "Quem nos vai recordar/ na noite profunda?/ Pensamento tão gasto,/ amor sem milagre/ na profunda noite./ Os amigos se extinguem."
E nem citei os poemas que sei de cor...
Música de caráter bem diverso é a de Augusto dos Anjos. É curioso notar que os dois poetas são sucesso de público - e foi a fidelidade dos leitores que salvou a poesia de Augusto do esquecimento, já que nem mesmo os modernistas, em um primeiro momento, deram-lhe atenção. Talvez a musicalidade de ambos, que atinge o coração antes mesmo do entendimento, tenha criado essa empatia.
A de Augusto dos Anjos é mais violenta do que a de Cecília, mas tão característica que o leitor pode entender o sentido do poema sem compreender todas as palavras - o que é notável, pois ele usava muito léxico científico, e palavras não normalmente associadas à poesia, ainda mais no início do século XX, tempos de principado parnasiano no Brasil. Imaginem a coragem de começar um soneto desta forma: "Eu, filho, do carbono e do amoníaco."; escrever um decassílabo somente com duas palavras, e estas: "Profundissimamente hipocondríaco" (versos do soneto "Psicologia de um Vencido", que sei de cor).
Cientificismo? Não é tão simples, pois a astrologia e os misticismos entram nesse caldeirão poético e lexicográfico, além de filosofia - especialmente Schopenhauer. Augusto dos Anjos sempre me soou como um desbravador que tentava incorporar novos continentes à poesia: "Sofro, desde a epigênesis da infância,/ A influência má dos signos do Zodíaco!"
Um desses continentes é a pobreza. Essa poesia tão pessimista em tantos momentos nasce de uma experiência brasileira: "Sol brasileiro! Queima-me os destroços!", lemos na última estrofe do poema longo "Gemidos de arte". No quadro universalista de dor pintado pelo poeta, temos "É o dinheiro coberto de azinhavre/ Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!"
A consciência e a autocrítica no tocante à dominação de classe aparece em poemas muito anteriores a Drummond rever a oligarquia mineira. O soneto "Ricordanza della mia Gioventù" compara o furto de moedas do patrão com o "furto" (para o Código Penal burguês, não se poderia caracterizar assim...) do leite que a ama-de-leite poderia ter destinado à própria filha, mas tem de ser dividido com o filho do patrão...
Nesse poema, está ausente o léxico científico; não é necessário. Porém, para traçar o quadro geral de "Os doentes", Augusto dos Anjos convoca todos os seus recursos para ultrapassá-los: "Tentava compreender com as conceptivas/ Funções do encéfalo as substâncias vivas/ Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...// E via em mim, coberto de desgraças,/ O resultado de bilhões de raças/ Que há muitos anos desapareceram!"
Ele de forma alguma está interessado em simplesmente repetir ensinamentos científicos e filosóficos, e sim submete esses recursos a uma síntese pessoal (não por acaso o livro chama-se, atrevidamente, Eu) e poética - a poesia tem uma dignidade nesta obra impressionante, de traçar uma imagem não só do humano, mas como do universo - em vários momentos, ele rompe com o antropocentrismo e tenta fazer a matéria e outros animais falarem, numa espantosa solidariedade com todos os seres.
Não é de estranhar que poetas com ambição artística mais restrita e literatura mais palatável e cordial tenham rejeitado essa obra. Lembro de Mário Quintana, afirmando que Augusto dos Anjos era Baudelaire em último estado de decomposição...
Na IV seção de "Os doentes" temos o extermínio dos indígenas, assunto sempre atual, ainda mais com o governo de Dilma Rousseff e a possibilidade de genocídio com a eventual construção de Belo Monte:
A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
E o índio, por fim, adstrito à étnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!
[...]
A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em diante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda contra a flecha!
[...]
Em vez da prisca tribo e indiana tropa
A gente deste século, espantada,
Vê somente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!
Uma crítica contundente ao progresso. Ele também é um poeta da morte, de vários tipos de morte, inclusive o genocídio e seus sons tonitruantes, que a história brasileira já conhece - de cor.
30 dias de leituras: Desejando Whitman
30 livros em um mês
Dia 27: História de amor favorita
"I stop somewhere waiting for you" - Um autor que se oferece como se a um amante, e escreve um livro que é um corpo desejante. Um autor que faz explicitamente da literatura um ato de amor a todos, democraticamente. Essa foi uma das ambições de Walt Whitman em Leaves of grass (Folhas de relva).
O impacto de Whitman na poesia ocidental foi enorme: Pessoa, Maiakóvski, Garcia Lorca e vários outros homenagearam-no em seus poemas. Pound, que chegou a dizer que só havia encontrado trinta páginas bem escritas em Leaves of Grass, porém já não mais as achava, reconciliou-se com Whitman no poema "A Pact".
Ana Cristina Cesar, sobre quem escrevi há pouco, na conversa que teve com alunos de Beatriz Rezende, publicada em Crítica e tradução, traduziu alguns versos de Whitman e comentou: "Olha só, 'eu caio das páginas nos teus braços', é um homem que, de repente, ele assume esse desejo de que o texto não seja meramente texto."
Visto que a literatura, assim como os corpos, tem o poder de despertar desejos, de fato um poema não é só texto... A poesia de Whitman diversas vezes celebra os corpos - ele escreve que prefere um belo corpo a um belo rosto. Também na prosa encontramos passagens como esta, de Specimen Days: "Doce, sã, calma Nudez na Natureza! - ah se a pobre, doente, lasciva humanidade nas cidades pudesse realmente conhecer-te uma vez mais! Não é, então, a nudez indecente? Não, não inerentemente. É o seu pensamento, sua sofisticação, seu medo, sua respeitabilidade que é indecente."
A primeira edição de Folhas de Relva, por sinal, não trazia o nome do autor, mas a imagem do seu corpo (a assinatura...) no frontispício - a que incluí nesta nota.
Para Whitman, o amor era um laço cívico, mas também podia ser uma relação de natureza sexual entre duas pessoas. Manifesta-se aí mais um elemento heterodoxo da poesia de Whitman (seu verso longo e livre já o tornava distinto do que geralmente se fazia em língua inglesa), pois há uma seção de Leaves of grass dedicada a esse tipo de amor, e que se dá entre homens – um amor entre camaradas, o que se torna claro em Calamus. Algo bastante ousado para o século XIX, e de que Oscar Wilde, mais tarde, não foi capaz com essa franqueza (o processo teria vindo antes, certamente, se o tivesse feito).
As duas facetas do amor se unem nessa obra; concordo com Roy Harvey Pearce "for as their function in the 1860 volume shows, the "Calamus" poems were to carry through to completion the poet's conception of his painfully loving relation with his readers" (em Whitman: A collection of critical essays).
Essa junção de erótica com política e poética é notável; creio que Allen Ginsberg foi especialmente inspirado por essa conjunção - ele, que chamou o poeta do século XIX "pai" mais de uma vez na sua poesia. Em uma célebre carta de Ginsberg, escrita em 18 de maio de 1956 a Richard Eberhart (publicada em The letters of Allen Ginsberg, livro organizado por Bill Morgan para Da Capo Press), temos a explicação da gênese de seu livro Howl. Nele, há um poema para Whitman, "Supermarket in California"; na carta, Ginsberg afirma que aquele autor foi o primeiro grande poeta dos EUA a reconhecer a própria individualidade, perdoando e aceitando a "Si Mesmo", e estendendo esse reconhecimento e essa aceitação para todos, definido assim a democracia.
Muito mais tarde, em 1984, Ginsberg escreveu um poema com o revelador título "I Love Old Whitman So" (publicado em White Shroud), em que se diz emocionado pelo verso "Quem toca este livro toca um homem".
No Brasil, Geir Campos publicou uma antologia que não é boa, pois corta o fôlego dos versos de Whitman. Rodrigo Garcia Lopes, respeitando a poética original, publicou pela Iluminuras uma tradução - com um alentado posfácio - da primeira edição de Leaves of Grass, de 1855. "Cálamo" veio depois, em 1860 - Leaves of Grass, como um organismo, foi sendo aumentado até a chamada edição do leito de morte, que Bruno Gambarotto traduziu e lançou neste ano pela Hedra.
Gosto muito deste poema de "Cálamo", "When I Heard at the Close of the Day", uma das histórias de amor do livro que é todo um corpo desejante, e discordo um pouco da tradução de Gambarotto neste ponto. Faço a minha para que possam dela discordar também.
Advirto que os versos começam com as maiúsculas de início de linha - as linhas que começam com minúsculas são, na verdade, continuação de um verso (não consigo indicar a quebra deles aqui):
Dia 27: História de amor favorita
"I stop somewhere waiting for you" - Um autor que se oferece como se a um amante, e escreve um livro que é um corpo desejante. Um autor que faz explicitamente da literatura um ato de amor a todos, democraticamente. Essa foi uma das ambições de Walt Whitman em Leaves of grass (Folhas de relva).
O impacto de Whitman na poesia ocidental foi enorme: Pessoa, Maiakóvski, Garcia Lorca e vários outros homenagearam-no em seus poemas. Pound, que chegou a dizer que só havia encontrado trinta páginas bem escritas em Leaves of Grass, porém já não mais as achava, reconciliou-se com Whitman no poema "A Pact".
Ana Cristina Cesar, sobre quem escrevi há pouco, na conversa que teve com alunos de Beatriz Rezende, publicada em Crítica e tradução, traduziu alguns versos de Whitman e comentou: "Olha só, 'eu caio das páginas nos teus braços', é um homem que, de repente, ele assume esse desejo de que o texto não seja meramente texto."
Visto que a literatura, assim como os corpos, tem o poder de despertar desejos, de fato um poema não é só texto... A poesia de Whitman diversas vezes celebra os corpos - ele escreve que prefere um belo corpo a um belo rosto. Também na prosa encontramos passagens como esta, de Specimen Days: "Doce, sã, calma Nudez na Natureza! - ah se a pobre, doente, lasciva humanidade nas cidades pudesse realmente conhecer-te uma vez mais! Não é, então, a nudez indecente? Não, não inerentemente. É o seu pensamento, sua sofisticação, seu medo, sua respeitabilidade que é indecente."
A primeira edição de Folhas de Relva, por sinal, não trazia o nome do autor, mas a imagem do seu corpo (a assinatura...) no frontispício - a que incluí nesta nota.
Para Whitman, o amor era um laço cívico, mas também podia ser uma relação de natureza sexual entre duas pessoas. Manifesta-se aí mais um elemento heterodoxo da poesia de Whitman (seu verso longo e livre já o tornava distinto do que geralmente se fazia em língua inglesa), pois há uma seção de Leaves of grass dedicada a esse tipo de amor, e que se dá entre homens – um amor entre camaradas, o que se torna claro em Calamus. Algo bastante ousado para o século XIX, e de que Oscar Wilde, mais tarde, não foi capaz com essa franqueza (o processo teria vindo antes, certamente, se o tivesse feito).
As duas facetas do amor se unem nessa obra; concordo com Roy Harvey Pearce "for as their function in the 1860 volume shows, the "Calamus" poems were to carry through to completion the poet's conception of his painfully loving relation with his readers" (em Whitman: A collection of critical essays).
Essa junção de erótica com política e poética é notável; creio que Allen Ginsberg foi especialmente inspirado por essa conjunção - ele, que chamou o poeta do século XIX "pai" mais de uma vez na sua poesia. Em uma célebre carta de Ginsberg, escrita em 18 de maio de 1956 a Richard Eberhart (publicada em The letters of Allen Ginsberg, livro organizado por Bill Morgan para Da Capo Press), temos a explicação da gênese de seu livro Howl. Nele, há um poema para Whitman, "Supermarket in California"; na carta, Ginsberg afirma que aquele autor foi o primeiro grande poeta dos EUA a reconhecer a própria individualidade, perdoando e aceitando a "Si Mesmo", e estendendo esse reconhecimento e essa aceitação para todos, definido assim a democracia.
Muito mais tarde, em 1984, Ginsberg escreveu um poema com o revelador título "I Love Old Whitman So" (publicado em White Shroud), em que se diz emocionado pelo verso "Quem toca este livro toca um homem".
No Brasil, Geir Campos publicou uma antologia que não é boa, pois corta o fôlego dos versos de Whitman. Rodrigo Garcia Lopes, respeitando a poética original, publicou pela Iluminuras uma tradução - com um alentado posfácio - da primeira edição de Leaves of Grass, de 1855. "Cálamo" veio depois, em 1860 - Leaves of Grass, como um organismo, foi sendo aumentado até a chamada edição do leito de morte, que Bruno Gambarotto traduziu e lançou neste ano pela Hedra.
Gosto muito deste poema de "Cálamo", "When I Heard at the Close of the Day", uma das histórias de amor do livro que é todo um corpo desejante, e discordo um pouco da tradução de Gambarotto neste ponto. Faço a minha para que possam dela discordar também.
Advirto que os versos começam com as maiúsculas de início de linha - as linhas que começam com minúsculas são, na verdade, continuação de um verso (não consigo indicar a quebra deles aqui):
Quando ouvi no fim do dia como meu nome havia sido recebido com aplausos no capitólio, mesmo assim para mim não foi uma noite feliz a que se seguiu,
E mais, quando eu festejava, ou quando meus planos se realizavam, mesmo assim eu não estava feliz,
Porém no dia em que levantei na alvorada com saúde perfeita, refeito, cantando, inalando o sopro maduro do outono,
Quando vi a lua cheia no oeste empalidecer e sumir na luz da manhã,
Quando perambulei sozinho pela praia, e me banhei despido, rindo com as águas frias, e vi o sol se levantar,
E quando pensei que meu querido amigo meu amado estava a caminho, Oh então fiquei feliz,
Oh então cada respiração era mais doce, e durante todo aquele dia a comida alimentava-me mais, e o belo dia passava bem,
E o seguinte veio com igual alegria, e com o próximo, no entardecer, chegou meu amigo,
E naquela noite enquanto tudo estava calmo eu ouvia as águas fluírem lentamente até a costa,
Ouvi o murmúrio sibilante do líquido e da areia como se dirigido para mim, sussurrando para me congratular,
Pois aquele que mais amo dormia ao meu lado sob a mesma coberta na cálida noite,
Na calma no luar de outono a face dele estava inclinada para mim,
E seu braço repousava suavemente sobre meu peito - e naquela noite fui feliz.
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
30 dias de leituras: Hilst, Shakespeare e vômitos
30 livros em um mês
Dia 26: Um livro repugnante, porém muito bom.
Criei o tópico pensando em Hilda Hilst - ela declarou que vomita em cada linha de Genet, "mas é um grande escritor", em uma entrevista à TV Cultura que deu no lançamento de O caderno rosa de Lori Lamby.
Esse livro, Contos d'escárnio/ Textos grotescos e Cartas de um sedutor formam uma espécie de trilogia fescenina na obra de Hilst.
Ela não tem nada de repugnante, porém, exceto para moralistas, e esses livros não constituem uma ruptura na interessantíssima obra de Hilst, que culminou, creio, no final, em Estar sendo ter sido, com sua feliz união de prosa e poesia. Nele, combinam-se pela última vez seus temas preferidos, o pai, o porco, Deus, o ânus.
A entrevista é engraçada e triste: "Você não pode pensar em português. É bom pensar em inglês, em alemão, as pessoas aceitam. Em português pensar é uma coisa horrível, os editores detestam, te cospem na cara. Foi o que fizeram pra mim durante quarenta anos." Mais reveladora, porém, é a que concedeu aos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Sales: "Eu leio Heidegger, Hegel, Kierkegaard, Wittgenstein e percebo que eles também não têm uma resposta acalentadora para a gente." - o que ela faz é a antítese da autoajuda.
E, de fato, é uma escritora movida pelo pensamento, também naquela trilogia, da qual Cartas de um sedutor é o momento maior (os outros são mais pueris) - na ficção brasileira, acho que só o Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade pode-se-lhe comparar em irrisão. O incesto está no centro do livro (o sedutor escreve para a irmã, com quem teve um relacionamento sexual, e ocorre um suspense sobre se ela conseguiu ou não seduzir o pai de ambos) - mas ele é muito engraçado, com passagens deste tipo: "pois olha, Eulália, se todo mundo lembrasse do que lhe sai pelo cu, todo mundo seria mais generoso, mais solidário, mais..."; outras, mais cruéis: "Havia no bolso direito da calça a fotografia baça de um menino segurando um porco. Atrás da fotografia estava escrito: meu primeiro amor. Enterraram-no então com fotografia e tudo."
Se há algo de repugnante nesse livro, são os escritores, retratados da pior forma possível: Genet, Proust, Rimbaud, Verlaine, Mishima, até Foucault... Embora seja um romance epistolográfico, escrever é algo repugnante:
Esse vômito de Hilst não é nada repugnante. A repugnância é seu motivo, que só aparentemente vem do erotismo, e nascem, na verdade, da literatura, que é o assunto o tempo todo.
Logo, não é livro que sirva para este tópico.
Um livro realmente repugnante, porém muito bom, na minha experiência de leitor, é o Mercador de Veneza, uma das mais célebres peças de Shakespeare. Não vou contar a história aqui, é claro, mas explicar por que ela me dá náuseas.
O antissemitismo na peça deixa-a pestilenta para mim. Shylock tem seu grande monólogo, um importante momento dramático, mas o processo retira-lhe o que é: a condição de judeu. Shylock é visto pelos cristãos algo como o capitalista sem escrúpulos - o que é hipócrita. No julgamento, ele diz:
Os cristãos comercializavam, exploravam e matavam outros seres humanos - essa era a lei também de Veneza. Quando Shylock insiste na sua correção diante das leis de Veneza, ele está correto: "If you deny it, let the danger light/ Upon your charter and your city's freedom" e "If you deny it, fie upon your law!/ There is no force in the decrees of Venice."
Portia, quando aparece disfarçada de advogado, usa um argumento tão falacioso (talvez para tornar a situação menos inverossímil Shakespeare faz com que seja pronunciado por alguém que não estudou Direito) e de um absurdo à toda prova: como seria possível pretender que se pode ter carne humana sem sangue? É claro que uma pressupõe o outro, senão o acordo não teria objeto. E é claro que Antonio sabia disso.
Há um paralelo cruel com a fala de Shylock em que defende a natureza humana dos judeus e diz "If you prick us, do we not bleed?"; na peça, porém, para os cristãos é que não é natural sangrar...
No entanto, não é isso o que importa - o que se deixa claro é que qualquer pretexto é bom contra um judeu. Até mesmo uma ideia sem sentido vinda de um defensor improvisado que nem advogado é - e uma mulher disfarçada, alguém que nem mesmo poderia falar no tribunal nessa posição.
Shakespeare faz Shylock dizer no primeiro ato "I hate him for he is a Christian;/ But more for that in low simplicity/ He lends our money gratis" - o odioso usurário. Mas é ele o grande objeto do ódio, e é ele que tem seus bens cobiçados. Entra aí também a hipocrisia cristã de negar aos judeus o acesso à terra (na época em que a terra era a principal fonte de riqueza), deixando-lhes como alternativa de vida justamente as atividades financeiras (consideradas pecaminosas para os católicos), para depois acusá-los de usurários.
Quando Shylock, além de perder os bens, é convertido à força, e o Duque diz que faz isso para mostrar como o espírito de Veneza é magnânimo, o deboche é completo. Simbolicamente, os judeus são exterminados nesse ponto, e o restante da peça, um óbvio anticlímax, é reservado para o entendimento dos casais.
Penso agora se o final, com aquela coisa do anel (o anel, do qual Bassanio prometeu para Portia nunca se desfazer, é entregue ao advogado, que é ela mesma que, depois do julgamento, quer saber o que foi dele feito...), seja algo além de um artifício teatral para revelar o travestimento de Portia (realmente, um personagem interessantíssimo) e Nerissa. Talvez seja para mostrar que a lei de Veneza e a lei dos cristãos sejam mesmo a de quebrar as promessas - ou seja, de que não há lei. Isso tornaria a peça menos pestilenta.
De qualquer forma, isso também viria ao encontro do antijuridismo dos fascistas e dos nazistas, para quem essa peça foi um instrumento de propaganda antissemita no âmbito da política de genocídio - que não seria justamente o mais repulsivo dos crimes?
Dia 26: Um livro repugnante, porém muito bom.
Criei o tópico pensando em Hilda Hilst - ela declarou que vomita em cada linha de Genet, "mas é um grande escritor", em uma entrevista à TV Cultura que deu no lançamento de O caderno rosa de Lori Lamby.
Esse livro, Contos d'escárnio/ Textos grotescos e Cartas de um sedutor formam uma espécie de trilogia fescenina na obra de Hilst.
Ela não tem nada de repugnante, porém, exceto para moralistas, e esses livros não constituem uma ruptura na interessantíssima obra de Hilst, que culminou, creio, no final, em Estar sendo ter sido, com sua feliz união de prosa e poesia. Nele, combinam-se pela última vez seus temas preferidos, o pai, o porco, Deus, o ânus.
A entrevista é engraçada e triste: "Você não pode pensar em português. É bom pensar em inglês, em alemão, as pessoas aceitam. Em português pensar é uma coisa horrível, os editores detestam, te cospem na cara. Foi o que fizeram pra mim durante quarenta anos." Mais reveladora, porém, é a que concedeu aos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Sales: "Eu leio Heidegger, Hegel, Kierkegaard, Wittgenstein e percebo que eles também não têm uma resposta acalentadora para a gente." - o que ela faz é a antítese da autoajuda.
E, de fato, é uma escritora movida pelo pensamento, também naquela trilogia, da qual Cartas de um sedutor é o momento maior (os outros são mais pueris) - na ficção brasileira, acho que só o Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade pode-se-lhe comparar em irrisão. O incesto está no centro do livro (o sedutor escreve para a irmã, com quem teve um relacionamento sexual, e ocorre um suspense sobre se ela conseguiu ou não seduzir o pai de ambos) - mas ele é muito engraçado, com passagens deste tipo: "pois olha, Eulália, se todo mundo lembrasse do que lhe sai pelo cu, todo mundo seria mais generoso, mais solidário, mais..."; outras, mais cruéis: "Havia no bolso direito da calça a fotografia baça de um menino segurando um porco. Atrás da fotografia estava escrito: meu primeiro amor. Enterraram-no então com fotografia e tudo."
Se há algo de repugnante nesse livro, são os escritores, retratados da pior forma possível: Genet, Proust, Rimbaud, Verlaine, Mishima, até Foucault... Embora seja um romance epistolográfico, escrever é algo repugnante:
De alguma maneira me transformaste num escriba ou melhor num escrevinhador, e só de saber que tu me pensas escritor agiganta-me a náusea. Que tipos petulantes! Que nojosos! [...] Verdade que adoro os livros, mas se pudesse arrancar de mim a visão dos estufados que os escreveram vomitaria menos o mundo e a própria vida.
Esse vômito de Hilst não é nada repugnante. A repugnância é seu motivo, que só aparentemente vem do erotismo, e nascem, na verdade, da literatura, que é o assunto o tempo todo.
Logo, não é livro que sirva para este tópico.
Um livro realmente repugnante, porém muito bom, na minha experiência de leitor, é o Mercador de Veneza, uma das mais célebres peças de Shakespeare. Não vou contar a história aqui, é claro, mas explicar por que ela me dá náuseas.
O antissemitismo na peça deixa-a pestilenta para mim. Shylock tem seu grande monólogo, um importante momento dramático, mas o processo retira-lhe o que é: a condição de judeu. Shylock é visto pelos cristãos algo como o capitalista sem escrúpulos - o que é hipócrita. No julgamento, ele diz:
What judgment shall I dread, doing no wrong?
You have among you many a purchas'd slave,
Which, like your asses and your dogs and your mules,
You use in abject and in slavish parts,
Because you bought them; shall I say to you
'Let them be free, marry them to your heirs -
Why sweat they under burdens? [...]
Os cristãos comercializavam, exploravam e matavam outros seres humanos - essa era a lei também de Veneza. Quando Shylock insiste na sua correção diante das leis de Veneza, ele está correto: "If you deny it, let the danger light/ Upon your charter and your city's freedom" e "If you deny it, fie upon your law!/ There is no force in the decrees of Venice."
Portia, quando aparece disfarçada de advogado, usa um argumento tão falacioso (talvez para tornar a situação menos inverossímil Shakespeare faz com que seja pronunciado por alguém que não estudou Direito) e de um absurdo à toda prova: como seria possível pretender que se pode ter carne humana sem sangue? É claro que uma pressupõe o outro, senão o acordo não teria objeto. E é claro que Antonio sabia disso.
Há um paralelo cruel com a fala de Shylock em que defende a natureza humana dos judeus e diz "If you prick us, do we not bleed?"; na peça, porém, para os cristãos é que não é natural sangrar...
No entanto, não é isso o que importa - o que se deixa claro é que qualquer pretexto é bom contra um judeu. Até mesmo uma ideia sem sentido vinda de um defensor improvisado que nem advogado é - e uma mulher disfarçada, alguém que nem mesmo poderia falar no tribunal nessa posição.
Shakespeare faz Shylock dizer no primeiro ato "I hate him for he is a Christian;/ But more for that in low simplicity/ He lends our money gratis" - o odioso usurário. Mas é ele o grande objeto do ódio, e é ele que tem seus bens cobiçados. Entra aí também a hipocrisia cristã de negar aos judeus o acesso à terra (na época em que a terra era a principal fonte de riqueza), deixando-lhes como alternativa de vida justamente as atividades financeiras (consideradas pecaminosas para os católicos), para depois acusá-los de usurários.
Quando Shylock, além de perder os bens, é convertido à força, e o Duque diz que faz isso para mostrar como o espírito de Veneza é magnânimo, o deboche é completo. Simbolicamente, os judeus são exterminados nesse ponto, e o restante da peça, um óbvio anticlímax, é reservado para o entendimento dos casais.
Penso agora se o final, com aquela coisa do anel (o anel, do qual Bassanio prometeu para Portia nunca se desfazer, é entregue ao advogado, que é ela mesma que, depois do julgamento, quer saber o que foi dele feito...), seja algo além de um artifício teatral para revelar o travestimento de Portia (realmente, um personagem interessantíssimo) e Nerissa. Talvez seja para mostrar que a lei de Veneza e a lei dos cristãos sejam mesmo a de quebrar as promessas - ou seja, de que não há lei. Isso tornaria a peça menos pestilenta.
De qualquer forma, isso também viria ao encontro do antijuridismo dos fascistas e dos nazistas, para quem essa peça foi um instrumento de propaganda antissemita no âmbito da política de genocídio - que não seria justamente o mais repulsivo dos crimes?
terça-feira, 11 de outubro de 2011
30 dias de leituras: Carta sobre Ana Cristina Cesar
30 livros em um mês
Dia 25: Um livro de que você não gostava e agora ama.
Eu não gostava porque não tinha lido, simplesmente por isso; conhecia apenas alguns trechos publicados em antologias. Por estupidez minha, também. Não me lembro quando, aos vinte e tantos anos, é que percebi que se tratava de uma autora genial e passei a caçar o livro, que não estava em catálogo porque a editora, que tinha sido importante nos anos 1980, havia sofrido muito com a morte inesperada de seu dono.
Achei-o na capa original, de Waltercio Caldas. Depois, o Instituto Moreira Sales e a Ática, em conjunto, relançaram-no com outro projeto gráfico. Trata-se de A teus pés, de Ana Cristina Cesar.
Já escrevi que a considerava uma poeta política - expliquei-o quando estive no evento Voz do Autor da USP, aliás. E disse que fui influenciado por ela, que não tem culpa disso.
É interessante, para relê-la, perceber o complexo jogo intertextual da autora; perceber como ela se apropria criticamente de textos alheios, em vez de, como fazem certos poetas brasileiros, citar versos alheios para ficar bonitinho, para parecer erudito, por esnobismo, para dar menos trabalho ao eventual tradutor. Aconselho, já que a tese de Michel Riaudel não foi publicada, a assistir à conferência de Riaudel, em ótimo português, na USP, e que menciona o trabalho de tradução e os diversos erros nas edições póstumas da poeta. Estranhamente, pouca gente o viu no YouTube; estudantes de Letras, cadê vocês?
Outro problema é que nas partes 5 e 6 repetiram o mesmo vídeo...
Riaudel é o seu tradutor na França. Em francês, pode-se ler este artigo sobre o mesmo assunto: Cesar como tradutora.
Nos idos de 1998, certo escritor, Bruno Tolentino, assinou em uma revista de variedades mensal resenha da reedição de A teus pés, indignadíssimo com o cuidado projeto gráfico do IMS e da Ática, que estaria a vestir uma poesia indigna. O título da resenha bem condizia com a falta de sutileza do poetastro: "A lorota de Ipanema".
A resenha tinha vários erros (e mostrava que o Tolentino nem tinha lido de verdade o livro, que ele achou que era a "obra completa" da autora). Escrevi uma carta impublicável em resposta. A revista não o fez, publico-a agora, achando engraçado o modo como eu escrevia antes dos trinta anos:
[...] espantei-me de encontrar um artigo sobre anedotas no número 11 da revista: "a lorota de Ipanema" (p. 64). Título enganador, porém: o artigo não é sobre anedotas de bairro, é apenas anedótico: uma tentativa de resenha, fracassada em quase todos os pontos, como se verá adiante. Não se discute, é claro, a opinião do resenhista, que é assunto subjetivo; o que se deseja apontar é o seu desconhecimento da poesia em geral e sua leitura escandalosamente epidérmica da obra em questão, A teus pés, de ana Cristina Cesar.
1. Desinformação:
1.1 A teus pés, ao contrário do que pretende o resenhista, não é a obra póética completa; quantidade maior que a publicada ficou inédita à época da morte da poeta, e foi lançada pela Brasiliense. Ivan Junqueira, poeta, tradutor e intelectual admirado pelo resenhista (mas não muito lido, provavelmente) escreveu emocionado ensaio sobre Inéditos e dispersos (In Memoriam, O Encantador de Serpentes, Rio de Janeiro: Alhambra, p. 199-210, 1985).
1.2 Entre os versos destacados como "amostras grátis" da "versão canônica do banal e do gratuito", está, muito curiosamente, uma passagem de Drummond que foi objeto da "cleptomania estilística" (na expressão do prefaciador) da autora; Drummond, poeta em que o resenhista ainda não tinha reconhecido "inconsequências travestidas de incompletude". Nunca é tarde para começar uma revisão crítica.
1.3 É evidentemente despropositado tentar impingir uma imagem de imaturidade poética a uma "artesã" (já que o resenhista prefere o léxico parnasiano) do verso que dialoga com Drummond, Eliot, Baudelaire, Mallarmé e vários outros, como Jorge de Lima, Whitman, Bandeira, Kerouac. Trata-se de autêntico diálogo: Ana Cristina Cesar jamais professou o verso servil e laudatório como estes: "Emily que conheces o preço,/ o ganho e o risco,/ Emily Dickinson." ("As espécies menores"), "Ó Merquior,/ meu velho amigo/ prefaciado", "por mais que imite/ Carlos Drummond/ Dona Cecília/ e Rainer Maria,/ perdi na rifa", "Murilo Mendes,/ Drummond, Vinicius,/ Cecília e Jorge/ tiram do alforje/ ou das algibeiras/ ritmo, rima" ("Uma romã para 1997), todos do último/primeiro livro do resenhista, Anulação e outros reparos.
Ana C., muito pelo contrário, não precisa imitar ninguém nem pedir licença para compor: desmistifica Bandeira e Baudelaire e, num poema cuja aparente simplicidade é das mais capciosas, vira de pernas para o ar a poética de Mallarmé como exposta em "Salut": "Nada, esta espuma" (p. 97) - o título, apenas, já é extraordinário por dar sentido completamente outro a "Rien, cette écume": à abstração, à "espuma" mallarmaica, a poeta prefere a materialidade da escrita.[...]
2. A epiderme alfabetizanda:
2.1 Um dos trechos destacados pelo resenhista do que ele chamou "diário juvenil de óculos Ray Ban" é uma leitura feminista de um conhecido poema de Manuel Bandeira, "Irene no céu", que a autora recebeu autografado do próprio poeta. Pela escolha dos trechos que mais causaram enfado ao resenhista, vê-se que é a voz feminina que lhe causa repugnância. Sabe-se da admiração dele por Cecília Meireles, mas esta grande escritora representa um lirismo tradicional [...] Já Ana Cristina é claramente a mulher após a revolução sexual, que refuta a visão tradicional do feminino. Dessa forma, ela vira ao avesso a Irene que Bandeira tornou imaculada (a mulher, em Ana, recusa-se a ter o seu desejo domesticado pelo homem) e abomina os versos lésbicos de Baudelaire (ousados para a época, não deixam de cair no estereótipo) num poema que é dos mais originais da língua, "21 de fevereiro"(p. 106) e recebeu apreciação de Ivan Junqueira (À sombra de Orfeu, Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, p. 190-191, 1984). Não perceber a radicalidade da questão do gênero na poesia de Ana Cristina ("Posso ouvir minha voz feminina: estou cansada de ser homem.") é professar uma evidente desleitura. Ou, simplesmente, machismo.
2.2 O resenhista caiu como um pato (respeitosamente emprego um significante muito repetido em Luvas de pelica de Ana C.) no conto da confissão; Caio Fernando Abreu também caiu nessa, na antiga contracapa de A teus pés. O verso de Ana não confessa nada, ou melhor, não mais do que qualquer outra poesia legítima, pois, se a poesia é fingimento, é fingimento do que se sente (a lição pessoana). A poeta não revela nada diretamente: ela desconstrói noção de confessionalismo, subverte a questão da intimidade para repensar a própria linguagem poética, como brilhantemente percebeu Silviano Santiago na conferência "Singular e anônimo" (Nas malhas da letra, São Paulo: Companhia das Letras, p. 53-61, 1984).
2.3 À questão da transitividade da linguagem poética, acrescento que Ana Cristina, com sua armadilha do aparente confessionalismo, lida novamente com o gênero. A própria autora dá a pista para essa leitura, em depoimento na Faculdade da Cidade, quando lembra que historicamente a escrita da mulher surgiu da intimidade: cartas, diários. Ana se posiciona historicamente como voz feminina.
O resenhista não percebeu nada disso, mas acertou onde não viu: a incompletude da poesia de Ana. Acertou, é bom dizer, muito de longe: pois essa incompletude não advém apenas do desaparecimento prematuro da autora e não significa uma "inconsequência carioca". A incompletude decorre do caráter experimental de sua poesia, que, ao contrário da de autores que só fazem modular, com rimas mais ou menos pobres, metros do passado numa sensibilidade ainda sub-rilkiana (sim, é uma referência ao resenhista), experimenta formas diversas [...] e, principalmente, é portadora de uma nova poética que não se fechou sobre si mesma. Ela aponta para o futuro e, provavelmente, inspirará escritores mais jovens.
Não se deve culpar o resenhista por não ter entendido nada: ele já pertence a outra época. Sua alta reside em outro lugar, que não é a poesia.
Que o resenhista, em uma comparação sórdida, queira contrapor Cruz e Sousa a Ana Cristina Cesar é, em princípio, despropositado pois suas obras não guardam semelhança alguma. O fim de Bruno Tolentino, contudo, é bem outro: comparar a morte de ambos, ressaltando o caráter voluntário da de Ana Cristina Cesar para ridicularizar a poeta, assimilando a sua queda fatal à "dos critérios" e ousando uma alusão irônica ao poema "18 de fevereiro" (p. 103).
Como dizia Fernando Pessoa, brincar com os deuses, a morte e a loucura é próprio da baixeza de alma; e só quem está abaixo da última canalha das ruas é capaz de fazê-lo sabendo que mente.
Não é o caso do resenhista, pois, como já vimos, ele manifestamente não sabe.
P.S.: Escrevo também que, nessa fase em que passei a ler Ana Cristina Cesar, vi duas vezes o espetáculo de dança de Marcia Rubin, Tudo que eu nunca te disse, de 1997. Desde o título, baseava-se na obra da escritora, e era de uma grande inteligência dramática e profundo entendimento dessa poesia. Seria bom que fosse remontado.
Dia 25: Um livro de que você não gostava e agora ama.
Eu não gostava porque não tinha lido, simplesmente por isso; conhecia apenas alguns trechos publicados em antologias. Por estupidez minha, também. Não me lembro quando, aos vinte e tantos anos, é que percebi que se tratava de uma autora genial e passei a caçar o livro, que não estava em catálogo porque a editora, que tinha sido importante nos anos 1980, havia sofrido muito com a morte inesperada de seu dono.
Achei-o na capa original, de Waltercio Caldas. Depois, o Instituto Moreira Sales e a Ática, em conjunto, relançaram-no com outro projeto gráfico. Trata-se de A teus pés, de Ana Cristina Cesar.
Já escrevi que a considerava uma poeta política - expliquei-o quando estive no evento Voz do Autor da USP, aliás. E disse que fui influenciado por ela, que não tem culpa disso.
É interessante, para relê-la, perceber o complexo jogo intertextual da autora; perceber como ela se apropria criticamente de textos alheios, em vez de, como fazem certos poetas brasileiros, citar versos alheios para ficar bonitinho, para parecer erudito, por esnobismo, para dar menos trabalho ao eventual tradutor. Aconselho, já que a tese de Michel Riaudel não foi publicada, a assistir à conferência de Riaudel, em ótimo português, na USP, e que menciona o trabalho de tradução e os diversos erros nas edições póstumas da poeta. Estranhamente, pouca gente o viu no YouTube; estudantes de Letras, cadê vocês?
Outro problema é que nas partes 5 e 6 repetiram o mesmo vídeo...
Riaudel é o seu tradutor na França. Em francês, pode-se ler este artigo sobre o mesmo assunto: Cesar como tradutora.
Nos idos de 1998, certo escritor, Bruno Tolentino, assinou em uma revista de variedades mensal resenha da reedição de A teus pés, indignadíssimo com o cuidado projeto gráfico do IMS e da Ática, que estaria a vestir uma poesia indigna. O título da resenha bem condizia com a falta de sutileza do poetastro: "A lorota de Ipanema".
A resenha tinha vários erros (e mostrava que o Tolentino nem tinha lido de verdade o livro, que ele achou que era a "obra completa" da autora). Escrevi uma carta impublicável em resposta. A revista não o fez, publico-a agora, achando engraçado o modo como eu escrevia antes dos trinta anos:
[...] espantei-me de encontrar um artigo sobre anedotas no número 11 da revista: "a lorota de Ipanema" (p. 64). Título enganador, porém: o artigo não é sobre anedotas de bairro, é apenas anedótico: uma tentativa de resenha, fracassada em quase todos os pontos, como se verá adiante. Não se discute, é claro, a opinião do resenhista, que é assunto subjetivo; o que se deseja apontar é o seu desconhecimento da poesia em geral e sua leitura escandalosamente epidérmica da obra em questão, A teus pés, de ana Cristina Cesar.
1. Desinformação:
1.1 A teus pés, ao contrário do que pretende o resenhista, não é a obra póética completa; quantidade maior que a publicada ficou inédita à época da morte da poeta, e foi lançada pela Brasiliense. Ivan Junqueira, poeta, tradutor e intelectual admirado pelo resenhista (mas não muito lido, provavelmente) escreveu emocionado ensaio sobre Inéditos e dispersos (In Memoriam, O Encantador de Serpentes, Rio de Janeiro: Alhambra, p. 199-210, 1985).
1.2 Entre os versos destacados como "amostras grátis" da "versão canônica do banal e do gratuito", está, muito curiosamente, uma passagem de Drummond que foi objeto da "cleptomania estilística" (na expressão do prefaciador) da autora; Drummond, poeta em que o resenhista ainda não tinha reconhecido "inconsequências travestidas de incompletude". Nunca é tarde para começar uma revisão crítica.
1.3 É evidentemente despropositado tentar impingir uma imagem de imaturidade poética a uma "artesã" (já que o resenhista prefere o léxico parnasiano) do verso que dialoga com Drummond, Eliot, Baudelaire, Mallarmé e vários outros, como Jorge de Lima, Whitman, Bandeira, Kerouac. Trata-se de autêntico diálogo: Ana Cristina Cesar jamais professou o verso servil e laudatório como estes: "Emily que conheces o preço,/ o ganho e o risco,/ Emily Dickinson." ("As espécies menores"), "Ó Merquior,/ meu velho amigo/ prefaciado", "por mais que imite/ Carlos Drummond/ Dona Cecília/ e Rainer Maria,/ perdi na rifa", "Murilo Mendes,/ Drummond, Vinicius,/ Cecília e Jorge/ tiram do alforje/ ou das algibeiras/ ritmo, rima" ("Uma romã para 1997), todos do último/primeiro livro do resenhista, Anulação e outros reparos.
Ana C., muito pelo contrário, não precisa imitar ninguém nem pedir licença para compor: desmistifica Bandeira e Baudelaire e, num poema cuja aparente simplicidade é das mais capciosas, vira de pernas para o ar a poética de Mallarmé como exposta em "Salut": "Nada, esta espuma" (p. 97) - o título, apenas, já é extraordinário por dar sentido completamente outro a "Rien, cette écume": à abstração, à "espuma" mallarmaica, a poeta prefere a materialidade da escrita.[...]
2. A epiderme alfabetizanda:
2.1 Um dos trechos destacados pelo resenhista do que ele chamou "diário juvenil de óculos Ray Ban" é uma leitura feminista de um conhecido poema de Manuel Bandeira, "Irene no céu", que a autora recebeu autografado do próprio poeta. Pela escolha dos trechos que mais causaram enfado ao resenhista, vê-se que é a voz feminina que lhe causa repugnância. Sabe-se da admiração dele por Cecília Meireles, mas esta grande escritora representa um lirismo tradicional [...] Já Ana Cristina é claramente a mulher após a revolução sexual, que refuta a visão tradicional do feminino. Dessa forma, ela vira ao avesso a Irene que Bandeira tornou imaculada (a mulher, em Ana, recusa-se a ter o seu desejo domesticado pelo homem) e abomina os versos lésbicos de Baudelaire (ousados para a época, não deixam de cair no estereótipo) num poema que é dos mais originais da língua, "21 de fevereiro"(p. 106) e recebeu apreciação de Ivan Junqueira (À sombra de Orfeu, Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, p. 190-191, 1984). Não perceber a radicalidade da questão do gênero na poesia de Ana Cristina ("Posso ouvir minha voz feminina: estou cansada de ser homem.") é professar uma evidente desleitura. Ou, simplesmente, machismo.
2.2 O resenhista caiu como um pato (respeitosamente emprego um significante muito repetido em Luvas de pelica de Ana C.) no conto da confissão; Caio Fernando Abreu também caiu nessa, na antiga contracapa de A teus pés. O verso de Ana não confessa nada, ou melhor, não mais do que qualquer outra poesia legítima, pois, se a poesia é fingimento, é fingimento do que se sente (a lição pessoana). A poeta não revela nada diretamente: ela desconstrói noção de confessionalismo, subverte a questão da intimidade para repensar a própria linguagem poética, como brilhantemente percebeu Silviano Santiago na conferência "Singular e anônimo" (Nas malhas da letra, São Paulo: Companhia das Letras, p. 53-61, 1984).
2.3 À questão da transitividade da linguagem poética, acrescento que Ana Cristina, com sua armadilha do aparente confessionalismo, lida novamente com o gênero. A própria autora dá a pista para essa leitura, em depoimento na Faculdade da Cidade, quando lembra que historicamente a escrita da mulher surgiu da intimidade: cartas, diários. Ana se posiciona historicamente como voz feminina.
O resenhista não percebeu nada disso, mas acertou onde não viu: a incompletude da poesia de Ana. Acertou, é bom dizer, muito de longe: pois essa incompletude não advém apenas do desaparecimento prematuro da autora e não significa uma "inconsequência carioca". A incompletude decorre do caráter experimental de sua poesia, que, ao contrário da de autores que só fazem modular, com rimas mais ou menos pobres, metros do passado numa sensibilidade ainda sub-rilkiana (sim, é uma referência ao resenhista), experimenta formas diversas [...] e, principalmente, é portadora de uma nova poética que não se fechou sobre si mesma. Ela aponta para o futuro e, provavelmente, inspirará escritores mais jovens.
Não se deve culpar o resenhista por não ter entendido nada: ele já pertence a outra época. Sua alta reside em outro lugar, que não é a poesia.
Que o resenhista, em uma comparação sórdida, queira contrapor Cruz e Sousa a Ana Cristina Cesar é, em princípio, despropositado pois suas obras não guardam semelhança alguma. O fim de Bruno Tolentino, contudo, é bem outro: comparar a morte de ambos, ressaltando o caráter voluntário da de Ana Cristina Cesar para ridicularizar a poeta, assimilando a sua queda fatal à "dos critérios" e ousando uma alusão irônica ao poema "18 de fevereiro" (p. 103).
Como dizia Fernando Pessoa, brincar com os deuses, a morte e a loucura é próprio da baixeza de alma; e só quem está abaixo da última canalha das ruas é capaz de fazê-lo sabendo que mente.
Não é o caso do resenhista, pois, como já vimos, ele manifestamente não sabe.
P.S.: Escrevo também que, nessa fase em que passei a ler Ana Cristina Cesar, vi duas vezes o espetáculo de dança de Marcia Rubin, Tudo que eu nunca te disse, de 1997. Desde o título, baseava-se na obra da escritora, e era de uma grande inteligência dramática e profundo entendimento dessa poesia. Seria bom que fosse remontado.
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
30 dias de leituras: Campos cosmopolitas da tradução
30 livros em um mês
Dia 24: Série de livros favorita.
Este tópico foi um dos que conservei da lista do "Desafio 30 livros"; eu não tinha, no entanto, a ideia do que indicar nele. Pensei na Recherche e desisti de incluí-la aqui: por experiência própria, tive de reconhecer que ela é um livro só, não uma série. Com efeito, o único volume que se pode ler isoladamente é o primeiro - porém, se perde muitíssimo limitando-se ao Swann.
Na minha experiência de leitor, uma série muito importante para mim foi uma sequência de livros de traduções (e aqui faço minha pequena homenagem aos tradutores brasileiros) que Augusto de Campos fez combinando vários autores. Na minha leitura, estes livros constituíram uma série de poesia que programava, segundo certas exigências poéticas e éticas (com Pound ao fundo), autores de épocas muito diversas que, com a mediação do tradutor e ensaísta, passaram a conversar entre si: Verso reverso controverso, O anticrítico, Mais provençais, Linguaviagem. Em alguns casos, a conversa já estava lá, como o poema de Borges para Keats, traduzido em Linguaviagem.
Todos foram publicados em edições bilíngues, o que é fundamental para poesia - e documentam a grande versatilidade de Augusto de Campos, capaz de traduzir a partir de diversos idiomas.
A primeira edição de Verso reverso controverso é de 1978, mas o conheci na segunda, que foi ampliada dez anos depois. O livro origina-se de artigos e traduções que ele vinha publicando desde 1964 e consegue reunir coerentemente (o que é ousado e notável) Marcabru e Rimbaud, Pound e Donne, George Herbert e Marino, Corbière e Arnaut Daniel...
No final, temos cantadores nordestinos - e, assim, um livro de grandes traduções termina com versos em português! Augusto de Campos não tem pruridos elitistas e reconhece a grande poesia não só nos "poetas urbanos", mas também nestes cantos: "Faço o Eixo da terra dar estalo,/ Faço a morte ter medo de morrer."
O organizador e tradutor escolhe outro canto nordestino, que lida com a imagem dos dados, a peleja entre Cego Aderaldo e Zé Pretinho. Como ele incluiu no livro poema de Arnaut Daniel com imagem semelhante, temos algo como se Mallarmé, neste paideuma, fosse Deus, e sua palavra, Un coup des dés, flutuasse atemporalmente sobre a poesia ocidental...
No livro, há um recorte de natureza temática, pois são privilegiados versos licenciosos, indecorosos, ou de um realismo cru. Com os trovadores, são mencionadas as cantigas de escárnio e maldizer (com um elogio à coletânea de Natália Correia). Uma intervenção poética contra o moralismo.
O livro era graficamente muito bem cuidado - parece que a editora Perspectiva não o alterou, felizmente. A capa, de Lizárraga, apresenta um trecho de partitura de um dos trovadores incluídos do livro, o grande Bernart de Ventadorn: a belíssima canção "Quant vey la lauzeta mover" ("Ao ver a ave leve mover", na tradução de Augusto de Campos).
É de 1986 O anticrítico, editado pela Companhia das Letras, que reúne Donne e Gertrude Stein, Cage e Dante, Emily Dickinson e Lewis Carroll, Verlaine e Huidobro... Augusto de Campos, no entanto, tenta introduzir os poetas com poemas seus que, em geral, são apenas didáticos e empalidecem diante dos poemas traduzidos. Para quem não acreditar, transcrevo esta estrofe de "América Latina: Contra-boom da poesia":
O livro não é capaz, também, de apresentar uma figura de "anticrítico" (seria aquele que escreve poemas fracos de louvor aos poetas que admira?) contrária à do que fala em "critiquês", até porque ele não chega de fato a analisar o que é esse jargão; parece que o problema dele é com os universitários, mas seria muito ingênuo achar que há (ou havia) uma postura homogênea nesse meio. E é inconsistente reclamar da Academia escrevendo poemas comprometidos pelo didaticismo...
Augusto de Campos, na breve apresentação de duas páginas, só deixa claro que é contra a maledicência, o que é bastante vago. Intelectualmente, o livro é muito mais fraco do que Verso reverso controverso, porém as traduções justificam-no plenamente. Vejam a solução que ele dá para o começo da Comédia, que Eduardo Sterzi já elogiou algumas vezes:
Alguém deveria contratar a Comédia inteira por ele, a peso de ouro, que é o que valeria o livro.
O trabalho de tradução dos poetas provençais teve sequência em Mais provençais, de 1987, dedicado a dois autores: Raimbaut d'Aurenga e Arnaut Daniel. O livro abre-se com traduções de trechos de Pound e de Dante que se referem àqueles dois autores. No caso de Dante, justamente o Canto XXVI do Purgatório, que é uma de minhas seções favoritas do poema; pena que ele deixe de lado o efeito da irrupção da língua provençal com a fala de Arnaut Daniel.
Ana Cristina Cesar, em artigo que foi recolhido em Crítica e tradução, publicado pelo Instituto Moreira Salles e pela Ática, põe nas alturas uma primeira edição desse livro pela Noa noa em 1983 - o título da resenha é "Bonito demais": "Augusto é tradutor admirável, que sabe combinar a competência do scholar à consciência da tradução como ato (também) político. Sua prática dá o que pensar: ele é, dos poetas-tradutores, o que mais explicita suas opções de tradutor como militância." E cita Verso reverso controverso como exemplo anterior da militância poético-tradutória de Augusto de Campos.
Sobre esse livro, ela havia escrito um interessante ensaio comparando-o com uma edição das traduções de Manuel Bandeira, que tinha uma política tradutória muitíssimo diferente - e mais tradicional, claro. Ana Cristina Cesar, embora preferisse a engenhosidade de Augusto de Campos à personalidade de Bandeira, fez reparos à aplicação de procedimentos do Concretismo às traduções dos poemas medievais, e acho que ela estava correta.
Em 1987, Augusto de Campos lançou Linguaviagem (pela Companhia das Letras) que, na "Breve introdução" é chamado de "parente próximo" de Verso reverso controverso, O anticrítico e de Paul Valéry: a serpente e o pensar. De fato.
O âmbito do livro é menos ambicioso do que o de Verso reverso controverso, contando com Valéry, Mallarmé, Blok, Borges, Yeats e Keats. A tradução de A jovem parca ocupa a boa parte do livro (e também a "Herodias" de Mallarmé), mas o que mais me encantava eram os poemas de Keats e de Yeats, em traduções em geral superiores às de Péricles Eugênio da Silva Ramos, que dedicou, porém, um livro inteiro a cada um dos dois.
Augusto de Campos assinou, sozinho ou com outros (notadamente outros concretistas), vários outros livros notáveis de tradução de poesia - entre eles, a Poesia russa moderna. Os quatro que mencionei nesta nota, contudo, parecem-me formar uma série distinta na obra tradutória desse autor.
São também trabalhos imprescindíveis para o leitor de poesia em português e marcos no Brasil deste ofício politicamente cosmopolita que é o da tradução. Afinal, os tradutores é que são os verdadeiros embaixadores, visto que possibilitam o diálogo entre os povos.
Dia 24: Série de livros favorita.
Este tópico foi um dos que conservei da lista do "Desafio 30 livros"; eu não tinha, no entanto, a ideia do que indicar nele. Pensei na Recherche e desisti de incluí-la aqui: por experiência própria, tive de reconhecer que ela é um livro só, não uma série. Com efeito, o único volume que se pode ler isoladamente é o primeiro - porém, se perde muitíssimo limitando-se ao Swann.
Na minha experiência de leitor, uma série muito importante para mim foi uma sequência de livros de traduções (e aqui faço minha pequena homenagem aos tradutores brasileiros) que Augusto de Campos fez combinando vários autores. Na minha leitura, estes livros constituíram uma série de poesia que programava, segundo certas exigências poéticas e éticas (com Pound ao fundo), autores de épocas muito diversas que, com a mediação do tradutor e ensaísta, passaram a conversar entre si: Verso reverso controverso, O anticrítico, Mais provençais, Linguaviagem. Em alguns casos, a conversa já estava lá, como o poema de Borges para Keats, traduzido em Linguaviagem.
Todos foram publicados em edições bilíngues, o que é fundamental para poesia - e documentam a grande versatilidade de Augusto de Campos, capaz de traduzir a partir de diversos idiomas.
A primeira edição de Verso reverso controverso é de 1978, mas o conheci na segunda, que foi ampliada dez anos depois. O livro origina-se de artigos e traduções que ele vinha publicando desde 1964 e consegue reunir coerentemente (o que é ousado e notável) Marcabru e Rimbaud, Pound e Donne, George Herbert e Marino, Corbière e Arnaut Daniel...
No final, temos cantadores nordestinos - e, assim, um livro de grandes traduções termina com versos em português! Augusto de Campos não tem pruridos elitistas e reconhece a grande poesia não só nos "poetas urbanos", mas também nestes cantos: "Faço o Eixo da terra dar estalo,/ Faço a morte ter medo de morrer."
O organizador e tradutor escolhe outro canto nordestino, que lida com a imagem dos dados, a peleja entre Cego Aderaldo e Zé Pretinho. Como ele incluiu no livro poema de Arnaut Daniel com imagem semelhante, temos algo como se Mallarmé, neste paideuma, fosse Deus, e sua palavra, Un coup des dés, flutuasse atemporalmente sobre a poesia ocidental...
No livro, há um recorte de natureza temática, pois são privilegiados versos licenciosos, indecorosos, ou de um realismo cru. Com os trovadores, são mencionadas as cantigas de escárnio e maldizer (com um elogio à coletânea de Natália Correia). Uma intervenção poética contra o moralismo.
O livro era graficamente muito bem cuidado - parece que a editora Perspectiva não o alterou, felizmente. A capa, de Lizárraga, apresenta um trecho de partitura de um dos trovadores incluídos do livro, o grande Bernart de Ventadorn: a belíssima canção "Quant vey la lauzeta mover" ("Ao ver a ave leve mover", na tradução de Augusto de Campos).
É de 1986 O anticrítico, editado pela Companhia das Letras, que reúne Donne e Gertrude Stein, Cage e Dante, Emily Dickinson e Lewis Carroll, Verlaine e Huidobro... Augusto de Campos, no entanto, tenta introduzir os poetas com poemas seus que, em geral, são apenas didáticos e empalidecem diante dos poemas traduzidos. Para quem não acreditar, transcrevo esta estrofe de "América Latina: Contra-boom da poesia":
de oswald à poesia concreta
de joão cabral e joão gilberto
da pc à tropicália
criou-se uma outra linha experimental
antropófago-construtivista
que não tem paralelo
na poesia espanhola
O livro não é capaz, também, de apresentar uma figura de "anticrítico" (seria aquele que escreve poemas fracos de louvor aos poetas que admira?) contrária à do que fala em "critiquês", até porque ele não chega de fato a analisar o que é esse jargão; parece que o problema dele é com os universitários, mas seria muito ingênuo achar que há (ou havia) uma postura homogênea nesse meio. E é inconsistente reclamar da Academia escrevendo poemas comprometidos pelo didaticismo...
Augusto de Campos, na breve apresentação de duas páginas, só deixa claro que é contra a maledicência, o que é bastante vago. Intelectualmente, o livro é muito mais fraco do que Verso reverso controverso, porém as traduções justificam-no plenamente. Vejam a solução que ele dá para o começo da Comédia, que Eduardo Sterzi já elogiou algumas vezes:
No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída.
Ah, como armar no ar uma figura
desta selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?
Alguém deveria contratar a Comédia inteira por ele, a peso de ouro, que é o que valeria o livro.
O trabalho de tradução dos poetas provençais teve sequência em Mais provençais, de 1987, dedicado a dois autores: Raimbaut d'Aurenga e Arnaut Daniel. O livro abre-se com traduções de trechos de Pound e de Dante que se referem àqueles dois autores. No caso de Dante, justamente o Canto XXVI do Purgatório, que é uma de minhas seções favoritas do poema; pena que ele deixe de lado o efeito da irrupção da língua provençal com a fala de Arnaut Daniel.
Ana Cristina Cesar, em artigo que foi recolhido em Crítica e tradução, publicado pelo Instituto Moreira Salles e pela Ática, põe nas alturas uma primeira edição desse livro pela Noa noa em 1983 - o título da resenha é "Bonito demais": "Augusto é tradutor admirável, que sabe combinar a competência do scholar à consciência da tradução como ato (também) político. Sua prática dá o que pensar: ele é, dos poetas-tradutores, o que mais explicita suas opções de tradutor como militância." E cita Verso reverso controverso como exemplo anterior da militância poético-tradutória de Augusto de Campos.
Sobre esse livro, ela havia escrito um interessante ensaio comparando-o com uma edição das traduções de Manuel Bandeira, que tinha uma política tradutória muitíssimo diferente - e mais tradicional, claro. Ana Cristina Cesar, embora preferisse a engenhosidade de Augusto de Campos à personalidade de Bandeira, fez reparos à aplicação de procedimentos do Concretismo às traduções dos poemas medievais, e acho que ela estava correta.
Em 1987, Augusto de Campos lançou Linguaviagem (pela Companhia das Letras) que, na "Breve introdução" é chamado de "parente próximo" de Verso reverso controverso, O anticrítico e de Paul Valéry: a serpente e o pensar. De fato.
O âmbito do livro é menos ambicioso do que o de Verso reverso controverso, contando com Valéry, Mallarmé, Blok, Borges, Yeats e Keats. A tradução de A jovem parca ocupa a boa parte do livro (e também a "Herodias" de Mallarmé), mas o que mais me encantava eram os poemas de Keats e de Yeats, em traduções em geral superiores às de Péricles Eugênio da Silva Ramos, que dedicou, porém, um livro inteiro a cada um dos dois.
Augusto de Campos assinou, sozinho ou com outros (notadamente outros concretistas), vários outros livros notáveis de tradução de poesia - entre eles, a Poesia russa moderna. Os quatro que mencionei nesta nota, contudo, parecem-me formar uma série distinta na obra tradutória desse autor.
São também trabalhos imprescindíveis para o leitor de poesia em português e marcos no Brasil deste ofício politicamente cosmopolita que é o da tradução. Afinal, os tradutores é que são os verdadeiros embaixadores, visto que possibilitam o diálogo entre os povos.
sábado, 8 de outubro de 2011
30 dias de leituras: Rimbaud, tradição da ruptura, ruptura de tradições
30 livros em um mês
Dia 23: Livro que você leu mais vezes.
Poderia ser Em busca do tempo perdido, de Proust, sobre que já escrevi. Só li a Recherche três vezes (já vou começar a quarta), mas, como são centenas e centenas de páginas, ganha em número de páginas relidas...
As releituras variam muito segundo a época. Se estivesse a escrever durante a graduação (acho que não existiam blogues nessa época), teria sido aquela edição da poesia de Fernando Pessoa. Em outra época, teria sido a poesia reunida de Yeats. em outra, o Poesia-Experiência de Mário Faustino.
Como, de acordo com as regras que me impus, não posso escolher um dicionário, e porque adotarei o critério do número de vezes, escrevo esta nota sobre Rimbaud, que li em algumas edições diferentes. A primeira, delas, Uma estadia no inferno (Une saison en enfer) na tradução de Ivo Barroso (antes publicada pela Civilização Brasileira, depois pela Topbooks), que é muito superior à de Ledo Ivo.
Sobre a tradução deste último Ivo, não precisamos lembrar da "insignificância de seu trabalho dentro do debate poético contemporâneo brasileiro" (como escreveu há pouco Ricardo Domeneck), pois poetas sem obra relevante podem ser grandes tradutores. Mas havia uma incompatibilidade de gênios (gênio no sentido estrito de temperamento, por favor), declarada desde a introdução, e que o acadêmico ratificou: "Yo le recomendaría a un joven poeta no ser un joven poeta, especialmente si este joven poeta es un terrorista literario, un Rimbaud, un contestatario./ Yo le recomendaría que él procurase un día, tornarse un clásico de su país."
A divisão entre clássico e contestador deveria ser relativizada: há clássicos da contestação (Marx não se tomou um clássico? ou Dante?) e não existem apenas tradições do conservadorismo... Por sinal, certos conservadores gostam de ocultar na história justamente as tradições da insurreição (rápida observação: aquelas críticas apressadas a Gadamer que o encaram como conservador por tratar do papel da tradição padecem do mesmo negacionismo histórico). A tradição não é algo homogêneo e apaziguador, exceto para os que amam simplificações históricas, ou seja, embustes.
Aqui, gostaria também de discordar do tradutor brasileiro da poesia latina de Rimbaud (ele já a traduziu toda; falta um editor), seara em que não entraram Ivo Barroso e Ledo Ivo, Leonardo d'Ávila de Oliveira. Ele escreveu que "O que se nota, no entanto, é que a tomada do autor como um mito fundador da poesia moderna fica, neste caso, comprometida, já que, antes de criar, o autor joga com toda a tradição, a exemplo de versos de Virgílio ou mesmo Ângelo Poliziano."
Faz sentido pretender que a inovação em arte só poderia ser alcançada pela ignorância da própria arte?... Pode-se constatar tantas vezes o oposto: é o conhecimento da tradição que dá mais instrumentos para a ruptura - como foi o caso de Monteverdi (se não dominasse o madrigal renascentista, teria escrito algo como o Orfeu?), Beethoven, Schönberg...
Rimbaud fascinou-me porque sua trajetória é de rápidas conquistas e abandonos: domina o verso latino, vai para a poesia em verso francês, domina-a, segue para o poema em prosa, combina poesia em prosa e em verso (Une saison en enfer já foi comparado à Vida nova de Dante?), chega ao verso livre (em Iluminações, "Marine") e encerra a carreira. Certamente os impasses da sua vida pessoal contaram também, mas fato é que ele parou depois de percorrer as possibilidades poéticas de seu tempo - como se tivesse chegado ao fim do jogo.
Mário Faustino pôde escrever sobre Rimbaud: "a partir do momento em que o poeta constroi uma poesia nova, sua poesia, é melhor calar do que repetir-se" (em Poesia-Experiência). Mallarmé, depois, com Un coup de dés, traria ainda mais uma possibilidade para a poesia francesa. De fato, o que Rimbaud logra em tão poucos anos é de uma ousadia e de uma experimentação incríveis - e se compreende que essa obra tenha sido criada por um escritor tão jovem, e preocupado com a revolução social.
Tenho alunos com o dobro da idade de Rimbaud quando escreveu a Estadia que não conseguem juntar sujeito e verbo. Alguns daqueles com a mesma idade que o poeta tinha nessa época perguntam quem é o verbo e, de fato, apenas enfileiram substantivos em frases nominais que começam com a palavra "onde", a qual serve como conjunção universal indicativa de profunda elipse mental. Por trabalhar dentro da catástrofe da educação no Brasil, acho que Charles Dantzig tinha razão ao afirmar (no idiossincrático e engraçado Dictionnaire égoïste de la littérature française) que Rimbaud e Genet foram dos maiores sucessos da educação pública francesa (veneninho francês: "D'où la facilité avec laquelle il devient un poète officiel de cette même Éducation nationale [...]"). De fato, Rimbaud é um argumento em prol da educação pública - imaginem os talentos que perderam suas possibilidades, no Brasil, vendendo bala em sinal. Mesmo um liberal como Rawls diria que a igualdade de oportunidades é um requisito para uma sociedade justa.
A Saison como um paralelo à Vida nova? Os dois livros combinam prosa e poesia, são autobiográficos (vejam Eduardo Sterzi a respeito do poeta italiano) e tratam dos afetos do poeta, no caso de Rimbaud, de uma relação que aconteceu de fato, com Verlaine (Dante provavelmente nunca namorou Beatriz).
Há religião em Dante, e também em Rimbaud - ele está no inferno, mas ascenderá, é o que a "virgem louca" anuncia sobre o "esposo infernal" na primeira parte dos "Delírios".
Que inferno é esse, do qual se pode ascender? Dante pôde fazê-lo em outro livro (a Comédia), porque estava vivo e atendia ao chamado de Beatriz, que tinha se tornado uma grande dama do paraíso. No livro de Charles Henry L. Bodenham, Rimbaud et son père: Les clés d'une enigme, mostra influência do islamismo na obra do poeta, e explica que, também nesse texto (Bodenham mostra os diversos paralelos), o Corão está presente: o islâmico não permanece no inferno eternamente, ele ascende - só quem ficará lá para todo o sempre é o infiel, isto é, o não islâmico (no caso, Verlaine).
Rimbaud havia estudado o islamismo nos livros do pai, Frédéric (militar que havia servido na Argélia, e que sobre ela escreveu, e acabou, como se sabe, abandonando a família). Bodenham vê a presença do sufismo e de A conferência dos pássaros no famoso "Elle est retrouvée!/ Quoi? l'éternité", que existe em duas versões.
Além da impressionante aventura formal e existencial de Rimbaud, há nele essa dilaceração entre Ocidente e Oriente, pois não é possível pertencer a ambos; em "O impossível", lemos que "O espírito burguês nasceu com Cristo."; "Os homens da Igreja dirão: É isso mesmo. Queres referir-te ao Eden, não? Nada te interessa na história dos povos orientais."; sobre os filósofos: "Estás no Ocidente, mas livre para viveres no teu Oriente, por mais remoto que o desejes, - e aí viver muito bem. Não sejas um vencido. Filósofos, vós pertenceis ao Ocidente." [tradução de Ivo Barroso].
Ir para a África não deixou, em certo sentido, de constituir uma continuação dessa poesia, que contesta de forma tão explícita a civilização europeia. Em "Sangue mau", a identificação com os colonizados é flagrante:
Sintaticamente, a enumeração com a repetição da dança, com seu ritmo tão peculiar, busca encarnar a ruptura com o discurso ocidental. Não é necessário lembrar que aquilo que Rimbaud faz com o ritmo, também na poesia em prosa, é de impressionante maestria - e desafiaria qualquer músico; acho que Britten não conseguiu chegar perto da variedade rítmica de Rimbaud quando musicou parte de Iluminações - mas ouço com prazer, no entanto, o que o compositor inglês logrou.
Por sinal, Iluminações, em alguns de seus textos, leva adiante esse conflito, que é um conflito de culturas - e o desejo de romper com o Ocidente. É o caso de "Democracia", claro. Em "Vagabundos", temos o desconforto com a civilização e a busca desesperada "de encontrar o lugar e a fórmula" do "estado primitivo de filho do sol".
Rimbaud, sequioso de "possuir a verdade em uma alma e um corpo" (o final da Saison) foi literalmente buscar o sol - mas, antes, felizmente, deixou-nos sua parada selvagem.
Dia 23: Livro que você leu mais vezes.
Poderia ser Em busca do tempo perdido, de Proust, sobre que já escrevi. Só li a Recherche três vezes (já vou começar a quarta), mas, como são centenas e centenas de páginas, ganha em número de páginas relidas...
As releituras variam muito segundo a época. Se estivesse a escrever durante a graduação (acho que não existiam blogues nessa época), teria sido aquela edição da poesia de Fernando Pessoa. Em outra época, teria sido a poesia reunida de Yeats. em outra, o Poesia-Experiência de Mário Faustino.
Como, de acordo com as regras que me impus, não posso escolher um dicionário, e porque adotarei o critério do número de vezes, escrevo esta nota sobre Rimbaud, que li em algumas edições diferentes. A primeira, delas, Uma estadia no inferno (Une saison en enfer) na tradução de Ivo Barroso (antes publicada pela Civilização Brasileira, depois pela Topbooks), que é muito superior à de Ledo Ivo.
Sobre a tradução deste último Ivo, não precisamos lembrar da "insignificância de seu trabalho dentro do debate poético contemporâneo brasileiro" (como escreveu há pouco Ricardo Domeneck), pois poetas sem obra relevante podem ser grandes tradutores. Mas havia uma incompatibilidade de gênios (gênio no sentido estrito de temperamento, por favor), declarada desde a introdução, e que o acadêmico ratificou: "Yo le recomendaría a un joven poeta no ser un joven poeta, especialmente si este joven poeta es un terrorista literario, un Rimbaud, un contestatario./ Yo le recomendaría que él procurase un día, tornarse un clásico de su país."
A divisão entre clássico e contestador deveria ser relativizada: há clássicos da contestação (Marx não se tomou um clássico? ou Dante?) e não existem apenas tradições do conservadorismo... Por sinal, certos conservadores gostam de ocultar na história justamente as tradições da insurreição (rápida observação: aquelas críticas apressadas a Gadamer que o encaram como conservador por tratar do papel da tradição padecem do mesmo negacionismo histórico). A tradição não é algo homogêneo e apaziguador, exceto para os que amam simplificações históricas, ou seja, embustes.
Aqui, gostaria também de discordar do tradutor brasileiro da poesia latina de Rimbaud (ele já a traduziu toda; falta um editor), seara em que não entraram Ivo Barroso e Ledo Ivo, Leonardo d'Ávila de Oliveira. Ele escreveu que "O que se nota, no entanto, é que a tomada do autor como um mito fundador da poesia moderna fica, neste caso, comprometida, já que, antes de criar, o autor joga com toda a tradição, a exemplo de versos de Virgílio ou mesmo Ângelo Poliziano."
Faz sentido pretender que a inovação em arte só poderia ser alcançada pela ignorância da própria arte?... Pode-se constatar tantas vezes o oposto: é o conhecimento da tradição que dá mais instrumentos para a ruptura - como foi o caso de Monteverdi (se não dominasse o madrigal renascentista, teria escrito algo como o Orfeu?), Beethoven, Schönberg...
Rimbaud fascinou-me porque sua trajetória é de rápidas conquistas e abandonos: domina o verso latino, vai para a poesia em verso francês, domina-a, segue para o poema em prosa, combina poesia em prosa e em verso (Une saison en enfer já foi comparado à Vida nova de Dante?), chega ao verso livre (em Iluminações, "Marine") e encerra a carreira. Certamente os impasses da sua vida pessoal contaram também, mas fato é que ele parou depois de percorrer as possibilidades poéticas de seu tempo - como se tivesse chegado ao fim do jogo.
Mário Faustino pôde escrever sobre Rimbaud: "a partir do momento em que o poeta constroi uma poesia nova, sua poesia, é melhor calar do que repetir-se" (em Poesia-Experiência). Mallarmé, depois, com Un coup de dés, traria ainda mais uma possibilidade para a poesia francesa. De fato, o que Rimbaud logra em tão poucos anos é de uma ousadia e de uma experimentação incríveis - e se compreende que essa obra tenha sido criada por um escritor tão jovem, e preocupado com a revolução social.
Tenho alunos com o dobro da idade de Rimbaud quando escreveu a Estadia que não conseguem juntar sujeito e verbo. Alguns daqueles com a mesma idade que o poeta tinha nessa época perguntam quem é o verbo e, de fato, apenas enfileiram substantivos em frases nominais que começam com a palavra "onde", a qual serve como conjunção universal indicativa de profunda elipse mental. Por trabalhar dentro da catástrofe da educação no Brasil, acho que Charles Dantzig tinha razão ao afirmar (no idiossincrático e engraçado Dictionnaire égoïste de la littérature française) que Rimbaud e Genet foram dos maiores sucessos da educação pública francesa (veneninho francês: "D'où la facilité avec laquelle il devient un poète officiel de cette même Éducation nationale [...]"). De fato, Rimbaud é um argumento em prol da educação pública - imaginem os talentos que perderam suas possibilidades, no Brasil, vendendo bala em sinal. Mesmo um liberal como Rawls diria que a igualdade de oportunidades é um requisito para uma sociedade justa.
A Saison como um paralelo à Vida nova? Os dois livros combinam prosa e poesia, são autobiográficos (vejam Eduardo Sterzi a respeito do poeta italiano) e tratam dos afetos do poeta, no caso de Rimbaud, de uma relação que aconteceu de fato, com Verlaine (Dante provavelmente nunca namorou Beatriz).
Há religião em Dante, e também em Rimbaud - ele está no inferno, mas ascenderá, é o que a "virgem louca" anuncia sobre o "esposo infernal" na primeira parte dos "Delírios".
Que inferno é esse, do qual se pode ascender? Dante pôde fazê-lo em outro livro (a Comédia), porque estava vivo e atendia ao chamado de Beatriz, que tinha se tornado uma grande dama do paraíso. No livro de Charles Henry L. Bodenham, Rimbaud et son père: Les clés d'une enigme, mostra influência do islamismo na obra do poeta, e explica que, também nesse texto (Bodenham mostra os diversos paralelos), o Corão está presente: o islâmico não permanece no inferno eternamente, ele ascende - só quem ficará lá para todo o sempre é o infiel, isto é, o não islâmico (no caso, Verlaine).
Rimbaud havia estudado o islamismo nos livros do pai, Frédéric (militar que havia servido na Argélia, e que sobre ela escreveu, e acabou, como se sabe, abandonando a família). Bodenham vê a presença do sufismo e de A conferência dos pássaros no famoso "Elle est retrouvée!/ Quoi? l'éternité", que existe em duas versões.
Além da impressionante aventura formal e existencial de Rimbaud, há nele essa dilaceração entre Ocidente e Oriente, pois não é possível pertencer a ambos; em "O impossível", lemos que "O espírito burguês nasceu com Cristo."; "Os homens da Igreja dirão: É isso mesmo. Queres referir-te ao Eden, não? Nada te interessa na história dos povos orientais."; sobre os filósofos: "Estás no Ocidente, mas livre para viveres no teu Oriente, por mais remoto que o desejes, - e aí viver muito bem. Não sejas um vencido. Filósofos, vós pertenceis ao Ocidente." [tradução de Ivo Barroso].
Ir para a África não deixou, em certo sentido, de constituir uma continuação dessa poesia, que contesta de forma tão explícita a civilização europeia. Em "Sangue mau", a identificação com os colonizados é flagrante:
Chega de frases. Enterro os mortos no meu ventre. Gritos, tambor, dança, dança, dança, dança! Não vejo nem mesmo a hora em que, desembarcando os brancos, tombarei no vácuo.
Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança!
Os brancos desembarcam. O canhão! Há que submeter-se ao batismo, vestir-se, trabalhar.[tradução de Ivo Barroso]
Sintaticamente, a enumeração com a repetição da dança, com seu ritmo tão peculiar, busca encarnar a ruptura com o discurso ocidental. Não é necessário lembrar que aquilo que Rimbaud faz com o ritmo, também na poesia em prosa, é de impressionante maestria - e desafiaria qualquer músico; acho que Britten não conseguiu chegar perto da variedade rítmica de Rimbaud quando musicou parte de Iluminações - mas ouço com prazer, no entanto, o que o compositor inglês logrou.
Por sinal, Iluminações, em alguns de seus textos, leva adiante esse conflito, que é um conflito de culturas - e o desejo de romper com o Ocidente. É o caso de "Democracia", claro. Em "Vagabundos", temos o desconforto com a civilização e a busca desesperada "de encontrar o lugar e a fórmula" do "estado primitivo de filho do sol".
Rimbaud, sequioso de "possuir a verdade em uma alma e um corpo" (o final da Saison) foi literalmente buscar o sol - mas, antes, felizmente, deixou-nos sua parada selvagem.
sexta-feira, 7 de outubro de 2011
30 dias de leituras: Brasil e exílio segundo Clark e Oiticica
30 livros em um mês
Dia 22: Livro preferido que é uma escola.
Poderiam ser tantos, mas prefiro escolher o que mais teve influência sobre a forma como tento pensar teoricamente, as cartas de Hélio Oiticica e Lygia Clark, organizadas por Luciano Figueiredo. Tenho a segunda edição, publicada em 1998 pela UFRJ.
Trata-se da epistolografia de dois dos maiores artistas brasileiros, ambos em plena produção, em um momento difícil do Brasil - a ditadura militar. As cartas são tão inteligentes e vivas que lamento que mais não tenha sido publicado.
É fascinante ver seus planos, e como, personalidades tão independentes, discordam um do outro. Oiticica, em determinada carta, diz-se radicalmente marginal: "hoje sou marginal ao marginal, não marginal aspirando à pequena burguesia ou ao conformismo, o que acontece com a maioria, mas marginal mesmo: à margem de tudo, o que me dá surpreendente liberdade de ação" (carta de 15 out. 1968). Há uma certa mistificação nisso.
Clark, com uma visão mais larga, responde que isso ainda é burguês: "Achar ainda que és um marginal porque vives à margem de uma sociedade caduca e podre é ainda um conceito burguês. O que me angustia profundamente não é você nem eu nem gente como nós. É me saber situada, integrada numa situação privilegiada, mas perceber que para os outros o mundo ainda não cavou o seu lugar" (carta de 26 out. 1968).
Em 1970, Oiticica escreve que nção tem mais sentido "participar em museu ou galeria", mas que faria isso em Nova Iorque porque lá ele ainda não era bem conhecido. A resposta dela é genial: "Quanto à posição, a priori, de ser contra galerias, museus, etc., etc., não leva a nada de positivo a não ser criar uma nova elite" (carta de 20 de maio de 1970); e, quanto a seus críticos, indaga "Por que eles não podem admitir que as coisas mudam e também as próprias instituições?" Elas são históricas, são alteradas pelas práticas. Claro que a pesquisa dela com o corpo e o gesto coaduna-se com essa visão sobre as práticas.
Em 1968, ela confessa que às vezes se sentia "currada" pelo público. A resposta dele abre horizontes mais amplos: "Esse problema de ser deflorado pelo espectador é o mais dramático: todos são, aliás, pois além da ação há a consciência-momento de cada ação, mesmo que esta consciência se modifique depois, ou incorpore novas vivências." (8 nov. 1968).
O livro, porém, me ensinou menos sobre a arte do que sobre o país, o Brasil. É significativo que, em boa parte das cartas, eles estejam alhures: Clark na Europa, Oiticica, do Rio de Janeiro, vai para Londres, Paris (de que não gosta) e Nova Iorque, que adora como ao Rio. Em 1968, Oiticica queixa-se do terrorismo de direita, que afeta Zé Celso e o Roda viva. Ele já é censurado. Sua bandeira "Seja marginal, seja herói", que seria usada em um espetáculo de Caetano Veloso com Os Mutantes, foi proibida pelo DOPS. Reclama da burrice da imprensa e da mesquinharia dos colegas artistas.
Clark, porém, é pressurosa em defender o Brasil, comparando-o com a Europa, onde "a merda é geral. Não existe povo." (26 out. 1968). O próprio Oiticica elogia, em carta posterior, o país, pela linha já tradicional da miscigenação: "o Brasil é uma espécie de síntese de povos, raças, costumes, onde o europeu fala mas não fala tão alto, a não ser nos meios universalistas acadêmicos, que não são 'criação cultural', mas arremedo." (8 nov. 1968). Bom diagnóstico da academia. Ele afirma que essa mistura nos dá mais dramaticidade - tivemos uma "barra mais pesada", o que se notava na arte de Clark. Trata-se, pois, de uma visão que não tenta camuflar o conflito na síntese.
Gostaria de também poder ver assim, sem apaziguamento ou covardia.
Nas cartas de Oiticica no Brasil, leem-se os problemas com o Itamaraty (que o sabota), com a censura, as repetidas ameaças pelo telefone, o sumiço de amigos. Lygia Clark, em 1969, já abandona o tom otimista sobre o país e fala da "guerra civil ainda clandestina".
Outra coisa em comum: os dois geralmente estão sem dinheiro...
Oiticica repetidamente diagnostica a falta de pensamento entre os artistas e a imprensa, e o oba-oba padronizado: as pessoas que o procuram nem sabem o que ele faz, o que é "típico do Brasil". Essa recusa esfuziante à inteligência encontra poucas exceções, como Augusto e Haroldo de Campos, que ele elogia. Ele e Clark, já em 1974, notam uma decadência de Caetano Veloso (que Oiticica louvara tanto em 1968) e um encaretamento de Gilberto Gil.
O livro tem várias posições interessantes sobre o objeto e o biológico na arte, a antropofagia, a tevê, o cinema, a música... No entanto, para mim, a carta mais impactante sempre foi uma de Oiticica, de dez de outubro de 1974, em que indaga "Como o Brasil é o reino da diluição, quem pode prever a eficácia de qualquer coisa quanto ao contexto?" Percebi que essa era uma chave que estendia a questão do informe, como apresentada em Sérgio Buarque de Holanda, e explicava bem o direito brasileiro.
As artes diluidoras da tolice com títulos e cargos (na academia e no Judiciário) e da dominação de classe diluem a eficácia do direito, de forma que se não lhe podem prever os efeitos. Isso pode chegar ao ponto de a norma ser distorcida, seja para tornar-se absolutamente ineficaz, seja para que gere uma eficácia contrária a seus próprios fins - a produção legal da ilegalidade.
Eu já tinha chegado a essa expressão no mestrado, mas, quando li as cartas desses dois artistas, é que fui entender que se trata de um traço cultural no Brasil, que vai além do direito - na verdade, ele chega até o direito. Anos depois, aquela frase de Oiticica serviu de epígrafe para o terceiro capítulo da minha tese, em que analisei como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral retiravam a eficácia da dimensão social do direito à educação - neste artigo, resumi a questão.
Esta coletânea de cartas foi um dos livros que mais me inspirou a imaginação jurídica, muito mais do que a quase totalidade dos livros de direito. Não é de estranhar: trata-se de dois grandes artistas pensando a cultura, e qualquer pensamento sobre o direito que ignore que ele deriva de uma cultura está fadado a ser um não pensamento.
Ademais, em vez de buscar a especificidade do jurídico, prefiro pensar nas contaminações e nos hibridismos, o que é outra lição desses artistas. Clark, na última carta, declara: "mas agora quero continuar na 'fronteira', pois é isso que sou e não adianta querer ser menos fronteira."
P.S.: No blogue de Niara de Oliveira, pode-se ver quem está participando desta rodada de leituras.
Dia 22: Livro preferido que é uma escola.
Poderiam ser tantos, mas prefiro escolher o que mais teve influência sobre a forma como tento pensar teoricamente, as cartas de Hélio Oiticica e Lygia Clark, organizadas por Luciano Figueiredo. Tenho a segunda edição, publicada em 1998 pela UFRJ.
Trata-se da epistolografia de dois dos maiores artistas brasileiros, ambos em plena produção, em um momento difícil do Brasil - a ditadura militar. As cartas são tão inteligentes e vivas que lamento que mais não tenha sido publicado.
É fascinante ver seus planos, e como, personalidades tão independentes, discordam um do outro. Oiticica, em determinada carta, diz-se radicalmente marginal: "hoje sou marginal ao marginal, não marginal aspirando à pequena burguesia ou ao conformismo, o que acontece com a maioria, mas marginal mesmo: à margem de tudo, o que me dá surpreendente liberdade de ação" (carta de 15 out. 1968). Há uma certa mistificação nisso.
Clark, com uma visão mais larga, responde que isso ainda é burguês: "Achar ainda que és um marginal porque vives à margem de uma sociedade caduca e podre é ainda um conceito burguês. O que me angustia profundamente não é você nem eu nem gente como nós. É me saber situada, integrada numa situação privilegiada, mas perceber que para os outros o mundo ainda não cavou o seu lugar" (carta de 26 out. 1968).
Em 1970, Oiticica escreve que nção tem mais sentido "participar em museu ou galeria", mas que faria isso em Nova Iorque porque lá ele ainda não era bem conhecido. A resposta dela é genial: "Quanto à posição, a priori, de ser contra galerias, museus, etc., etc., não leva a nada de positivo a não ser criar uma nova elite" (carta de 20 de maio de 1970); e, quanto a seus críticos, indaga "Por que eles não podem admitir que as coisas mudam e também as próprias instituições?" Elas são históricas, são alteradas pelas práticas. Claro que a pesquisa dela com o corpo e o gesto coaduna-se com essa visão sobre as práticas.
Em 1968, ela confessa que às vezes se sentia "currada" pelo público. A resposta dele abre horizontes mais amplos: "Esse problema de ser deflorado pelo espectador é o mais dramático: todos são, aliás, pois além da ação há a consciência-momento de cada ação, mesmo que esta consciência se modifique depois, ou incorpore novas vivências." (8 nov. 1968).
O livro, porém, me ensinou menos sobre a arte do que sobre o país, o Brasil. É significativo que, em boa parte das cartas, eles estejam alhures: Clark na Europa, Oiticica, do Rio de Janeiro, vai para Londres, Paris (de que não gosta) e Nova Iorque, que adora como ao Rio. Em 1968, Oiticica queixa-se do terrorismo de direita, que afeta Zé Celso e o Roda viva. Ele já é censurado. Sua bandeira "Seja marginal, seja herói", que seria usada em um espetáculo de Caetano Veloso com Os Mutantes, foi proibida pelo DOPS. Reclama da burrice da imprensa e da mesquinharia dos colegas artistas.
Clark, porém, é pressurosa em defender o Brasil, comparando-o com a Europa, onde "a merda é geral. Não existe povo." (26 out. 1968). O próprio Oiticica elogia, em carta posterior, o país, pela linha já tradicional da miscigenação: "o Brasil é uma espécie de síntese de povos, raças, costumes, onde o europeu fala mas não fala tão alto, a não ser nos meios universalistas acadêmicos, que não são 'criação cultural', mas arremedo." (8 nov. 1968). Bom diagnóstico da academia. Ele afirma que essa mistura nos dá mais dramaticidade - tivemos uma "barra mais pesada", o que se notava na arte de Clark. Trata-se, pois, de uma visão que não tenta camuflar o conflito na síntese.
Gostaria de também poder ver assim, sem apaziguamento ou covardia.
Nas cartas de Oiticica no Brasil, leem-se os problemas com o Itamaraty (que o sabota), com a censura, as repetidas ameaças pelo telefone, o sumiço de amigos. Lygia Clark, em 1969, já abandona o tom otimista sobre o país e fala da "guerra civil ainda clandestina".
Outra coisa em comum: os dois geralmente estão sem dinheiro...
Oiticica repetidamente diagnostica a falta de pensamento entre os artistas e a imprensa, e o oba-oba padronizado: as pessoas que o procuram nem sabem o que ele faz, o que é "típico do Brasil". Essa recusa esfuziante à inteligência encontra poucas exceções, como Augusto e Haroldo de Campos, que ele elogia. Ele e Clark, já em 1974, notam uma decadência de Caetano Veloso (que Oiticica louvara tanto em 1968) e um encaretamento de Gilberto Gil.
O livro tem várias posições interessantes sobre o objeto e o biológico na arte, a antropofagia, a tevê, o cinema, a música... No entanto, para mim, a carta mais impactante sempre foi uma de Oiticica, de dez de outubro de 1974, em que indaga "Como o Brasil é o reino da diluição, quem pode prever a eficácia de qualquer coisa quanto ao contexto?" Percebi que essa era uma chave que estendia a questão do informe, como apresentada em Sérgio Buarque de Holanda, e explicava bem o direito brasileiro.
As artes diluidoras da tolice com títulos e cargos (na academia e no Judiciário) e da dominação de classe diluem a eficácia do direito, de forma que se não lhe podem prever os efeitos. Isso pode chegar ao ponto de a norma ser distorcida, seja para tornar-se absolutamente ineficaz, seja para que gere uma eficácia contrária a seus próprios fins - a produção legal da ilegalidade.
Eu já tinha chegado a essa expressão no mestrado, mas, quando li as cartas desses dois artistas, é que fui entender que se trata de um traço cultural no Brasil, que vai além do direito - na verdade, ele chega até o direito. Anos depois, aquela frase de Oiticica serviu de epígrafe para o terceiro capítulo da minha tese, em que analisei como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral retiravam a eficácia da dimensão social do direito à educação - neste artigo, resumi a questão.
Esta coletânea de cartas foi um dos livros que mais me inspirou a imaginação jurídica, muito mais do que a quase totalidade dos livros de direito. Não é de estranhar: trata-se de dois grandes artistas pensando a cultura, e qualquer pensamento sobre o direito que ignore que ele deriva de uma cultura está fadado a ser um não pensamento.
Ademais, em vez de buscar a especificidade do jurídico, prefiro pensar nas contaminações e nos hibridismos, o que é outra lição desses artistas. Clark, na última carta, declara: "mas agora quero continuar na 'fronteira', pois é isso que sou e não adianta querer ser menos fronteira."
P.S.: No blogue de Niara de Oliveira, pode-se ver quem está participando desta rodada de leituras.
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