A impressionante entrevista que Mônica Bergamo fez com o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux (
http://www.osconstitucionalistas.com.br/luiz-fux-querem-me-sacanear-o-pau-vai-cantar), publicada no último 2 de dezembro, tão reveladora do que é o Judiciário brasileiro, pareceu-me ecoar a que foi publicada há pouco, também na
Folha de S.Paulo, com Ayres Britto, aposentado compulsoriamente quando era presidente daquela corte.
A entrevista de Ayres Britto gerou reações contra o que se caridosamente chamou de "analfabetismo científico" do magistrado (em texto do físico Marco Knobel:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/81335-abuso-quantico-e-pseudociencia.shtml). Mariano Amaro já havia escrito a respeito um "Memorial de Ayres" no mau sentido:
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-72/esquina/memorial-de-ayres. Também no caso de Fux, carreirismos à parte na sua busca ecumênica de padrinhos políticos (ele é um homem que bem representa o espírito de seu tempo), temos a puerilidade intelectual, explícita na leitura e estudo de algo como
Nietzsche para estressados.
A respeito do nível intelectual não exatamente notável de magistrados no STF, já mencionei aqui e alhures erros primários de história do Brasil (com alta gravidade política e jurídica:
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/03/desarquivando-o-brasil-xxviii-anistia.html) e de filosofia do direito (
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/08/kelsen-contra-toffoli-e-o-supremo.html).
Pessoas que não conhecem os meios jurídicos poderiam pensar que essa fraqueza decorre simplesmente de aqueles excelentíssimos Ministros serem indicados pelo Presidente da República e confirmados pelo Senado Federal. No entanto, os outros meios não costumam ser muito melhores, o que inclui os espaços do ensino jurídico.
Já mencionei aqui textos sobre o preocupante iletramento dos bacharéis em direito:
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/09/universos-paralelos-da-educacao-iv.html. O problema, claro, surge em todas as carreiras, eis que os poderes políticos geralmente atuam contra a educação fundamental. Seria tolo imaginar que o Direito sairia incólume desse descalabro, desse grande fracasso do Brasil.
Em reação à má formação dos bacharéis, concursos das profissões jurídicas passaram a incluir disciplinas como filosofia, o MEC tentou instituir diretrizes de "formação humanística" dos bacharelandos em direito, e até mesmo a OAB passou a se preocupar com o assunto, decidindo que incluirá questões de filosofia em seu exame a partir de 2012, medida que provavelmente será inócua no tocante ao problema. Compartilho a opinião de Frederico de Almeida:
http://politicajustica.blogspot.com.br/2012/05/va-filosofia_30.html); Murilo Duarte Costa Corrêa julga que ela será um golpe nas potencialidades críticas do direito (
http://murilocorrea.blogspot.com.br/2012/05/pensar-refem-da-tecnica-o-exame-de.html), o que considerei exagerado ou precipitado. De qualquer forma, é a efetiva prática que nos permitirá avaliar os efeitos dessa medida.
Eu achava que uma das consequências dessas medidas seria a produção em série de ainda mais subliteratura didática para graduandos em Direito. Como os estudantes são muito fracos, e não poderia ser diferente em um Estado que decidiu ao mesmo temo expandir as matrículas no ensino superior e sabotar o ensino fundamental, essa produção voltada para graduandos decaiu de manuais simplificadores para resumos, sinopses e até folhas dobradas com esquemas gerais de tudo.
Um exemplo é a curiosa publicação
Noções gerais de direito e formação humanística (ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz; SERAFIM, Antonio de Pádua; ASSIS, Olney Queiroz; KÜMPEL, Vitor Frederico.
Noções Gerais de Direito e Formação Humanística. São Paulo: Saraiva, 2012), que veio preencher este novo nicho do mercado editorial.
Lenio Streck apontou diversos equívocos desse manual nos textos
O triste fim da ciência jurídica em terrae brasilis (
http://www.conjur.com.br/2012-set-20/senso-incomum-triste-fim-ciencia-juridica-terrae-brasilis) e
A hermenêutica e o cadáver plantado no jardim (
http://www.conjur.com.br/2012-out-04/senso-incomum-hermeneutica-cadaver-plantado-jardim). O professor chega a dizer que "seguindo o que consta na obra, com certeza piorará o nível dos concursos e dos seus utentes". Essa opinião, no entanto, pode ser repetida para grande parte das publicações de editoras especializadas em Direito: o nível baixo dos estudantes gera tais publicações que, por sua vez, reforçam o colapso intelectual, em um sistema de retroalimentação.
Streck disseca os diversos erros em Hermenêutica cometidos pelos autores (o que é preocupante, já que dirigido para leitores que desejam interpretar e aplicar normas jurídicas), sua impressionante falta de atualização com a matéria (Kelsen, que é apresentado erroneamente, seria a última palavra...) e a metodologia equivocada - até a página 130, não há menção a autor algum: "É como um
fiat lux. Não há fontes. Não há origem. Parece que os
autores criaram tudo. No princípio, eram eles, os quatro autores. Deles
veio a iluminação."
Aconselho a leitura desses textos de Lenio Streck, que bem analisam um
exemplo da falência intelectual que tem servido de bibliografia básica
para a cultura jurídica nacional. No entanto, a magnitude da obra (tem mais de 580 páginas) fez com que ele conseguisse apresentar somente alguns dos defeitos do livro. Lembrarei de alguns outros, apenas, que a tarefa é vasta para minha curta pena.
Livros são escritos; esta obra faz-nos lembrar disso todo o tempo, pois o estilo não é apenas deselegante, e sim também infenso a qualquer exposição intelectual mais profunda. Ele foi elaborado como uma coletânea de fichamentos que se enfileiram sem uma coordenação, sem propósito exceto o de apresentar, talvez, palavras-chave ou frases que devem ser ligadas a determinado autor.
Um exemplo é a impactante seção com o título "Contribuição da antropologia jurídica", com três parágrafos, um pouco mais de meia página, em que descobrimos que "a sociologia e a antropologia jurídicas têm colocado em evidência o fenômeno conhecido como pluralismo jurídico" (p. 464). Deve ser essa a tal "contribuição". No entanto, na seção seguinte, "pluralismo jurídico", temos simplesmente um resumo da antiga e importante pesquisa do sociólogo do direito Boaventura de Sousa Santos no Rio de Janeiro... E só! No último parágrafo dessa seção, faz-se uma passagem teoricamente sem sentido para introduzir a teoria da decisão jurídica de Tércio Sampaio Ferraz Jr., como se este autor realmente tivesse alguma afinidade intelectual com Boaventura, ou fosse um pesquisador do pluralismo jurídico.
Depois de fichamentos da obra de Tércio Sampaio Ferraz Jr., volta Boaventura de Sousa Santos, com o fichamento de obra mais recente,
Um discurso sobre as ciências que, naturalmente, não está no mesmo campo da teoria do professor Tércio. Tal salada de fragmentos teóricos é nada menos do que o capítulo que encerra a parte III ("Sociologia do Direito"), curiosamente chamado de "Novos rumos".
No entanto, esse rumo de vacuidade teórica é velho e o Direito brasileiro o segue há muito.
O livro, de fato, não é bom para os novos ventos teóricos. É assustador, por exemplo, que a parte II ("Filosofia do Direito"), que simplesmente apresenta fichamentos de autores em ordem mais ou menos cronológica (porém Locke vem antes de Hobbes), termine com um capítulo de "Filosofia do Direito contemporâneo" que trata apenas de três autores: Hans Kelsen (1881-1973), Miguel Reale (1910-2006) e Theodor Viehweg (1907-1988). Mesmo que alguém realmente ache que se poderia fazer um capítulo com esse título só com eles (ou, então, com eles), essa pessoa teria que reconhecer que ele tem erros. Além das impropriedades sobre Kelsen escritas, que Lenio Streck bem apontou, faço notar que as meras quinze linhas dedicadas a Miguel Reale não fazem justiça à obra desse autor brasileiro, quer gostemos dele ou não. É evidente que Reale está ali apenas para constar como um nome de prestígio. Daí para lê-lo...
A versão de Kelsen apresentada neste capítulo é mais bem aquinhoada e ganha um pouco mais de duas páginas; muito mais atenção recebe Viehweg com pouco mais de oito, superando não só outros dois únicos autores contemporâneos (segundo os autores deste livro), como também Hobbes, Locke, Tomás de Aquino, Platão, Montesquieu, Rousseau... Somente Aristóteles, Cícero e Kant ganham mais espaço como filósofos do direito!
Alguém que não conhecesse a área certamente julgaria que Viehweg não é somente o mais importante dos três únicos filósofos contemporâneos (e concluiria que não há nenhum autor relevante vivo), como um dos maiores de toda a história da humanidade. Creio que esse destaque, um tanto exagerado na minha opinião, decorre do fato de o livro ter como fonte recorrente um conhecido orientando brasileiro desse professor alemão, o professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. (que, creio, não aprovaria a estrutura desta obra), que aparece como base teórica até mesmo em áreas que não são exatamente sua especialidade, como a Sociologia do Direito (embora a tenha lecionado nos anos 1970). O mencionado capítulo "Novos rumos" é um sintoma disso, mas também a terceira seção, "Sociologia e direito" (p. 328-331), da parte III. É coerente, pois, que, nas referências do livro, seja ele o autor com maior número de entradas: oito, contra cinco de Weber, duas de Aristóteles e zero de Rousseau.
Se os novos ventos teóricos não puderam soprar nesta obra, que manteve as janelas fechadas para diversas correntes contemporâneas, devemos reconhecer que os antigos ventos, nela, também deixaram de movimentar o pensamento. Vejamos Platão, sucintamente apresentado das páginas 209 a 213. O capítulo, além de passar ao largo da filosofia política desse autor, necessária para entender seu pensamento sobre a justiça, foge do desse filósofo também ao não citá-lo. Somente são referidas obras de comentadores, que se resumem a cinco, todas elas ou brasileiras ou encontradas em português. Faço notar que a primeira é o livro de divulgação sobre Nietzsche (!!!) escrito por Oswaldo Giacoia Junior para a coleção de livros de bolso da Publifolha. Outra é a
Teoria da norma jurídica de Bobbio, que também não se dedica especificamente à filosofia daquele autor. Por sinal, nem mesmo os de Kelsen e Eduardo Bittar aí referidos. Esse nível ínfimo de pesquisa não deveria ser aceito nem mesmo em trabalhos de graduação em Direito - afinal, há, mesmo no Brasil obras recentes e de fácil acesso como
O direito natural em Platão (Juruá, 2009), de Bruno Amaro Lacerda.
A escassa pesquisa e a metodologia falha do livro certamente geraram os erros que Streck encontrou e apontou, a que podem ser somados outros. Para Kant, por exemplo, o imperativo categórico é apenas um, apesar de ter mais de uma formulação. Nesse ponto, que está equivocado, (p. 289), o livro apresenta como solitária fonte Joaquim Carlos Salgado. Se as próprias obras de Kant tivessem sido consultadas, ou se os autores tivessem tido um pouco mais de curiosidade pelo vasto número de comentadores deste filósofo (J. C. Salgado, acreditem, não é o único e, creio, não é nem mesmo o melhor), talvez não tivessem cometido o equívoco. No caso de Platão, Hobbes, Locke e Rousseau (embora ele mesmo seja citado, mas sem indicação alguma de obra), notemos que eles estão ausentes até mesmo das referências bibliográficas...
Por sinal, ainda na seção de Kant, que é mais longa do que a dedicada a Theodor Viehweg, mais adiante aparecem as três formulações do imperativo categórico na
Fundamentação da metafísica dos costumes, e só no final surge a da
Metafísica dos costumes (que é um livro posterior), mas o leitor não saberá que se trata da formulação para o direito.
As referências, além de lacunosíssimas, pois não incluem nem mesmo todos os autores estudados, são inconsistentes com a estrutura do livro, dividido em quatro partes: Teoria Geral do Direito, Filosofia do Direito, Sociologia do Direito e, por fim, Psicologia do Direito e Formação Humanística. As referências só possuem duas: Psicologia jurídica (que não inclui nenhuma obra de Freud, apesar de ele ser um autor com certa relevância, é até mesmo mencionado neste livro) e Filosofia.
A Filosofia ganha, dessa forma, ares de rainha absolutista das ciências, e obras específicas de Sociologia, Antropologia, Direito do Cosumidor e Direito de Família são incluídas nesta parte. Entre as obras aqui listadas, está o livro para o ensino médio "Convite à filosofia", de Marilena Chauí.
Streck já bem escreveu que o livro traz mensagens intelectualmente muito graves: a de supor que a Teoria Geral do Direito não possui autores (tudo decorreria dos quatro que assinam o livro, pois ninguém mais é citado) e que ela é uma decorrência de um artigo da lei brasileira de introdução ao Código Civil... Há outras, certamente não previstas pelos autores da obra. O leitor incauto poderia entender equivocadamente que seguir estes passos corresponde a uma "formação humanística":
- De preferência, ignorar a literatura primária; se vamos tratar de Platão, para que citar alguma obra de Platão? Assumamos que o que esses autores escrevem, no fundo, não interessa, e vamos direto para os resumos.
- Em relação aos comentadores, escolher também obras de divulgação, inclusive coleções de bolso - se forem sobre outro assunto, não há problema, tudo seria uma coisa só.
- Escolher pouquíssimos comentadores, afinal, tudo teria um sentido só, não existiriam divergências teóricas na recepção, por exemplo, de Montesquieu.
- Dar preferência a autores com formação em direito; afinal, eles dominariam todos os assuntos; seria tolo achar que algum filósofo teria algo a dizer sobre Hobbes.
- Citar apenas obras publicadas em português, pois nada de relevante se escreveu em outra língua (ao menos antes da tradução; faz-se uma pequena exceção para o espanhol, que possui a virtude de ser bem parecido).
Em relação a uma das exceções em espanhol, faço notar que a única obra de Carlos Nino referida já tem tradução e edição no Brasil.
Creio que o desastre intelectual deste livro decorre, em parte, de ele ter nascido não como uma empreitada intelectual (não há nenhum impulso teórico por trás dele, nenhuma tese), e sim como produto para ocupação de um nicho de mercado: o Conselho Nacional de Justiça editou resolução sobre os concursos para a magistratura
(http://t.co/vSPabobp) prevendo questões de formação humanística na primeira fase, a OAB resolveu incluir questões congêneres em seu exame para 2013...
E assim, criou-se rapidamente este livro, que pretende ser comprado não só por concursandos, mas por "professores e estudantes de cursos jurídicos" - vastíssima clientela no Brasil. Trata-se da pura lógica das mercadorias, trabalhando contra o tempo, mais longo, exigido pelo trabalho intelectual.
O livro, por nascer e seguir a regulamentação do CNJ é fruto de uma
deformação profissional comum na área do Direito que é o de enxergar a realidade via os olhos do direito escrito. A Saraiva decidiu que a formação humanística merecia um livro por causa da resolução. Como deve ser o livro? O que espelhe a norma. Dessa forma, temos mais um exemplo do"secreto ódio à realidade" (como expliquei nesta nota, a expressão é de Sérgio Buarque de Holanda:
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/jornalismo-versus-direito-ii-kelsen-onu.html) do meio jurídico nacional.
Se é a norma (e que norma, uma simples resolução!) que deve "formar" a "formação", logo a verdadeira "formação" é simplesmente a leitura do Diário Oficial. Essa deve ser a lição mais profunda deste livro da Saraiva, cuja vacuidade reflete com nítida exatidão e ratifica o problema que talvez quisesse resolver.
Dessa forma, explica-se que a arte tenha sido alijada de um livro de formação humanística. Também a história, antecipando o projeto corporativista da ANPUH. As humanidades foram trocadas pelo legalismo puro e simples.
Ademais, a noção presssuposta por estes autores de que uma formação pode se resumir a um livro só (que é o que esta obra tenta fazer, apresentando resumos sobre tudo que acha que cairá nos concursos)
contraria a própria ideia de formação, que deve incitar a busca pela experiência - e por outros livros. Temos aí uma contradição performativa...
O que se pode imaginar a partir e abaixo disso, já que o ensino superior continuará mais gerações rolando abismo abaixo com a destruição sustentada do ensino fundamental? Concebo duas possibilidades para o médio prazo.
Talvez faculdades criem uma disciplina com o título "formação
humanística", extinguindo cadeiras como Sociologia Jurídica, Filosofia
do Direito, Lógica, Hermenêutica... Será lecionada, naturalmente, por
meio de educação a distância. Bastará tutores
on line para um conteúdo tão vastamente mínimo. O
twitter seria o futuro dos manuais de direito.
Virando Ministro do STF em 3 lições, obra ainda a ser escrita nesse futuro pouco distante (primeiro, surgirá uma com 10 lições), será uma das mais vendidas, lida até mesmo por assessores de alguns futuros magistrados para aperfeiçoar a elaboração das sentenças.