Escrevo como um ouvinte órfão. Descobri Dietrich Fischer-Dieskau, que morreu ontem, aos 86 anos, somente na minha graduação, quando conheci um colega mais novo que admirava intensamente o cantor. Comprando discos usados nos vários sebos de lp que existiam no Rio de Janeiro no início dos anos 1990, e depois discos compactos, fui conhecendo seu repertório. Ouvi Schubert primeiro com Ely Ameling (em uma ótima coleção para bancas de jornais), mas o texto para ela não tinha tanta importância quanto para Dieskau, e o
Lied, a canção alemã, não é nada sem o texto.
Não que o texto seja sempre bom nesse gênero; Schubert escreveu alguns de seus melhores
Lieder sobre uns poemas sentimentais que não seriam lembrados sem a música. O compositor (e o intérprete) podem transfigurar eventuais fraquezas do poeta, e quando Schubert descobriu Heine, por exemplo, no
Canto do Cisne, os resultados foram incomparáveis; ouçam a canção do duplo,
"Der Doppelgänger".
Dieskau gravou todos os
Lieder de Schubert para voz masculina, e interpretou o ciclo
Winterreise (Viagem de inverno), uma das maiores obras da música de todos os tempos, diversas vezes (com oito gravações de estúdio dessa obra segundo
The Guardian) ao longo das décadas de sua carreira, que durou do final dos anos 1940 até o início da década de 1990.
No entanto, é muito redutor caracterizá-lo como essencialmente um intérprete de Schubert: cantor de vocação intelectual (ele é autor de diversos livros, autobiográficos e sobre música) e enciclopédica, conferiu-se a missão de gravar as canções para voz masculina de Brahms, Liszt, Schumann, Hugo Wolf... Hermann Prey, o outro grande barítono alemão de seu tempo, também teve uma ambição de cobrir o vasto campo da canção clássica, porém não pôde deixar uma discografia tão imensa.
Dieskau era um grande músico (o que o levou a dedicar-se à regência, campo em que não logrou destacar-se), o que nem todas as grandes vozes são. Luciano Pavarotti, por exemplo, destacava-se mais pelo esplêndido instrumento vocal do que pela inteligência musical. Com Dieskau podia ser o contrário, e a maestria do músico em geral impressiona ainda mais do que a beleza da voz. No
obituário escrito por Christophe Huss, é contada a conhecida história da audição do então jovem cantor com Furtwängler, já em seus últimos anos de vida. Dieskau levou para a audição os
Quatro cantos sérios, de Brahms, obra que exige enorme maturidade interpretativa, e o maestro, a princípio reticente com a ousadia, maravilhou-se com a interpretação. Depois, gravaram Wagner (o Kurwenal de
Tristão e Isolda, ópera que voltou a gravar décadas depois - ele atravessou gerações de regentes, de Klemperer a Barenboim - com Carlos Kleiber) e Mahler (
Lieder eines fahrenden Gesellen) - este último compositor, por instigação do barítono, pois o grande regente alemão, bastante conservador no repertório (e na composição), não se interessava por ele.
Dieskau tinha sua grande inteligência musical, uma grande compreensão do texto literário (não por acaso, era também escritor) e isso certamente contribuiu para que continuasse na música como regente, depois de aposentar-se como barítono em 1992. Nunca o ouvi nesse tipo de atuação, mas sei que não logrou destacar-se nessa atividade como conseguiu na de cantor (ao contrário de um René Jacobs).
A voz, que não era grande, era decerto inconfundível e formada por uma grande técnica vocal.
Neste Mahler, "Der Tamboug'sell", que cantou décadas depois sob a regência de Hans Zender, pode-se ouvir o grande controle dinâmico que mantinha sobre sua voz, sua
mezza voce não como simples ornamento ou gratuito exibicionismo vocal, mas como recurso comandado por uma inteligência interpretativa ímpar. Alguém imagina, por exemplo, o Tita Ruffo cantando suavemente (em regra, é muito mais fácil gritar uma nota aguda do que cantá-la na nuance piano) dessa forma?
Sua posição na EMI e, depois, na Deutsche Grammophon, não deixou de causar animosidades com outros cantores: assim, Christa Ludwig, uma das maiores cantoras do século XX, queixou-se de que desejava gravar mais Schubert, porém a gravadora queria fazer a milésima gravação de Dieskau (de fato, algumas canções podem ser ouvidas em mais de dez versões com esse cantor).
No entanto, às interpretações cada vez mais requintadas de Dieskau, pode-se muitas vezes preferir as de Hermann Prey, e um desses casos é
Die schöne Müllerin (A bela moleira), primeiro grande ciclo de Schubert.
Fischer-Dieskau, em seu
livro de memórias, escreveu que "Callas tinha a Tebaldi; Karajan tinha Bernstein" e ele tinha Prey, que morreu em 1998, ainda atuante como cantor. Os dois barítonos "rivais" são muito diferentes: Dieskau se orienta mais evidentemente pelo texto (e o seu canto tem muito de parlato (leiam o
obituário do Euterpe) e sua voz é mais tenoril; Prey, por sua vez, com um instrumento mais robusto, parece mais espontâneo. Ouçam Prey neste momento tranquilo da
Viagem de inverno, "
Der Lindenbaum", e Dieskau,
com Brendel no piano.
Os dois cantores gravaram juntos, e é instrutivo ouvi-los assim. Lembro agora de três óperas de Mozart,
As Bodas de Fígaro, com Karl Böhm na regência: Prey cantou Fígaro e Dieskau, o Conde;
A flauta mágica, com o maestro Solti, em que Prey interpretou Papageno e Dieskau, o Orador;
Così fan tutte, por Jochum, em que o Don Alfonso de Dieskau provoca o Guglielmo de Prey.
São duas formas diferentes de pensar a música. A de Dieskau parece-me torná-lo no intérprete ideal de Hugo Wolf e sua combinação tão sofisticada de música e texto. Lembro como foi uma revelação para mim ter ouvido a caixa de Dieskau com oito discos dos
Lieder desse compositor. O pianista foi um de seus parceiros preferidos dos anos 1970, o também regente Daniel Baremboim.
Aqui, pode-se ver a classe infinita de Dieskau em
três Lieder de Hugo Wolf que concedeu como bis neste concerto com o pianista Hartmut Höll, frequente acompanhante do final de sua carreira como cantor. É admirável a forma como diz "Da scheint der Mond" em "Der Tambour", bem como todo o melodioso "Gesang Weylas", com a solenidade de "Uralte Wasser" e, no verso final, o sábio contraste, desejado pelo compositor e difícil de ser atingido sem exageros pelo intérprete, entre "Könige" (reis) e "Wärter" (servos) na frase final.
No campo da música de câmara, Dietrich Fischer-Dieskau destacou-se sobretudo no repertório alemão. Sua curiosidade intelectual o fez gravar até as canções de Nietzsche, disco que eu gostaria de ter e está fora de catálogo. Em geral, ele não é interessante cantando a canção francesa.
Também no campo da ópera, ele é melhor no repertório germânico. Mesmo aí, há alguns senões. Ele decidiu que, por meio da técnica, conseguiria interpetar com a voz de barítono lírico que ele possuía papéis para vozes mais amplas e mais pesadas. Nisso, conseguiu alguns resultados interessantes, e outros que não chegam a ser curiosidades. Ele por vezes tentava compensar a eventual inadequação vocal enfatizando excessivamente certos detalhes, abusando de
Sprechgesang (até em Verdi, o que é, no mínimo, exótico), pegando notas por baixo (o que podia comprometer a afinação)...
Neste vídeo, podem-se ver
várias fotos dos papéis operísticos do cantor, enquanto o ouvimos cantando uma de suas especialidades (e uma de minhas árias favoritas), o Conde de Almaviva de
As bodas de Fígaro.
Lembro aqui do que eu gosto, e isso inclui três óperas de Verdi, a que vou dar mais destaque tendo em vista os preconceitos etnocêntricos que entram em cena quando alemães cantam repertório italiano e vice-versa. Há quem torça o nariz para o
Rigoletto que gravou para Kubelik com os grandes cantores italianos Renata Scotto e Carlo Bergonzi; eu gosto muito, por causa dos mil detalhes de sua interpretação. Se a voz não se pode comparar, por exemplo, a de Robert Merril nesse repertório, a inteligência do cantor também é incomparável. Rigoletto, na voz de Dieskau (como também na de Gobbi), não é só um bufão, mas também um pai, que é ultrajado,
mas também consolador.
Digo o mesmo de
Falstaff, na iconoclástica gravação que fez com Bernstein - é sutilmente hilariante ao exclamar (iludido) "Alice è mia!", é simultaneamente delicadíssimo e profundo seu "
Quando ero paggio"...
Ainda melhor acho que foi seu Marquês de Posa no
Don Carlo, composto a partir da célebre peça de Schiller. O papel foi sua estreia em ópera, e ele a cantou tanto em alemão quanto em italiano. Não sei se o fez em francês (que é o original,
Don Carlos foi escrito para a ópera de Paris). Vejam o
dueto de amizade (um tanto cortado neste vídeo, mas o incluo para que vejam o barítono ainda jovem), em alemão, com o grande tenor James King como Don Carlo.
Dieskau gravou em estúdio o Posa para a que talvez seja a melhor versão em italiano dessa ópera, a de Solti. Os outros cantores também são estrelas: Renata Tebaldi, Grace Bumbry, Carlo Bergonzi, Nicolai Ghiaurov, Martti Talvela. Mas, quando volto a essa gravação, é principalmente por causa do barítono. Esse papel pode ser cantado perfeitamente por uma voz como a dele, e Dieskau, além de adotar posturas diversas para o personagem (um grande ator, sem dúvida) nas cenas na corte, mais formais, com o amigo Carlo e com o rei, faz uma das mais convincentes cenas de morte em todas as óperas, depois que Posa é baleado ao visitar Carlo na prisão: "O Carlo, ascolta". Não achei essa ária, mas a anterior, "
Per me giunto è il dì supremo".
No repertório germânico, acho-o incomparável ao menos como o trovador Wolfram da ópera
Tannhäuser, de Wagner. Ao contrário do que curiosamente diz o
obituário em Le Monde, ele não tinha voz para um papel de baixo-barítono como Wotan (pôde fazê-lo, no entanto, em
O ouro do Reno, com Karajan, que escolheu, em geral, cantores com vozes mais leves do que o esperado). Mas o que torna o barítono um cantor de Lieder magistral permitia que fizesse um Wolfram - um
personagem cantor e poeta - excepcional.
O extenso obituário publicado em
The New York Times conta como Dieskau foi obrigado a integrar-se a Wehrmacht, e teve seu irmão morto pelo Estado nazista. É curioso ler que seus imensos dotes musicais fizeram com que os americanos não o quisessem repatriar para a Alemanha...
No tocante aos períodos musicais, creio que Dieskau era bem mais feliz na música contemporânea (os textos que indiquei lembram dos compositores que escreveram para ele, como Britten e Aribert Reimann e mais uma
série de estreias de obras novas, que mostram o impacto do grande barítono no meio musical) do que no barroco. Em Bach ele não soa nada autêntico, tampouco em Händel: sua coloratura é laboriosa demais, a interpretação raramente soa natural. Hans Hotter, que tinha uma voz bem maior do que a de Dieskau, mostrava-se muito mais ágil na parte final de
Ich habe genung, cantata de Bach - e cantava Wotan e o Holandês de Wagner, o que Dieskau nunca pôde fazer muito bem. Pode-se também gostar mais do
Winterreise com Hotter...
A propósito, uma anedota que é contada por Robert Craft. Na gravação da
Paixão segundo São Mateus com Otto Klemperer (que está bem longe das pesquisas musicológicas de hoje...), o barítono queixou-se da lentidão dos andamentos do maestro. Klemperer, que o chamava de "Fieskau", disse que iria pensar. No dia seguinte, Fischer-Dieskau disse que sonhou com ninguém menos do que Bach, que teria concordado que estava lento demais. Klemperer deu o troco na sessão seguinte, revelando que também havia sonhado com Bach - e que o compositor havia dito que nunca tinha ouvido falar desse cantor! Tal era a mordacidade de Klemperer.
Uma das obras contemporâneas que interpretou,
Preghiere, foi composta por Dallapiccola sobre textos de Murilo Mendes (traduzidos por
Ruggero Jacobbi) - com quem o compositor italiano teve uma
empatia instantânea. Creio que esse foi o único poeta brasileiro que Fischer-Dieskau cantou, peço para que me corrijam se estiver errado. Os poemas musicados, de
Poesia liberdade, foram "Voto", "Desejo" e "A tentação". Os três manifestam o cristianismo visionário ("Ao sopro da transfiguração noturna/ Distingo os fantasmas de homens/ Em busca da liberdade perdida:") e provocador de Murilo:
"Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz".
Ouçam a intensidade de Fischer-Dieskau. Ele está à altura dessa poesia.
Quem quiser aproveitar duas horas com o cantor e ainda não têm seus discos e vídeos, pode vê-lo interpretando Mandryka na ópera
Arabella, de Richard Strauss, com a melhor intérprete do papel-título, Lisa della Casa. O maestro é Keilberth. Depois, ele ainda gravaria essa ópera com sua segunda esposa, e hoje viúva, a grande soprano Julia Varady.
Escolhi, porém, "O adeus", última parte de
A canção da terra, de Mahler, para despedir-me hoje do cantor. Depois, escolherei outro repertório para reencontrá-lo - tarefa para toda a vida.
Nesta ligação, temos essa obra inteira de Mahler, ao vivo, também com Keilberth na regência e ninguém menos do que Fritz Wunderlich cantando os solos do tenor.
Ewig, ewig...