Estivemos, eu e Fabio Weintraub, em julho de 2007 em Portugal e aproveitamos para entrevistar um dos mais notáveis editores portugueses, Vitor Silva Tavares. Ele havia comemorado setenta anos, o que deu ensejo a diversas matérias jornalísticas.
Apesar da importância de seu trabalho, o editor não é tão conhecido no Brasil. Lembro-me de um bom livreiro no Rio de Janeiro achando que ele só lançava clássicos - e é quase o contrário! De autores clássicos, se é o caso, Vitor Silva Tavares busca títulos marginais, como se verá abaixo. E ele não tem medo de lançar autores jovens, até mesmo em poesia.
De fato, ele não teme muita coisa: sua porta está sempre aberta, desde que esteja lá para receber os visitantes. Na livraria Letra Livre, foi-nos dito que bastava apertar a campainha que a porta se abriria. E assim foi, sem perguntar quem éramos. Ele já me conhecia, porém.
A entrevista cobre uma série de temas: a escravidão nas colônias que Portugal ainda mantinha na África, a censura em Portugal e no Brasil, os surrealistas portugueses, o fascismo, literatura brasileira e até um auto-da-fé judicial realizado contra livro do século XIX que a & etc havia relançado!
Notável é que seu pertencimento à esquerda não esteja apenas no catálogo, mas também no modo de produção: ele não fica com os direitos autorais e jamais republica os livros, com uma única exceção: um livro apreendido pela polícia portuguesa depois de 74, o que é contado a seguir.
A entrevista saiu no K Jornal de Crítica. Como não está mais disponível, publico-a neste blogue com fotos (de qualidade mediana) que tiramos na editora, em Lisboa. http://www.blogger.com/img/blank.gifCreio que ela mantém o interesse, pois o caráter singular deste editor manteve-se inalterado, e talvez até mais excepcional, diante da crise em Portugal e na Europa.
Naquele tempo, a editora não estava na internet, mas hoje tem um
blogue próprio, que aparece na lista ao lado.
K Jornal de Crítica 17 | nov/dez 07
Oxigênios anárquicos: Letras, Ativismo e Resistência: Vitor Silva Tavares e a Editora & etc
Vitor Silva Tavares, jornalista e editor nascido em Lisboa em 1937, trabalhou na Ulisseia (fundada por Abel Pereira da Fonseca) e fundou sua própria editora, a & etc (Edições Culturais do Subterrâneo), que teve origem em um magazine publicado no Jornal do Fundão. Esse magazine tornou-se uma revista (de 1973 a 1974) e, em 1974, pouco antes do 25 de Abril, uma editora, que prossegue muito ativa. Nela, publicou Adília Lopes e Henri Michaux, Alberto Pimenta e Max Ernst, Hermann Ungar e Ana Hatherly, Bataille e Herberto Helder, Sade e Satie, Picasso e Luís Miguel Nava, Nunes da Rocha e Nâzim Hikmet... Trata-se de uma empresa anticapitalista, que não fica com o
copyright das obras. Ademais, nunca reedita livros (com exceção do único que foi censurado em Portugal após o fim do fascismo, episódio contado nesta entrevista) - o dinheiro é pouco e sempre usado para livros novos.
Pouco depois de completar setenta anos, em julho de 2007, Vitor Silva Tavares concedeu a Fabio Weintraub e Pádua Fernandes esta entrevista na sede da editora.
K - Como surgiu a intenção de ser editor?
VST - Foi por mero acaso, que uma grande editora portuguesa [Ulisseia] de repente ficou sem orientação e alguém se lembrou de sugerir o meu nome, justamente porque sabia que eu era um leitor compulsivo, tinha adquirido uma razoável cultura literária, e não apenas literária, mas artística (meus interesses se alargavam para o campo das artes plásticas, do cinema e por aí afora). Fui aceito e lá fiquei por mero acaso, aliás, como quase tudo o que ocorre na minha vida. Creio, porém, ser do André Breton aquela frase que diz que a única coisa que não acontece por acaso é o acaso. Parece que tinha que ser.
K - Isso foi na Ulisseia. Mas antes disso houve o trabalho como jornalista.
VST - Sim. A minha estreia nos jornais foi da seguinte maneira: um jornal daqui de Lisboa, chamado Jornal do Comércio, abriu um concurso literário a que chamou "A oportunidade 202". Quem ganhasse o prêmio, além da publicação no jornal, recebia 202 escudos. Resolvi concorrer. Só que, em vez de mandar poesia, conto, enfim, literatura de ficção, mandei uma reportagem sobre pequenos delitos. Ali onde agora está a Biblioteca Camões funcionava o Tribunal dos Pequenos Delitos. Fiz uma reportagem sobre um dia de trabalho nesse tribunal. Escusado será dizer que ganhei os 202 escudos. Mais do que isso: ligaram do jornal para perguntar à minha mãe que idade eu tinha e se eu era bom estudante, ao que ela respondeu: "Não, é um vadio". Quando publicaram o texto, fizeram uma pequena nota que revelava minha idade (15, 16 anos), me aconselhava a prosseguir nos estudos e me dizia para não esquecer que eu tinha uma caneta de ouro. Abriram-me então espaço para eu continuar a escrever.
K - Conte-nos um pouco mais do seu encontro com o surrealismo e com os surrealistas portugueses.
VST - Tive conhecimento direto, pessoal, dos representantes do surrealismo português. Houve dois grupos, digamos assim, na história do surrealismo português. Um deles era algo folclórico, superficial, epidérmico. Uma cisão no interior desse primeiro grupo veio gerar o segundo, para mim o mais autêntico. Aquele que vem a juntar Mário Cesariny, que havia passado pelo primeiro (e lá continuou em parte), António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Henrique Leiria e outros. Como é que vim a conhecê-los? Sempre através da Ulisseia. Antes de entrar para a Ulisseia, fiz uma viagem a Paris (exclusivamente para procurar autores, livros, editoras) e lá comprei a História do Surrealismo, do Maurice Nadeau. Ao chegar a Lisboa, já na Ulisseia, convidei o Mário Cesariny para traduzir e apresentar o volume. Mal podia adivinhar que não se davam: Cesariny repudiava completamente o historicismo de Nadeau. Os surrealistas portugueses são alheios à historicidade. Não é papel deles se debruçar sobre a história, muito menos sobre a própria história. Portanto, a tradução não foi avante. Em compensação, Cesariny propôs a Ulisseia uma espécie de antologia por ele organizada, que eu publiquei sob o título
A Intervenção Surrealista [1966]. Uma antologia muito mais ortodoxa, bretoniana, seguindo a linha dos manifestos. Foi o primeiro livro surrealista que publiquei na Ulisseia. Em Portugal ninguém publicava os surrealistas. Era um pequeno grupo em ruptura com o neorrealismo vigente, que ocupava jornais, editoras em resistência ao fascismo. Ninguém publicava aqueles rapazes algo bizarros que andavam à noite a apanhar gatos em cima dos telhados e a os meter em caixas de papelão e outras coisas assim. Então eu botei a Ulisseia a serviço dos surrealistas portugueses, com quem tive contatos pessoais, nas noitadas, nas boêmias, nos cafés. De resto, há uma história interessante. Certo dia Cesariny chamou-me a um cafezinho para uma conversa. Lá fui eu. Ele, com o ar conspirativo, vozinha baixa, ao fim e ao cabo propôs-me entrar no grupo surrealista, um grupo fechado. Disse-lhe: "Sim, senhor. Mas quanto é que se paga por cota?" O que podia ser entendido como provocação foi logo secundado por uma gargalhada que cimentou um tipo de relação especificamente surrealista. A simples pergunta dava logo uma distância, digamos assim, dialética em relação ao movimento.
K - A África foi determinante para a formação de suas convicções políticas. Você voltou de lá politicamente diferente. Isso se deveu à sua atuação jornalística?
VST - Sim, em certa medida. Em 1959 fui a Benguela e, em março de 1961, rebenta a guerra em Angola. Quando começa a guerra em Benguela, os brancos vão à África do Sul comprar armamentos. Essa gente virava-se para mim, mostrava os bacamartes e dizia que, se chegasse ali a guerra, o primeiro a ser abatido seria eu, porque era mais preto do que os pretos. Naquela altura não percebia como tudo aquilo fazia parte da guerra fria, na competição por zonas de influência e por matérias-primas, pelas riquezas incomensuráveis do continente. Tinha ainda uma perspectiva humanista e lírica: via apenas o problema das independências nacionais, de povos que queriam se libertar da tutela de seus colonizadores. Sabia, porém, que os americanos estavam, grosso modo, por trás da UNITA [União Nacional para a Independência Total de Angola.], e sobretudo da UPA [União dos Povos de Angola], que foi o primeiro movimento a pegar em armas e lutar contra o colonizador.
K - Muito nos impressionou, na primeira vez que estivemos aqui, quando nos contou como eram recrutados os trabalhadores na África, e sua denúncia em relação a isso. Queria que nos contasse de novo essa experiência.
VST - O primeiro contato que tive com esses tais contratados foi no Porto do Bolito. O navio tinha acabado de atracar, eu ainda estava na amurada, com a pessoa que conheci na viagem - um engenheiro belga que trabalhava nas minas do Catanga, e que regressava ao trabalho. Perto da amurada, no cais, ficavam o capataz, uns sipaios, ou seja, polícias, e um conjunto de 30, 40 estivadores. Esses estivadores vinham presos com cordas nos pulsos e nos tornozelos, presos uns aos outros, numa longa fila. Perguntei ao conhecido o que era aquilo e ele me respondeu que eram os contratados.
Eu aqui, no liceu, nos livros de história, aprendera que Portugal havia abolido a escravatura, donde o meu espanto. Mais tarde vim a saber como era o processo. Conheci um indivíduo sinistro, um contratador, digamos assim, conhecido naquelas bandas pela alcunha de "Leão da Anhara", um tipo de leão que ataca, mesmo saciado. Ele pegava uns sipaios e, com uma ou duas caminhonetes, partia para o interior, levando barris com uma mistela de vinho, uma mistura com aguardente para embebedar aquela gente toda. Levava também uns cobertores chamados cambriquitos (as noites são muito frias no interior). Quando chegava na aldeia, distribuía vinho e cobertores. Horas depois estavam todos bêbados. Então ele e os sipaios pegavam os espécimes fisicamente mais fortes e os enfiavam nas caminhonetes. Quando os homens acordavam, estavam a centenas de quilômetros de distância de sua aldeia. Eram então levados aos postos administrativos do Estado onde os brancos fazendeiros, que precisavam de mão-de-obra, os compravam, pagando ao Estado um tanto por cabeça (o contratador recebia uma comissão). Uma determinada porcentagem de prisioneiros logo fugia (os que fossem apanhados eram abatidos a carabina). Suponhamos que o contrato fosse por um ano. Eles iam parar numa fazenda, em que havia somente uma cantina onde se abastecer. Sem noção do que era preço, do que era moeda, os contratados ficavam sempre a dever à cantina, que pertencia ao proprietário. Com isso, tinham que prolongar o tempo de contrato. Se por lei o contrato era de um ano, muitos ficavam por seis, sete, dez anos. Decorrido o tempo do contrato, o Estado comprometia-se a devolver a suas terras os indígenas que sobrevivessem.
K - Poderia falar novamente do artigo que você fez para O Intransigente denunciando as contratações e o que se seguiu, as pessoas que vieram tirá-lo do jornal?
VST - Sim, essa é uma cena de western. Não foi a única que tive. Esse episódio que eu contei cruza-se com outro. Não foi apenas eu denunciar uma determinada empresa, fazendeiros, a existência dos contratados. Isso estava consignado em todo o território. Suponho que também nas outras colônias. Já tinha começado a guerra lá no norte. Já os civis tinham partido para aqui e acolá para as tais incursões noturnas de vigilância. Eles atiravam sobre tudo o que se mexia, criando-se assim entre os brancos a ideia de que todo preto era um inimigo para abater. Chegou então ao meu conhecimento a informação de que, numa determinada fazenda, os fazendeiros tinham enfiado meia-dúzia de contratados - supostamente aliados dos terroristas -, em sacos com pedras e que os tinham atirado ao rio, onde eram estraçalhados por crocodilos. E é isso exatamente que eu denunciei, cruzando a questão dos contratados com essa violência suplementar (que, no meu entendimento, caracterizava genocídio).
K - Ninguém censurou o artigo?
VST - Num determinado período, a censura local ficou sem instruções de Lisboa, pois a guerra havia perturbado os serviços de vigilância na colônia. Aproveitei esse período de desatenção da censura para denunciar a política de contratação e o assassinato dos negros no jornal. Os contratadores também não fizeram por menos: armados, um pai e seus dois filhos, com chapéus sertanejos, foram me prender no jornal, enfiaram-me dentro de um carro, e me levaram aos arredores da cidade, para uma zona mais plana que servia de pista de aterrissagem de aviões de pequeno porte. Por essas alturas, minha ação como jornalista já era conhecida (e em parte apreciada) por algumas pessoas (não muitas) opositoras do regime de guerra. Eram meus protetores, digamos assim. Durante todo esse tempo, nunca usei, nunca trouxe comigo sequer um canivete, nada - eu só tinha a minha caneta. No sítio onde eu morava minha porta vivia aberta e a janela também. Numa pequena cidade onde tudo se sabe logo, assim que meus protetores souberam do que se passou no jornal, imediatamente tomaram providências. Assim é que, quando me meteram para o meio do terreno e me disseram que iam me abater, eu lhes disse: "Sim, sim, que atirem, faz favor, não vou oferecer resistência (e nem podia), me matem, e depois talvez tenham cinco segundos de vida. Olhem". E então olharam. Naqueles morros circundantes dessa pequena pista havia uma dúzia de carabinas de alta precisão direcionadas às cabecinhas deles. "De vocês, não vai sobrar nenhuma falangeta". E assim não morri.
K - A sua editora surgiu depois do 25 de Abril?
VST - Não, o primeiro livro, Coisas, é publicado antes de 25 de abril, em março.
K - Por falar em ditadura, conte-nos da sua peripécia com a ditadura militar brasileira no envio de livros...
VST - Uma distribuidora brasileira cujo nome já não lembro encomendou uma quantidade razoável do teatro do Picasso. Por quantidade razoável estou a me referir a uns 100, 150 livros, o que para o & etc era uma coisa enorme. A exportação foi um problema. Para além de todas as dificuldades burocráticas, retidos nos correios, na alfândega, os livros foram por fim enfiados em sacos de lona fornecidos pelos próprios correios, conduzidos a uma seção especial de onde seguiram para o Rio de Janeiro. Muitos meses depois, recebo um aviso dos correios para retirar uma encomenda no mesmo sítio de onde haviam partido os livros. Quando fui ver, esses mesmos sacos vinham com carimbos semelhantes aos da censura de cá, com dizeres de "proibido" e coisas assim. Ao abri-los encontro 30 ou 40 livros totalmente rasgados, estragados. Era um monte de papel estragado devolvido pelas autoridades policiais militares brasileiras que tinham, portanto, apanhado os embrulhos na alfândega. Tinham visto na papelada que eram do Picasso - há gente culta, claro, o militar brasileiro é normalmente uma pessoa bastante culta [risos]. Picasso, portanto, comunista. Na verdade, não podiam permitir que um comunista entrasse no Brasil. Ainda que fosse o teatro de Picasso, claro.
K - Ainda tenho uma pergunta, relacionada ao problema da censura. O senhor disse que, quando publicou o artigo denunciando as pessoas atiradas aos crocodilos, a censura portuguesa estava meio bagunçada. Mas como era nos períodos em que ela funcionava? O senhor submetia seus textos ao censor? O censor ficava no jornal? Havia censura local ou tudo passava por aqui?
VST - Não, a censura lá era autônoma, como a de cá. O edifício da censura era assim: a cúpula ficava em Lisboa e dependia diretamente da presidência do conselho. Em última análise, dependia diretamente do Salazar. Depois havia delegações espalhadas por todas as cidades do país, pois havia jornais regionais, espetáculos, coisas assim. Os casos mais bicudos, que as censuras locais não sabiam como resolver, eram encaminhados à sede em Lisboa. Nos jornais, a gente escrevia um artigo, o tipógrafo compunha e tiravam-se várias cópias, duas das quais iam logo para o Serviço de Censura. Uma cópia seguia para o responsável pela paginação e outra para os revisores. Por lei, era obrigatório enviar também, além do texto, quaisquer elementos gráficos que acompanhassem o artigo. No entanto, no & etc eu nunca mandei elementos gráficos, mas tão-somente os textos - sabendo que depois poderia sofrer sanções por isso. Posso lhes mostrar o que guardei da revista... não tenho jeito nenhum para organizar, mas... José Cardoso Pires, aqui, autorizado parcialmente.
"A burguesia intelectual é muito cosmopolita, muito cosmopolita, muito revolucionária, muito revolucionária, mas alimenta uma nostalgia tramada pela pax juris e servida com boas maneiras." [trecho censurado]
K - E acontecia de vocês conhecerem os censores?
VST - Não. Quando estive a dirigir o suplemento cultural do Diário de Lisboa, tinha acesso direto ao próprio diretor da Censura. Mas só a ele, não aos censores propriamente ditos. No entanto, houve uma exceção. A história é engraçada e tem a ver ainda com o & etc do Fundão. Ele tinha estado suspenso pela censura durante seis meses. Foi durante esses seis meses que eu, o escritor José Cardoso Pires, e o diretor do jornal, António Pauloro,
[1] nos reunimos para ver como é que era possível, quando o jornal retomasse a sua atividade, manter uma folha ou uma parte cultural, pois o jornal tinha estado fechado por causa de uma folha cultural. Para contornar as dificuldades que desde logo se anteviam, decidimos transformar o suplemento em magazine e chamá-lo de & etc, nome que não identificava nenhuma ação cultural determinada. A tática foi esta: "Nós não vamos entrar de leão, vamos entrar devagarinho". Tivemos então que escolher nomes para a primeira página. Para o primeiro número, escolhemos um velho professor universitário de grande prestígio intelectual em Portugal, o Ernani Cidade. Ele já tinha nessa altura quase 80 anos, senão mais. Fui falar com ele, que aderiu à ideia e ficou todo comovido. Quem mais? Havia também um poeta que vim a publicar na Ulisseia: José Blanquis de Portugal. Era um poeta raro, erudito, e que ocupava o cargo de subdiretor dos serviços meteorológicos nacionais. Também era musicólogo - fazia palestras na emissora nacional sobre concertos, música clássica etc.
Homem de grande cultura, com espírito e humor muito fino, muito matemático e também já com alguma idade. Fui falar com ele, que também aderiu à ideia. Deu-me um artigo adaptado de uma crônica que ele já lera aos microfones da emissora nacional. Os serviços de censura, bem como a emissora nacional, estavam subordinados à Presidência do Conselho. Mandei compor o artigo do Blanquis de Portugal e enviei-o à censura, que o devolveu completamente retalhado. Corri então para o diretor da censura, a quem disse: "O senhor sabe quem é este senhor? É o diretor dos serviços meteorológicos nacionais e colaborador da emissora nacional que, como o senhor sabe, depende diretamente do Dr. Oliveira Salazar. Ou esses cortes são levantados ou apresentarei imediatamente meus protestos ao Dr. Paulo Rodrigues!" Paulo Rodrigues era o secretário do Dr. Salazar para os efeitos de censura. Como quem tem cu tem medo, o homem ficou passado. Abriu exceção e mandou chamar o censor, com quem me sentei numa salinha. O censor era um velhote, tenente-coronel reformado, grande parte dos censores eram oficiais já reformados. "Qual foi o seu critério, por que é que cortou isto?" O homem não tinha resposta. "O corte é absolutamente arbitrário! Como é que o senhor vai cortar aqui, artigo para a emissora nacional?" Ele então foi levantando os cortes, deixando apenas uns quatro ou cinco, para defender a honra do convento. E é aí que entra a questão dos elementos gráficos. Arranjei uma gravurinha do século XIX - uma mãozinha com uma tesoura - que reduzi e apliquei na primeira página, quatro ou cinco vezes nos lugares onde tinha havido cortes. Aprendemos com a censura a ler os sinais gráficos. Tudo poderia constituir mensagem, subliminar, escondida. Era um jogo de gato e rato.
K - E depois desse primeiro número, em que havia o artigo do Ernani Cidade e do Blanquis de Portugal, o que continham os números seguintes?
VST - Depois os números foram se radicalizando, mas apenas quanto ao aspecto ideológico da intervenção. Nunca quis fazer nenhum boletim político, nunca estive ligado sequer ao partido comunista, logo, não tinha de estar a serviço desta ou daquela formação política. No contexto da cultura portuguesa, o magazine foi se radicalizando pela posição totalmente antiortodoxa, pelo lado polêmico (nomeadamente contra os medíocres escritores neorrealistas), bafejado com os oxigênios (algo anárquicos, mas muito vivos) que vinham dos maios de 68. Ele foi se tornando muito mais solto de linguagem, com um tipo de humor cáustico, tomando posições que os franceses já chamariam de contracultura. Eu, mais modestamente, utilizando tão-somente a língua portuguesa, dizia que estávamos a "mijar fora do pinico". Isso se repetiu posteriormente na revista já autônoma, que também se caracterizou pelo uso de uma linguagem desenvolta, aberta, não raro contundente; por não reconhecer ídolos intocáveis e, ainda durante a ditadura, por repudiar a autocensura. "Os filhos da puta que cortem" - nós dizíamos - "...e, mesmo assim, vamos protestar". Criamos muitas inimizades, mas também, sobretudo com gente mais nova, conquistamos muitas adesões. Uma parte desse espírito está no conjunto dos livros publicados pela editora. Quando noutras entrevistas me perguntam: "Que linhas segue o & etc do ponto de vista conteudístico?" - tenho grande dificuldade em responder. O mais fácil é apresentar o catálogo e pedir que tirem as próprias conclusões. As linhas de força estão patentes no catálogo. Não é uma, serão várias. Então qual é o denominador comum? O modo de produção. Esse é exatamente o mesmo hoje, como quando nasceu. E é esse modo de produção que é político. Porque é fácil fazer catilinárias contra a exploração capitalista, contra a globalização das multinacionais. Eu, em qualquer café, posso estar a falar três horas sobre isso e, entretanto, na minha vidinha, no meu comportamento, cá estou eu. Não é verdade? Ora, aqui temos outro modo de produção - aí está a resposta, a resistência, a resistência política. Aí também se notam certas coisas. O Lafargue que eu publiquei não foi apenas o da
Religião do Capital. No ano em que se comemorou o grande centenário do Victor Hugo, publiquei um livro do Lafargue que arrasa com o Hugo...
K - A lenda do Victor Hugo...
VST - ... a que eu pus o título
O anti-Hugo. A gente lê esse livrinho do Lafargue e desaparece o Victor Hugo como pai da humanidade.
K - Ainda sobre essa questão, o senhor publicou agora a Djuna Barnes [
O livro das mulheres repulsivas], que foi uma lutadora pelos direitos da mulher no século XX...
VST - ... herdeira das feministas americanas. E também dos movimentos gay, lésbico etc. Aliás, nesse aspecto, o & etc também tem uma componente muito forte. Basta ver que até a organização das lésbicas em Portugal tem contatos conosco. Temos no nosso catálogo uma, duas, três, quatro, cinco, seis lésbicas, grandes autoras. Assumidamente lésbicas, grandes minhas amigas. Essa é uma das tais linhas do & etc. Também aqui começamos a publicar a literatura homossexual (ou de homossexuais), numa altura em que ainda de certo modo isso era tabu. Temos cá também, desde o arranque, o
Livro Branco do Jean Cocteau (e com todos os desenhinhos, pois). É evidente que isso chocou o meio livreiro. Há pouco tempo, um crítico, a propósito da Adília Lopes, fez uma crônica no jornal em que, a certa altura, dá conselhos a ela, exortando-a a se afastar de uma família devassa da qual fazem parte João César Monteiro, do cinema, Luís Pacheco, Vitor Silva Tavares, o Manuel João, do Ena Pá 2000, uma família devassa. O que haveria na cabeça – ou nos cornos – desse publicista?
K - E por falar na resistência a certos livros, Alberto Pimenta, um dos poetas editados pela casa, contou-me da resistência ao
Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, livro que tinha comprometimento político explícito, contrário ao massacre dos iraquianos...
VST - É um livro maldito. A maior parte dos livreiros não o quis devido ao tema, embora não se trate de uma poesia panfletária. Não há no livro nenhuma retórica demagógica sobre a questão do Iraque. Trata-se de um tema terrível tratado por um poeta de maneira poética. Aquela paca imperialista não está apenas a cometer o genocídio, está a esmagar uma cultura que fazia parte do patrimônio da humanidade. Isto deve ter sido percebido pelas centrais de compras de algumas organizações livreiras. Tenho indicação direta disto e a transmiti ao Alberto Pimenta. Houve, sim senhor, boicote a esse livro. Mas esse é um dos papéis de intervenção de uma editora cultural através da poesia. Pimenta é um autor incômodo (sempre foi), um
outsider, alguém fora da redoma dos poetas que se leem todos uns aos outros, espreitam todos os umbigos uns dos outros. Pimenta está fora dessa campânula, e portanto está muito bem, acho eu. A amizade e a irmandade que nos une não assenta apenas no fato de termos ideias mais ou menos paralelas sobre a literatura e o papel da poesia, não, estende-se, abre-se ao mundo e entre a poesia e a nossa vida há uma interpenetração. Sem o público o que seria a poesia? Seria uma das belas artes, um tricô literário, se quisermos. Há gente que tem muito jeito para tricô literário, há muitos dotados. E a isso chamam poesia. Entendo muito mais a poesia como expressão de uma vivência, essa sim, muito rica e profunda de implicações, e que depois pode ter ou não ter expressão literária. Pedro Oom, um dos próceres do surrealismo português, começa um poema dizendo: "Posso escrever. Posso não escrever".
Há centenas, talvez milhares de, chamemos poetas, que escrevem, digamos, poesia, são conhecidos como poetas, publicam livros de poesia, são entrevistados como poetas, fazem viagens pelo mundo para lerem suas poesias. Eu a esses não chamo poetas. Em compensação, eu e o Alberto conhecemos muita gente, poetas de verdade, que não fazem nada disso, porque "pode não se escrever". Quando já para o fim, uma vez entrevistaram o Mário Cesariny e perguntaram-lhe: "Senhor Mário Cesariny, o senhor ainda escreve?" Ele disse: "Não, não, claro que não, a musa pôs-me os cornos, traiu-me como uma puta. Foi juntar-se a outros e a mim pôs-me os cornos." [risos].
K - E quanto aos autores mais jovens, como Manuel de Freitas?
VST - Ainda houve autores mais jovens do que ele aqui no & etc. Uma indicação de que a editora não se fossilizou, não se academizou, é a afluência de originais de meninos e meninas que ainda não têm 20 anos. Mas não temos aqui quotas geracionais - tanto publico um rapazinho que tem agora 22 anos como o Pimenta, que vai fazer 70 (eu já fiz). Publiquei até o
Diário íntimo, do Luís Amaro, em homenagem a um homem de 83 anos que levou toda a sua vida ao serviço dos poetas. Tendo sido ele funcionário da editora Portugália, e depois, muitos e muitos anos, Secretário de redação da Colóquio Letras, dedicou sua vida à poesia dos outros. Tão parco, tão pudico foi com sua própria obra, que subalternizou sempre o próprio trabalho, dedicando cuidado, atenção, carinho, ajuda a gerações de poetas em Portugal. Então o & etc publicou, no ano passado, a obra poética do velho Luís Amaro, independentemente de se poder dizer que é uma poesia que já não se faz. Mas o que é isso? Escolas literárias? Ah, são como as ondas. Vem uma, depois vai abaixo e aparece outra, volta atrás, avança...
K - Foi com esse espírito que o senhor publicou a
Eufonia, do Berlioz?
VST - Sim, senhor. Essa é outra das linhas do & etc: procurar pequenas preciosidades ou curiosidades literárias de autores que se notabilizaram por outras vertentes da criação artística. É o caso do Berlioz, conhecido como compositor romântico. Foi para mim uma grata surpresa poder publicar uma obra de ficção, ainda por cima futurista, do senhor Berlioz. A mesma coisa com Douanier Rousseau. O senhor Douanier Rousseau, o pintor, também tinha pecinhas de teatro. Publiquei então essa coisa deliciosa que se chama A vingança de uma órfã russa. E o lemos com um sorriso giocôndico, o mesmo com que vemos a sua pintura. Do mesmo modo o Picasso, que também escreveu teatro, e até poesia. Ou então são obras que os próprios autores, digamos assim, atiraram para uma espécie de gueto. Assim é que, de autores portugueses como João de Deus, publicamos, na contramarcha, um livro chamado
Criptinas. Ora, João de Deus foi um herói da grande poesia lírica portuguesa. Ele compôs um livro de iniciação à leitura, para a escola primária, uma cartilha chamada
Cartilha maternal. Foi enterrado com pompa nacional. Grande poeta lírico, amigo das crianças e tal. Esse livro
Criptinas é um livro de poesias eróticas... e quão eróticas, quem havia de dizer... A mesma coisa com o Guerra Junqueiro, o poeta da República, da pátria, dos símbolos, o Victor Hugo português, que também deixou um livro de poesias eróticas publicado por nós -
A porra do Luz Soriano.
K - Gostaria de aproveitar a sua menção à presença de peças de teatro no catálogo para que o senhor nos contasse um pouco da sua relação com o teatro.
VST - Havia comprado uma edição francesa de
A formação do ator, do Constantin Stanislavski... Pelo cinema já sabia muito bem o que era o Actors Studio - o senhor Strasberg e o senhor Kazan foram adaptar o método Stanislavski ao modo americano, somando-lhe Freud. Essas coisas eu já ia sabendo, e tive uma paixão assolapada por aquele faz-de-conta, que cresceu muito quando a Casa da comédia decidiu montar uma peça do Almada [Negreiros],
Deseja-se mulher, escrita há mais de 50 anos e jamais representada. Uma peça que ele, Almada, havia lido pela primeira vez num café de Paris, para ninguém mais ninguém menos que o senhor Federico García Lorca. E vim a trabalhar intimamente, diariamente, com o doutor Amado e com Almada para fazer esta peça. Foi um momento muito alto da vida do Almada. Ao cabo de cinquenta anos, ele via finalmente sua peça em cena. A maneira de o Almada se comunicar fazia com que muita gente o temesse - aqueles olhos enormes, aquele carão, a maneira tão recortada de dizer as coisas faziam com que ele parecesse um monstro. Não era. Era um menino. Em conversa comigo, certa vez falou-me (acho que deixou isso escrito em algum lugar) que um dia, quando ele era pequeno, o pai perguntou-lhe: "Filho, o que é que tu queres ser quando fores crescido?". Ele respondeu: "Quero ser pintor". E o pai: "Pintor é vagabundo". Ele: "Então, se não posso ser pintor, quero ser menino". [risos] Vou contar-lhes um pequeno episódio. Uma vez fui à casa dele. Ele fumava uns cigarros muito ordinários chamados Definitivos, que vinham na sequência de uma outra marca, chamada Provisórios. Nessa altura ele fumava Definitivos, que nem tinham filtro. Ele então pega o maço, tira o cigarrinho e diz: "Vou te contar a história da minha vida. É muito simples: eu antes fumava Provisórios, agora fumo Definitivos. Quer dizer, já cumpri o serviço militar". [risos] Vai daí, puxa da caixa de fósforos para acender o cigarro. Mas a caixa estava vazia. Dei-lhe então a minha. Ele a abriu, acendeu o cigarro, e quando ia ma devolver, eu disse: "Mestre, fique com ela". O homem ficou comovido até as lágrimas. Porque eu lhe tinha oferecido uma caixa de fósforos. Não era o valor das coisas, mas o gesto. Uma oferta é uma oferta, uma generosidade é uma generosidade; não se quantifica. Era como se lhe tivesse dado uma salva de prata ou qualquer coisa assim. Ficou comovidíssimo.
K - Como foi o seu primeiro contato com a literatura brasileira?
VST – O primeiro poeta brasileiro que eu nos meus, sei lá, quinze, dezesseis anos, por quem eu tive na altura uma grande paixão, pouco ou nada sabia da literatura brasileira, mas como tive uma namorada que trabalhava na Livraria Barateira, que tinha de tudo e mais alguma coisa, livros de segunda mão e tudo, um dia apanhei um livrinho e achei curioso o nome do autor: Catulo da Paixão Cearense. E já nessa altura eu gostava, pois passava na rádio, do Luís Gonzaga. Pronto. Já não lembro do título do livro, claro que não, mas comprei o livro e me encantou. E foi a partir do Catulo que comecei a interessar-me por poetas brasileiros. Até então eu não freqüentador da literatura brasileira. Não chegava cá, ou não estava à minha vista, eu não tinha me educado para isso. Estava no grau zero do conhecimento da literatura brasileira.E foi por esse nicho, Luís Gonzaga, "Vem cá cintura fina, cintura de pilão, cintura de menina, vem cá meu coração", coisas assim, que eu fiquei com a métrica do Catulo. Por causa do Catulo, fui depois comprar um livrinho pequenino, edição brasileira também, do Manuel Bandeira. Pronto. Só mais tarde é que tive mais informação do Brasil cultural, quer dos escritores, dos pintores, Cândido Portinari, é claro, que teve uma influência extraordinária, poderosíssima, no arranque do neo-realismo português. Pode-se dizer que o arranque das obras mais importantes do neo-realismo plástico português tiveram a nítida influência do Portinari.
Conhecendo mais o Brasil cultural, pega o Carlos Drummond de Andrade, pega depois o João Cabral de Melo Neto. De tal modo que estudantes da Universidade brasileira, não sei qual, vem cá a Portugal ao Teatro Tivoli com um arranjo cênico do Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto. Com esses estudantes estava o Chico Buarque de Holanda. Houve problemas com a censura e com a PIDE por causa dessa apresentação. Isso alertou muita gente para a obra de João Cabral de Melo Neto. E no Jornal do Fundão, o proprietário e diretor do jornal, António Pauloro, que tinha muita saída entre os imigrantes portugueses no Brasil daquela região que é Cova de Beira, o Jornal do Fundão lia-se muito no Brasil, por causa desses imigrantes. Era uma ponte cultural com o Brasil. Tanto assim que, quando vem a Portugal o Presidente Juscelino Kubitscheck, é convidado pelo António Pauloro a ir lá ao Fundão. E nesses convites que o António Pauloro fazia a personalidades brasileiras, quer políticas, quer intelectuais, normalmente ele fazia esses encontros nas festas de aniversário do jornal, uma vez foi convidado João Cabral de Melo Neto. E eu tive a ocasião de estar com ele lá no Fundão.
Mais ou menos por essa altura, nos anos 60, estava eu a fazer o Suplemento & etc do Jornal do Fundão, já tinha passado para o Diário de Lisboa com a parte cultural do jornal, quando o José Cardoso Pires me fala que no Instituto Alemão, o diretor do instituto, de nome Curt Meyer Clason, era um homem muito culto, tinha passado muitos anos no Brasil, tinha aprendido, e bem, a língua portuguesa do Brasil e, tanto assim, que a ele se devia a divulgação internacional "de um tal Guimarães Rosa". Ora bem: tinha eu também comprado, por mero acaso, um livrinho chamado
Primeiras Estórias. A primeira ediçãozinha brasileira. E tem um conto pequenino, "Famigerado", e descobri um grande autor da língua portuguesa, brasileiro, brasileiríssimo, mas vou rencontrar na linguagem de Guimarães Rosa, apesar das suas audácias estilísticas, um português vicentino puríssimo nas suas estruturas, puríssimo! Que encanto foi reencontrar a língua portuguesa através, finalmente, de um autor brasileiro e regional, digamos assim. Só depois é que veio o
Grande Sertão Veredas, bom. Mas comecei por esse
Primeiras Estórias e fiz publicar no magazine & etc "Famigerado".
Dando o salto para o Curt Meyer, o José Cardoso Pires estabelece o encontro e eu vou falar com o Curt Meyer. Além de amigo íntimo do Guimarães Rosa, seu biógrafo, era, sobretudo, seu tradutor. Por esses acasos do destino, estava finalmente a falar com o homem que mais contribuiu na Europa culta para que Guimarães Rosa fosse conhecido como o gigante que é da literatura brasileira e da literatura mundial. E devo a maior devoção e admiração pelo Guimarães Rosa finalmente a um alemão, o Curt Meyer. Nessas coisas da cultura cada vez mais nota-se que não há fronteiras, nem sequer fronteiras de idade. O Curt Meyer era um homem muito mais velho do que eu.
Esse Curt Meyer acabou por ser muito maltratado não pela inteligentsia local, mas pelo governo alemão, em conivência com certas autoridades portuguesas. Na verdade, ele imprimiu ao Instituto Alemão uma dinâmica cultural também sociológica, também política, que fez com que as autoridades alemãs e portuguesas acabassem por lhe tirar o tapete, insinuando-se, e não passou disso, que o homem havia tido na sua juventude ligações ao Partido Nacional-socialista alemão. Cá outro dia vos disse que há muitas maneiras de assassinar um homem, e esta é das mais cruéis, e das mais insidiosas. Ele deu a conhecer Brecht, Kurt Weil e coisas assim, e, nesses tempos, não era coisa muito bem vista, não senhor, nem de um lado, nem do outro. Pronto. Portanto, quer quer que houve essa motivação política para afastar o Curt Meyer, homem de grande cultura e um gentleman, um cavalheiro. Homem muito sabedor e muito amante do Brasil e profundo conhecedor da literatura brasileira, da cultura brasileira para além de Guimarães Rosa.
Não constitui grande surpresa quando, na editora Ulisseia, na coleção de ensaio, eu publico um livro, uma antologia organizada e prefaciada pelo Ernesto Melo e Castro, um homem cá pioneiro da poesia experimental, que chegou a fazer coisas em conjunto com o próprio Alberto Pimenta e a Ana Hatherly, os chamados experimentalistas, este livro chamava-se
Proposição 2.01 [1965], sobre a poesia gráfica, a poesia experimental, com o contributo para a língua portuguesa, poderosíssimo, importantíssimo, dos irmãos Campos. Pronto. Ele divulgou cá nessa antologia. E já uma literatura de vanguarda, minoritária, quer crer que, quando eu publico o livro cá em Portugal de poesia experimental, também relativamente poucos brasileiros tinham contato ou conhecimento com esse movimento que estava a dar. Quer crer. Suponhamos que é uma questão de escala: enquanto cá poderia haver 20, 30, 50 pessoas que se começavam a conhecer a dita poesia experimental, talvez no Brasil pudessem ser mil, mas o que é mil no Brasil? Nada. É uma gota no oceano.
K – Ontem achei
As metamorfoses do vídeo, de Alberto Pimenta, e o
Homo Sapiens...
VST – Puxa vida, onde é que vai achar essas coisas? É uma preciosidade, está muito bem.
K – Ainda havia páginas coladas no livro. No
Metamorfoses do vídeo, há um poema de Alberto Pimenta que se refere a batidas na porta: em determinada hora, é a leitaria, em determinada hora, são pedintes, e em certo horário, pode ser a polícia, que tem uma outra forma de bater. E se refere à apreensão do livro
O Bispo de Beja, publicado pela & etc em 1980. Poderia contar essa história, pois achávamos que em 1980 o fascismo já havia acabado...
VST – É caso único, que eu saiba, no Portugal já não-facista. Porque a apreensão desse livro e aquilo que se seguiu... Foi assim: eu tinha publicado na tal Coleção Contra-Margem umas obrazinhas subterrâneas, soterradas nas bibliotecas, no pó do olvido, obras laterais às obras mais conhecidas de certos autores etc, e foi buscar-se um velho opúsculo que serviu na altura até para a propaganda republicana, estávamos na monarquia em Portugal, era um poema satírico que se debruçava, tratava literariamente, de um caso que tinha dado um certo escândalo porque envolvia um tal de Bispo de Beja acusado de homossexualismo. Bom. Parece que a população de Beja tinha-se rebelado contra o Bispo de tal modo que ele teve de fugir para a Espanha. A Igreja Católica estava entrosada com o regime que, a esta altura, já sofria grandes embates. Os republicanos queriam mudar o regime etc. E, portanto, esse escândalo, de origem sexual, foi servir a um senhor para fazer uma sátira que aproveitava para agredir a Igreja e por em causa a própria monarquia. Nossa! Ao apresentar o livro, num curto prefácio, chegamos a dizer que, neste aspecto da temática sexual, se tratava de um livro reacionário. A visão do autor sobre o homossexualismo era uma visão reacionária. Está escrito. Foi assim publicado: tomamos essa precaução de apresentar o livro como mais um modelo da poesia satírica que, aliás, é uma das linhas que acompanha toda a história da poesia portuguesa, das cantigas de escárnio e maldizer, que atravessa os séculos e as histórias literárias. E, portanto, nós incluímos o livrinho, por estar incluído nessa direção, mas vendo desde logo que os objetivos eram propagandísticos da república com uma visão algo reacionária que, aliás, acompanhou toda a primeira república e a ditadura e etc, etc. Houve alguma abertura à temática homossexual no 25 de abril em diante. Antes disso, era completamente tabu. Pronto. E o historial de artistas, intelectuais, poetas perseguidos por homossexualismo não mais acaba. O próprio Mário Cesariny até foi preso e tudo. Ele foi preso em França e por homossexualismo. Nisso não estávamos sozinhos [risos dos entrevistadores].
Ora bem: estou eu aqui sentadinho e, de repente, vejo entrar por aquela porta nada menos do que cinco pessoas: quatro cavalheiros e uma senhora. Aproximam-se, perguntou-se onde é que estava o livro O Bispo de Beja. "O que é que se passa?" "Somos da polícia judiciária e temos um mandado de busca e apreensão desse livro que vocês publicaram". Vocês podem ter idéia da minha estupefação. Para o meu bem e para o meu mal, já tinha tido longa experiência do que eram as investidas da PIDE para levar livros. Na Ulisseia, não sei quantificar, mas foram dezenas de livros aprendidos. E acreditar que, já no Portugal pós- abril, pudesse estar a acontecer coisa do gênero... Então, automaticamente, e por causa da minha experiência anterior, a primeira coisa que eu faço é por-me aqui em pé: os polícias estão de pé e não quero vê-los sentado, de baixo para cima. Pus-me na altura deles, até mais alto, sentei-me em cima da secretária e disse "Tratem de se identificar. Quem é que me diz que são da polícia judiciária? Pode ser um bando de gangsters que vêm roubar livros". Identificaram-se, os crachás. "Agora, o mandado. Quem é que mandou?" Os senhores apresentam-me um documento do Ministério Público. Leio atentamente, faço passar o tempo, após a leitura e digo par ao grupo: "Vocês não têm vergonha? Vocês estão utilizar em papel químico, a maneira como entraram e como se apresentaram, a atuar como os vossos colegas da PIDE". Então o chefe disse: "Alto lá! Isso é ofensivo. Nós não somos da PIDE." "Estão a atuar em papel químico de vossos colegas da PIDE. O que é que faz? Prendem-me? Fuzilam-me?" Isto era uma coisa inaudita. Eu não podia aceitar de modo nenhum. Pois se eu, nos anos anteriores ao 25 de abril, enfrentei a PIDE, nunca lhes dei de mão beijada coisa nenhuma, como é que agora, em situação de liberdade, ia aceitar uma coisa dessas? Estava a passar isso, estavam ali sentados naqueles degrauzinhos o Herberto Helder e o Paulo da Costa Domingos, que nessa altura trabalhava muito comigo dentro da & etc. E eu lanço um olhar ao Paulo da Costa Domingos que, rapazinho, tinha me acompanhado várias vezes à censura. Eu tinha alguns pacotes, que estavam ali atrás, onde eu tinha um divã. Esse meu olhar par ao Paulo era muito significativo e e ele apreendeu logo o que esse meu olhar queria dizer. Entretanto, digo ao inspetor "E se eu não entregar os livros, o que me acontece?", diz o tipo: "Escaqueiro-lhe esta merda toda". "Sim, senhor. Quem fala assim não é gago." Pego o telefone e disco para o Diário Popular. Estava lá um prosador, escritor e grande jornalista, ainda vivo, que é o Batista Bastos, e eu digo "Oh Batista Bastos, queres saber de uma coisa? Tem aqui na minha frente cinco agentes da polícia judiciária, me assaltaram aqui a editora para retirar um livro, "O Bispo de Beja", que eu publiquei". O outro começou aos gritos a zoar, não queria acreditar: "Como pode ser?", "Exatamente assim, como nos tempos da PIDE. Um mandado de apreensão." "Vou já tratar disso." E desliga o telefone. "Um momentinho, antes de lhes dar os livros, vou-lhes dar os livros." Ligo para o Diário de Lisboa, onde eu já tinha estado. O chefe de redação era meu amigo Cássio Barradas. Eu disse a mesma coisa que eu tinha dito ao BB. A reação dos gajos que tinham entrado de leão, "escaqueiro-lhe esta merda toda", já estavam mais conciliadores. E dialogantes. "Então digam lá. Isto foi por certo uma denúncia. De onde partiu a denúncia?" E o homem diz: "Oficialmente não sei, nós recebemos ordens", "Essa de receber ordens é também papel químico, como é o óbvio. É claro que sim." Diz o homem: "Não sei, mas eu suponho que a denúncia partiu justamente lá de Beja.", "Já me chega. Sim senhor, agora vou dizer uma coisa: vão levar os livrinhos, façam-me o favor, eu assino. Mas lhes digo uma coisa: de todas as vezes que a PIDE me apreendeu livros, em todas as vezes eu fui apresentar meu protesto por escrito à direção da PIDE. Nunca ganhei. Nas duas exceções em que a PIDE reconheceu que realmente não havia razão objetiva para terem recebido ordens para retirar o livro A ou o livro B, então disse dêem-me cá os livros, ou vou lá buscar. E a resposta foi sempre esta: infelizmente, já não podemos devolver os livros, pois a gente mete os livros lá no subterrâneo, que está cheio de ratos, baratos e umidade, e os livros, portanto... Vocês vão levar o livrinho, já comecei a protestar, e podem ter a certeza de que não vou ficar por aqui. Isto para mim é uma coisa completamente inaceitável. E, portanto, quero de vocês a garantia de que esses livrinhos que eu entendo como um assalto, um roubo, que esses livrinhos são meus, quero-os devolvidos nas mesmas condições em que os levam, e não quero ouvir depois que foram a um lugar muito úmido e com ratos e baratas." E partiram porta afora. A imprensa no dia seguinte dá grande destaque ao assalto à pequena editora & etc, ainda estava fresca a memória da censura, e havia mais jornais do que agora, e desde jornais da extrema esquerda, "Voz do Povo", até jornais já conotados com a direita, todos foram unânimes no protesto contra este atentado à liberdade, ao livro. Aparece aqui uma equipe da televisão. Fez uma entrevista. "Sabe de onde veio a denúncia?", "Ouvi uns zunzuns de que eventualmente teria partido da cidade de Beja." No dia seguinte, no telejornal não saiu nada. O que é que eu pensei? Bom, censura interna, me entrevistaram para nada. Já na rádio, não, sou entrevistado. Em auto-entrevista para o Diário de Lisboa, atribuo ao momento político que estávamos a passar, em 1980 tínhamos um governo de coligação da direita chamado ADE, Aliança Democrática, que se apresentava como uma democracia musculada. Bom, como sabem, tenho pouco músculo e não gosto muito de democracias musculadas. Bom, atribuí isso ao estado geral do país, a um governo da direita que permitia um estado de coisas que começava a se insinuar em toda sociedade portuguesa e esse era apenas um reflexo dessa tal democracia musculada, aproveitando para dar a dentada que pude ao então responsável pela cultura e atual grande publicista, Vasco Pulido Valente
[2]. Eu atribuí essa apreensão como um balão de ensaio para a instauração da tal democracia musculada.
Passam 4 ou 5 dias, recebo um telefonema da televisão. O rapaz, chefe da equipe, que tinha estado a me entrevistar, tinha ido a Beja, mal tinha acabado minha entrevista, tinha feito lá uma inquirição e tinha filmado as declarações do denunciante: um padre. E, se eu quisesse ver, tinha eu eventualmente o direito de resposta. Enfiei-me num táxi, a jato, para os estúdios da televisão, e lá fui ver a entrevista com o padre, a dizer entre outras coisas, que estava perfeitamente bem com a sua própria consciência e que voltaria a fazer as mesmas coisas. Eles ainda pretendiam lançar essa peça filmada no telejornal, e comigo em direto. Mas houve uns mercenários lá em cima e é evidente que a direção da televisão não me quis em direto. Encostaram-me à parede e filmaram-me com meu direito de resposta lá ao padre.
Entretanto, pego um processo, evidente, por abuso de liberdade de imprensa e isto e aquilo. Sou chamado várias vezes à Judiciária. A certa altura descobri, depois de vários interrogatórios, que o inspetor da Judiciária era ainda mais anticlerical do que eu. A certa altura, eu comecei a exasperar-me com as perguntas. O delegado do Ministério Público nunca estava satisfeito. A Judiciária mandava o relatório dos interrogatórios comigo e o gajo mandava perguntar uma coisa completamente diferente. Entretanto esse meu advogado entrou em contato com o delegado do Ministério Público que lhe diz o seguinte "Pode dizer a esse seu cliente que ele nunca mais vê os livros. Porque eu prefiro queimá-los a devolvê-los." Quando meu advogado me disse isso, "queimá-los", não sei bem o que me recorda essa de queimar os livros... Ora bem. Chega um momento em que o advogado disse que o processo está organizado. E que está na vara tal do Tribunal da Boa Hora. E eu vou lá com ele e vou cometer uma das maiores asneiras de minha vida. Os funcionários procuram naquele monte infindável o processo e não acham: "de processo do Bispo de Beja, nada". Em altos berros, digo dentro do tribunal: "Ou o dito processo aparece dentro de 24 horas ou vou outra vez para a televisão e para tudo que é jornal dizer que mistério é esse no Portugal democrático onde processos desaparecem, que nem sequer foram julgados, desaparecem dentro do próprio tribunal."
Vinte e quatro horas depois, o processo, milagrosamente, tinha reaparecido. Qual foi a asneira? Eu vou a um corredor do tribunal, sento num banquinho e vou ler o processo todo. E descubro finalemtne que o juiz tinha até mandado arquivar. Mas me esqueci de fotocopiar aquela tralha toda. Não fiz, esqueci. Mas, de qualquer modo, eu li o processo. O padre passou numa livraria qualquer em Beja e viu o livro. Primeiro, foi à polícia. E a polícia é de segurança pública, não fez nada com aquilo: "fala com o Bispo lá de Beja". E o bispo aconselhou o padre, ele lava as mãos, como se não fosse bispo, e aconselhou o padre a mandar as coisas para Lisboa para a Conferência Episcopal que é o lado administrativo da Igreja Católica. A Conferência Episcopal pega naquilo, não sabe o que há de fazer, e manda para o Cardeal patriarca, que também não sabe. Nenhuma dessas entidades aparecia como acusadora. Mas a polícia de Beja pega no livrinho e manda para o comando de Lisboa. O comando também não sabe o que há de fazer, é polícia de segurança pública, pega naquilo e manda para o Ministério Público. O Ministério Público que tinha lá um jovem delegado em princípio de carreira, que entende que tinha ali um caso bom, que lhe daria notoriedade, vinha muito ao encontro das idéias já vigentes sobre o Portugal como deve de ser na tal democracia musculada, "o que é isso, ofensa grava à Igreja Católica, e ainda para mais o homossexualismo e mais não sei o quê", e resolve, qual Joana d'Arc, tomar posição, querendo levar o processo até o fim. Ele realmente conseguiu. O processo acabava com despacho do juiz, "arquive-se". Não havia, ao fim e ao cabo, acusação formada tecnicamente, porque as entidades eventualmente ofendidas, a saber, a Igreja católica, tinham tirado as mãos para não serem escaldadas. Logo, o tipo não tinha base. Então, sou informado pelo meu advogado, numa certa manhã, que estando a decorrer audiência de julgamento no Tribunal da Boa Hora, velho edifício num velho convento, portanto com seu claustro interior, os tais livrinhos, que a polícia judiciária tinha enviado para o Ministério Público, o tipo pega neles, rega-os com gasolina, ateia o fogo e me disseram que fez uma fumarada negra de tal modo que saiu muita gente a tossir das salas da audiência, juiz, réus e polícias.
K – Em pleno tribunal?
VST – É verdade, foram queimados em pleno Tribunal da Boa Hora. Os livrinhos que a polícia judiciária levou. Mas tinha dois pacotes e o Paulo pega neles, eu estava a fazer a conversa toda com os gajos, e o Paulo mete-os para baixo do divã. Como foi caso único, desde o 25 de Abril até agora, essa é uma das medalhas desta pequena editora. Parece impossível como essas coisas acontecem aqui. Uma editora sem grande expressão, sem grande nome, nada disso. Post scriptum: no dia seguinte a ter estado aqui a brigada da judiciária, aparece aqui um polícia de rua, de segurança pública com uma cópia do mesmíssimo mandato. Ou seja: o delegado do Ministério Público foi tão eficiente que manda o mandato para a polícia judiciária mas também par ao comando da PSP. Aí já não deu para a zanga que tive na véspera... Ora meu senhor, a nova PIDE já levou isto para fora. Não há aqui nenhum. É preciso assinar alguma coisa? Eu assino já, que é para o senhor mostrar serviço. Não bastava uma: duas polícias, duas! Uma coisa tão estúpida.
Claro que os jornais me apoiaram muitos, escritores, os suplementos culturais etc. Mas notei o seguinte: na maior parte dos apoios, havia um denominador comum, que era assim: isto é uma coisa admissível, mas o poema em si nem vale como objeto literário. Dentre os indivíduos que se solidarizavam comigo, estava o escritor e poeta Fernando de Assis Pacheco, com quem eu tinha trabalhado no Diário de Lisboa. E quando eu vejo o Fernando de Assis Pacheco repetindo naquela tecla, na tal auto-entrevista para esse jornal atiro-me a essa gente toda e em particular ao Fernando de Assis Pacheco, com o seguinte argumento de que estava a dar para as autoridades que me apreenderam o livro, a dar de bandeja um argumento que só pode funcionar contra mim, contra a editora, contra a liberdade de publicar. Não senhor, é um grandissíssimo poema. Se não fosse um grande poema, nem provocava as reações que está a provocar. Foram dar o argumento de ouro de que aquilo era uma porcaria, portanto a intenção do editor... O Assis ficou muito chocado comigo, foi confidenciar a amigos comuns que não esperava que eu fosse reagir daquela maneira, ficou mesmo muito magoado, até mais porque o texto dele era de completa adesão a mim e à editora, só que também saía com esse argumento. Eu tive a ocasião, já passada toda essa turbulência, de falar com o Fernando de Assis Pacheco e recordar-lhe o seguinte: Fernando, como jornalista profissional, atravessaste todo o tempo da censura, o que foi a batalha do Diário de Lisboa e minha, em particular, contra a censura e tudo o mais. Tinhas o dever de teres raciocinado um bocadinho. De não escorregares nessa da análise literária quando estamos aqui num caso político. Tinhas o dever, como eu, de não fornecer de modo nenhum de bandeja argumentos ao inimigo. Não é nada pessoal, aprecio-te muito. É evidente que se trata de um caso político.
O & etc nunca fez reedição nenhuma. Exceto essa. Estava ainda portanto a correr o processo contra mim por abuso de não sei quê, eu resolvo voltar ao local do crime e reeditar o livro. O primeiro nem tinha nenhuma alusão ao caso passado em Beja. Mas como eu já tinha em meu poder uma caricatura de um caricaturista de nome em Portugal, se não me engano Francisco Valença
[3], que mostrava o dito Bispo em Madame Pompadour a frente de um espelho botando rouge e pó de arroz e com meias de senhora e rendinhas. Uma caricatura que havia passado no início da ditadura, em 1910. Essa caricatura eu pus na capa da reedição, indicando que tinha passado livremente em jornais no início da república. E já lá pus como apresentação essa história do delegado do Ministério Público e as posições tomada, claro, por jornais. um editor solidário comigo veio propor uma co-edição de cinco mil exemplares. A minha resposta foi, como é óbvio, nem pensar. Podem em acusar de tudo menos de, por causa de um escândalo desses, estar eu agora a explorar comercialmente. Não, isso é um caso político. A reedição é uma reincidência. Se me vão acusar, tem que me acusar pior, pois sou reincidente. Era um desafio às autoridades. Nessa altura ainda havia jornalistas nos jornais, e a maior parte dele tinha sentido na pela a censura. Se fosse agora, desconfio que não teria repercussão nem a solidariedade da classe porque os jornalistas já foram metidos na prateleira, amordaçados, ou atirados para outro emprego.
K – A reedição não lhe rendeu nenhuma sequela jurídica?
VST – Claro que não. Eles não estavam à espera de uma resposta tão rápida e agressiva. Eu fui ao ataque, acusei o governo.
Notas
[1] Escritor e jornalista, nascido em 1915, opôs-se ao regime salazarista. Foi eleito deputado em 1986.
[2] Licenciado em Filosofia, ele é atualmente cronista na imprensa portuguesa. Foi Secretário de Estado de Cultura em 1980 e publicou, entre outros livros, Retratos e Auto-retrato" (1997) e "Um herói português: Henrique Paiva Couceiro" (2006).
[3] Francisco Valença (1882-1962), ilustrador e caricaturista, fez desenhos também para publicidade.