O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Íntimo e desconcertante: Donizete Galvão (1955-2014)

Conheci em 2003 Donizete Galvão, que faleceu no dia 30 de janeiro de 2014, de madrugada, atingido por um enfarte. Nasceu em Borda da Mata (MG) e conservava muito do caráter mineiro na sua forma de receber as pessoas, ao menos como faziam os mineiros de sua geração. Sempre que entrei em sua casa, pude fazê-lo como se estivesse na minha. Ana Tereza Marques, sua viúva, acolhia-nos também calorosamente nas ocasiões que ficaram conhecidas como "sabadonis", em referência aos famosos "sabadoyles".
Vejo agora que sua morte foi noticiada em diversos veículos de comunicação. Estas são um pouco mais informativas, a da CBN Foz e d'O Globo. Várias delas erram até a idade com que morreu, 58 anos. Vejo também que alguns amigos dão seus testemunhos, como Dirceu Villa.

Muitos tiveram contato com ele em oficinas de poesia em São Paulo. Quem não frequentou nenhuma delas e tampouco o viu em recitais pode assistir a esta leitura de sua própria poesia neste vídeo, filmado em 22 de agosto de 2009 por Fabio Weintraub: http://www.youtube.com/watch?v=6x7MCjCqgaM
Tratou-se de convite do professor Elias Amorim Feitosa Jr. do Cursinho da Poli, em São Paulo, a Donizete, Marcelo Ariel, Eduardo Sterzi, Veronica Stigger e Priscila Figueiredo.
Estranhamente, é o único deste poeta que encontrei no youtube. Suas aparições na tevê Cultura ainda não estão disponíveis. Donizete leu, naquela ocasião, um poema de Mundo mudo (São Paulo: Nankin, 2003), "Arrozal", e outro de Ruminações (São Paulo: Nankin, 1999), "Mapa". Pode-se ouvi-lo, íntimo e desconcertante: "Substituir o espantalho/ Foi o seu primeiro trabalho."

As fotos ao lado são do lançamento de seu último livro, O homem inacabado (São Paulo: Dobra, 2010). Não sei dizer se é o seu melhor livro, pois não li todos, suas primeiras obras estão esgotadas. Felizmente, nele não aparece uma certa dicção, próxima de Dora Ferreira da Silva, em que se busca interpelar diretamente os deuses e o sagrado. O que dá certo para sua antiga amiga, que Donizete entrevistou mais de uma vez, não é o que melhor funciona para ele. Por exemplo, não é dos seus melhores o poema que escreveu para ela e que foi citado na última resposta desta entrevista dada a Antônio Donizeti Pires e Solange Fiuza Cardoso Yokozawa. Foi ainda republicado em antologia que a Patuá lançou em 2014, É que os hussardos chegam hoje.

Nessa mesma entrevista, ele fala do que é sua principal qualidade: "sou um escritor preso à realidade [...] não atinjo culminâncias do sublime". Suas culminâncias estão, paradoxal e poeticamente, ao rés do chão. Não à toa, ele chega a se classificar, na mesma entrevista, como "materialista místico", por acreditar em um deus imanente à matéria, e nisso se sentia próximo a Kazantzákis, um de seus autores preferidos.
Quem nunca o leu, antes de comprar seus livros (ainda) em catálogo, poderá fazê-lo nesta breve antologia publicada pelo Centro Cultural São Paulo, disponível gratuitamente na internet: Alta noite.
Nela encontramos uma "Arte poética", em que "a língua da vaca" lambe sem cessar a cria, mesmo com as "pústulas no lombo"; e este poema, também, de fato, antológico, "Escoiceados", de Ruminações. Cito-lhe o início e o final:

Meu pai e eu
nunca subimos
num alazão
que galopasse
ao vento.
[...]
Levamos
bons coices.
Meu pai e eu.
Os dois
nunca subimos
na vida.
Nesse "fracasso na vida" temos a ética e o êxito desta poética: ele não está do lado dos vencedores. A propósito, aconselho a leitura da brilhante análise que a poeta e ensaísta Priscila Figueiredo fez desse poema:
A queda do pai e do filho, transcrita por meio de um expressivo quiasmo, tem dimensão revelatória e simbólica. É a imagem de um momento fundamental, em que se decide o destino de ambos. Uma vez caídos no chão, ficarão no chão para sempre. Cair do burro passa a significar agora não subir socialmente, e aqui voltamos ao que dizíamos linhas atrás. A humilhação de se submeter a um animal adquirido por ninharia é reposta e produz mais humilhação: quem nunca subiu não subirá. Como diz a letra de uma música bastante tocada nas rádios: "O de cima sobe /o de baixo desce".
Em O homem inacabado, há um poema que me parece servir como sua poética; fiel ao tom desta poesia, a figura que é retratada não é um escultor, mas um simples ferreiro que, no entanto, mostra-se senhor da matéria de sua profissão. Cito o final de "O ferreiro":
Cadência de artífice
que mantém o prumo
em sua faina
de onde saem
os objetos que povoam o vazio.
Um homem sem senhor
reina na matéria,
sua clareira de liberdade.
Sem os objetos produzidos pela liberdade (e, no caso, por uma figura socialmente subalterna, o ferreiro, significativamente escolhida pelo poeta para representar-se), temos apenas o vazio, o que me parece ser uma aposta na ação e nos instrumentos de emancipação social.

Para acabar esta breve nota sobre Donizete, relembro seu amor pela música. A última vez que nos comunicamos por e-mail, no início do ano, ele me perguntava sobre dúvida que, dizia, lhe "tirava o sono": uma personagem de criada da commedia dell'arte que aparece em óperas como La serva padrona, de Pergolesi. Se nem ele sabia, quanto mais eu... Descobri, porém, a referência em livro de Lauro Machado Coelho, e lhe respondi que era a servetta.
A música, de fato, o preocupava e gerou, além do ouvido que se detecta em sua obra, poemas como "Solilóquio de Nina Simone": "Habitou-me um deus espesso./ Sangue cor de fígado."
Donizete, contudo, foi além da mera tematização da música na literatura e penetrou no mundo da música brasileira contemporânea: Willy Corrêa de Oliveira compôs canções sobre textos seus, que, creio, ainda não foram gravadas, mas já foram apresentadas em público. Ainda não as ouvi, também isso me falta conhecer.
Esperemos que sua obra poética seja reunida e publicada; é o que dele ainda podemos ter, e é o que lhe devemos, pois isso não foi feito enquanto vivia.
Basta desta situação em que só se conhecem, dos poetas, os anos de nascimento e de morte, e nem assim os jornais, como neste caso, consigam calcular a idade... A poesia tem que ser (re)posta em circulação. É significativo que as notícias que vi sobre a morte de Donizete na grande imprensa tenham se poupado de citar os versos do autor, como se o poeta só pudesse aparecer pela sua morte, mas não pelo que o faz vivo, a poesia.
Que não se diga dessa obra o que ele escreveu sobre o corpo em "Depreciação", poema do raro livro que publicou a quatro mãos com Ronald Polito, Pelo corpo (Santo André: Alpharrabio, 2002):
De hoje em diante
a máquina imperfeita
de teus músculos
será mais um objeto
em desuso.


P.S.: Fabio Weintraub reclamou que ficou apenas implícita a relação entre a servetta e a poética de Donizete. É verdade. Não sei se ele teve tempo de escrever sobre isso (ele me fez a pergunta no dia 7, respondi-lhe no dia 12), ou mesmo se era para fins literários que ele necessitava da informação; mas imagino que o interesse na personagem é análogo ao interesse em figuras como a do ferreiro.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Desarquivando o Brasil LXXVIII: Notas de uma metodologia jurídica da ditadura



Preparei um texto para introduzir uma futura publicação da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Ela trará de volta à circulação uma longa carta escrita por diversos presos políticos em São Paulo, em outubro de 1975, para Caio Mário da Silva Pereira, que presidia o Conselho Federal da OAB. Hoje, ela pode ser lida no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Já escrevi um pouco sobre ela neste blogue (em http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/02/violencia-em-pinheirinho-iv-e.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/04/desarquivando-o-brasil-xxxii-memoria.html) por causa dos assassinato de Herzog, que ocorre justamente quando a carta é terminada, e é mencionado em um adendo, e em razão da lista de 233 torturadores nela identificados, alguns apenas com o codinome.
A carta explica os diversos tipos de tortura implicados, arrola os responsáveis, depois passa a tratar das variadas ilegalidades que sofriam desde o momento da prisão (verdadeiros sequestros, que violavam as normas constitucionais e do Código de Processo Penal Militar, aplicável aos civis em matéria de segurança nacional) até as condições carcerárias, no cumprimento da pena.
Lemos que "O regime militar aqui imposto em 1o. de abril de 1964 baixou uma enxurrada de atos e leis de exceção."; alguns deles são mencionados, e comenta-se que "Se a letra de todos esses dispositivos draconianos, por si só, já fere a consciência jurídica contemporânea, a prática dos órgãos repressivos tem sido, ao longo dos anos, um permanente atentado à condição humana". Pois a prática violava esse próprio direito de exceção, "na certeza da impunidade que lhes é assegurada pelo regime discricionário". 


Aqui, adianto dois trechos do meu texto:

Antes da carta, houve outras denúncias de tortura de presos políticos, que logo a ditadura militar buscou silenciar. Elas começaram pouco depois do golpe de 1964, e o primeiro livro dedicado ao assunto foi Torturas e torturados (Rio de Janeiro: Idade Nova, 1966), de Márcio Moreira Alves, censurado e recolhido pelo governo federal no próprio ano da publicação. Ele foi liberado judicialmente em 1967, mas por pouco tempo; o então deputado federal pelo MDB logo teve que partir para o exílio em razão do AI-5.
Márcio Moreira Alves contou que, para escrever a obra, penetrou incógnito na Penitenciária do Recife, participou de redes clandestinas de militantes políticos e recolheu depoimentos de cerca de cem torturados, e assim foi “descobrindo a sistemática da tortura, vendo que ela não era uma aberração praticada por elementos incontrolados da polícia e do Exército mas sim uma necessidade do regime, ditada pela sua política econômica”.
Com efeito, a tortura, assim como outros abusos contra os direitos humanos eram uma necessidade, e não um acidente do regime, que nisso revelava sua natureza evidentemente autoritária. Como, simultaneamente, o governo federal queria preservar aparências democráticas (e um dos discursos de legitimação do regime, repetido por Castelo Branco em sua posse na presidência, era justamente o de que o golpe de 1964 havia sido dado para “preservar” a democracia...), tais abusos contra os direitos humanos nunca foram permitidos juridicamente de forma aberta.
Embora, nesta última ditadura no Brasil, tenha-se adotado uma sistemática jurídica de fazer a Constituição conviver com um direito de exceção que dava ampla margem de discricionariedade ao governo de agir contra as garantias constitucionais, nem mesmo os Atos Institucionais, o instrumento maior desse direito de exceção, permitiram a tortura, as execuções e os desaparecimentos forçados. Fazê-lo teria sido o equivalente a uma confissão pública, que a ditadura militar jamais desejou.
Contudo, o direito de exceção, ao transformar a arbitrariedade em regra, impedindo a apreciação judicial dos atos praticados com base nos atos institucionais e nos complementares, e ao abolir, pelo AI-5, o habeas-corpus para os crimes políticos, fez com que a defesa contra esses abusos se tornasse mais difícil; não apenas, note-se, a defesa judicial, mas também a de caráter político, que se viu cerceada pela ampliação dos poderes de censura, de cassação e suspensão dos direitos políticos, interditando fortemente o debate.
Tratava-se de uma forma hipócrita de produzir legalmente a ilegalidade: os crimes cometidos pela repressão não eram permitidos, porém se tornava mais difícil combatê-los legalmente.
Como esses crimes foram sistematizados informalmente, para mantê-los nessa meia-luz (ilegais, porém institucionalizados, para que não fossem iluminados pelo debate e pela denúncia no espaço público, a censura e o segredo eram fundamentais para o regime.
Outras necessidades da ditadura militar, para evitar as apurações dos próprios crimes, foram as de afastar a Justiça Comum dos crimes contra a segurança nacional, o que foi realizado já no segundo Ato Institucional, em 1965, e de intervir no Judiciário e no Ministério Público, afastando quem fosse mais comprometido com a defesa dos direitos humanos do que com a defesa do regime autoritário. A ditadura necessitou da cumplicidade da Justiça Militar e do Ministério Público que atuava junto a essa Justiça para que fossem ignoradas, em grande parte dos casos, as sistemáticas ilegalidades dos inquéritos penais militares e dos processos, bem como as denúncias, feitas pelos presos políticos, de torturas e de execuções pelas forças da repressão.
Após o AI-5, com o endurecimento da repressão política e da censura, cresceu a importância, para as denúncias dos abusos contra os presos políticos, de instituições estrangeiras, da imprensa internacional e de redes de exilados brasileiros no exterior. Tiveram um papel nessas denúncias a Igreja Católica, a Anistia Internacional, a Associação Internacional dos Juristas Democratas, a Frente Brasileira de Informações, entre outras instituições e redes.
A interdição do debate no Brasil (com exceções como o do assassinato de Olavo Hanssen em 1970, que foi noticiado com cautela pela imprensa) facilitou à ditadura lançar-se ao genocídio indígena e ao massacre dos combatentes da Guerrilha do Araguaia na primeira metade dos anos 1970. Ademais, a própria denúncia configuraria um crime contra a segurança nacional, como pretexto da “difamação” da imagem do Brasil.
[...]
A carta descrevia algumas das táticas do que chamo de produção legal da ilegalidade, por meio de que as próprias instituições de garantia da ordem jurídica produzem decisões contrárias ao ordenamento legal (inclusive violando o próprio direito de exceção produzido pela ditadura, como os próprios presos políticos bem assinalaram). Trata-se de uma relação paradoxal entre legalidade e ilegalidade, mais complexa do que a simples ideia de uma “suspensão” da legalidade nos “porões” da ditadura, o que falseia dois dados essenciais: as normas jurídicas não eram simplesmente suspensas nas prisões da ditadura (além de propiciarem paradoxalmente a ilegalidade, não se podia falar de suspensão do ordenamento: o direito administrativo, por exemplo, para vários efeitos continuava vivo nos esquemas de repressão, como na organização hierárquica); em segundo lugar, as torturas não vinham dos “porões”, não correspondiam a meros “acidentes”, e sim originavam-se dos próprios palácios do poder, e eram da “substância” do regime.
Nesse regime autoritário, não é de admirar que os defensores da legalidade – penso aqui nos advogados de presos políticos – fossem perseguidos. Retomo, neste momento, a informação do SNI de 1976 que caracteriza o jurista conservador Caio Mário da Silva Pereira (que não advogou para esses presos, ao contrário de Heleno Fragoso, também mencionado no documento) de “elemento esquerdista e antirrevolucionário”. Trata-se de mais do que manifestação histérica do anticomunismo inerente à doutrina de segurança nacional. Pilar Calveiro, ao que me parece, viu bem a questão, que também estava presente na Argentina: “toda acción legal, como la presentación de habeas corpus, denuncias, búsqueda de personas, juicios, era considerada ‘subversiva’”.
Nesse sentido, o legalismo era uma ameaça às instituições...
Creio que as reações dos setores conservadores contra as atuais iniciativas de justiça de transição, as resistências contra a responsabilização pelos crimes contra a humanidade praticados pelos agentes da ditadura, alguns dos quais apontados nesta carta, sejam ainda uma herança dessa cultura cínica em relação ao Direito, presente na ditadura militar, e evidenciam o caráter incompleto da transição democrática no Brasil.


 

domingo, 19 de janeiro de 2014

A culpa é das vítimas


"Será que tem culpa o Estado dos presos se amotinarem, de desejar fugir, de desejar matar todos que se coloquem entre eles e a rua? A culpa foi das vítimas, que iniciaram a rebelião [...]. Enquanto na China são mortos 30 mil condenados de maior periculosidade por ano, enquanto em alguns países da América são mortos ou lançados na selva um grande número de presos irrecuperáveis, não se pode reclamar do Brasil, onde eles vivem protegidos da chuva e das necessidades alimentares, mantidos pelo Estado com dificuldades orçamentárias, que lhes dão privilégio em relação aos pobres pais de família de salário mínimo." (Desembargador Pinheiro Franco, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao negar pedido de indenização de Ionice Urbano da Luz, mãe de um dos presos mortos no massacre. Referência: FERREIRA, Lúcia Moraes Abreu, MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, MACHADO, Maíra Rocha. Massacre do Carandiru: Vinte anos sem responsabilização. Novos Estudos, 94, novembro 2012, p. 5-29.)
O estudo que cito acima é brilhante, e mostra bem como a polícia e o ministério público, por razões que ainda não foram estudadas, foram incapazes de investigar tanto o governador quanto o secretário de segurança da época no Massacre do Carandiru, e como o poder judiciário falhou seguidamente ao longo dos processos.
A passagem citada é a própria epígrafe desse artigo, em que se chega à formulação lapidar: "a culpa é das vítimas". Todo o resto da fala não faz muito sentido e é necessário, de fato, ter a sensibilidade social de um magistrado típico para pensar que os encarcerados no Brasil são pessoas privilegiadas. A escolha da China como padrão de comparação também comove, tendo em vista os parâmetros democráticos com que se poderia comparar o Brasil. Porém, na sintética frase, temos uma síntese da polícia lato sensu, na qual se pode incluir o judiciário.
Lembro agora de um vídeo sobre Foucault, Michel Foucault par lui-même (Michel Foucault por ele mesmo), de Philippe Calderon. Não é ruim. A partir dos 27 minutos, perguntam para Foucault qual é a função de um juiz na sociedade; responde: "A que ele serve? Se eu fosse maldoso, coisa que não sou, mas o direi de qualquer forma, ele serve, no fundo, para permitir à polícia funcionar. [...] A justiça está a serviço da polícia; historicamente e, de fato, institucionalmente."
A partir dos vinte oito minutos, Foucault fala do "discurso" que o juiz quer obter do réu: que este declare o juiz inocente...
O que é apenas um ponto da questão. Pois não seria melhor que a parte nem mesmo pudesse chegar ao juiz? Ou, melhor, que nem mesmo houvesse processo? Ou que o processo não terminasse? Ou terminasse tarde demais? A criatividade da inefetividade do processo, ou melhor, da efetividade do processo para a inefetividade da justiça (não o judiciário, veja bem) vai além do que o filósofo francês ousou pensar.

Se a culpa é das vítimas, por que pensar, conjecturo, que haveria assassinos? Não seriam necessários... Um corpo destroçado com todos os dentes arrancados seria um exemplo, pois, de suicídio. Tendo em vista que trato tanto de temas de justiça de transição, poderia lembrar de execuções pela polícia ou pelas forças armadas disfarçados em "suicídios", como foram os casos de Manoel Fiel Filho, Olavo Hanssen, Vladimir Herzog, apenas para mencionar aqueles sobre que escrevi neste blogue.
Não é necessário fazer esse exercício de voltar ao passado recente, porém, para verificar exemplos de pessoas, para usar a palavra de Artaud, "suicidadas"; desta vez, porém, não por fazer oposição política. Menciono o protesto relativo à morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos, no último dia 17, em que se fez ver este cartaz: "Desde 64 quem é torturado e assassinado foi suicidado".
O rapaz de 17 anos foi encontrado dia 11 deste mês; ele estava em uma "balada" para homossexuais no centro de São Paulo; descubro que, por causa da violência, formaram-se "famílias LBGT" para se protegerem de crimes de ódio.
Exagero? Os crimes de motivação homofóbica no Brasil têm crescido segundo o Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: Ano 2012, da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal. Entre 2011 e 2012, houve um aumento de 46,6% de vítimas, e de 166,09% de denúncias:


Ele se separou dos amigos para ir ao metrô República; provavelmente, no caminho foi atacado.
A morte foi registrada como suicídio, o que aumentou a revolta causada pela morte; mesmo o governo federal, via Secretaria de Direitos Humanos, afirmou que "As circunstâncias do episódio e as condições do corpo da vítima, segundo relatos dos familiares, indicam que se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado por homofobia."
No fim do ano passado, com apoio dos setores governistas, o projeto de lei PLC-22, que tipificaria o crime de homofobia, equiparando-o ao de racismo, foi arquivado. O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) escreveu um interessante texto relacionando a morte do adolescente com esse crime, comparando a situação do Brasil com a do Chile, onde crime semelhante levou a uma lei contra a homofobia - e num governo de direita, de um ex-aliado de Pinochet. O deputado escreve que as mesmas forças teocráticas (ou seja, antidemocráticas) que enterraram o projeto haviam feito o governo cancelar o programa Escola sem Homofobia e, ademais, alimentam o discurso de ódio que legitima esses crimes.
Creio que muitos dos que se levantaram contra o projeto não quisessem a escola sem homofobia porque preferem uma escola sem homossexuais... O que leva a outra questão. O discurso do suicídio talvez seja alimentado, além de uma eventual tendência oficial a subestimar os crimes violentos e melhorar as estatísticas de segurança, por um imaginário social de extermínio. Um desejo de que estas pessoas não mais existam. Porém, em vez de enfrentar as raízes disso, para tranquilizar a consciência, nada melhor do que pensar que elas morreriam de qualquer forma em razão de seu estilo de vida, que homossexualidade é igual a suicídio...
Lembro agora de outro episódio, que mostra a importância da defesa da laicidade do Estado para a democracia: em setembro de 2013, duas moças, Joana Palhares e Yunka Mihura, beijaram-se em praça pública em São Sebastião enquanto o pastor-deputado federal Marcos Feliciano dirigia um culto religioso; ele chamou a Guarda Civil Metropolitana para prendê-las. Palhares declarou: "Nunca imaginei que seria agredida, violentada, algemada e presa por beijar uma mulher em público." Elas foram tratadas como culpadas, e não os que violam a laicidade.
Torna-se então mais compreensível o ridículo discurso dos que afirmam que há uma "ditadura gay" no Brasil, ou um "gayzismo" perigoso que corrompe a sociedade. Ainda mais neste governo federal, que, como os outros, deixou de lado esta minoria na repartição do poder.
Não são apenas os idiotas e os loucos que acham que está no poder, e ditatorialmente, um grupo que é perseguido, vilipendiado e morto nas ruas, e derrotado (na simples busca da igualdade) no congresso nacional e no poder executivo. Faltam os desonestos: aqueles que estão incomodados com o fato de que os homossexuais, embora sofram essa violência, ainda existam, e repetirão esse mantra, insatisfeitos com suas fantasias de extermínio não se realizarem.
Enfim, a culpa é das vítimas, por existirem.

Falando em extermínio, imagine-se outro quadro, um vasto afresco composto de diversas pinceladas, que retrata grupos...

  1. que esperam a atrasadíssima demarcação de suas terras, que deveria ter sido terminada em 1993 (artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias); 
  2. que, em certa região do país, apresentam um alto índice de suicídio, equivalente a um genocídio silencioso
  3. que estão sofrendo uma aliança das grandes empresas beneficiadas pelo orçamento federal com o poder executivo; 
  4. que têm sido ameaçados com uma vasta ofensiva legislativa contra si, segundo o levantamento de Artionka Capiberibe e Oiara Bonilla
  5. que seriam amparados tanto pelo direito constitucional quanto pelo direito internacional, mas o judiciário (com o STF à frente) resolveu rasgar essas normas em nome da "ordem" e da "economia", ressuscitando doutrinas da ditadura militar
  6. que sejam assediados pela polícia em desrespeito ás garantias constitucionais
  7. contra que se fez um leilão ao qual, seja por deboche ou mau gosto,se deu o nome de "leilão da resistência", embora sejam estes povos que estejam sob ataque e estejam resistindo; 
  8. que o governo atual tenha emperrado o reconhecimento do direito sobre suas terras; 
  9. que sofreu genocídio também durante a ditadura militar, a tal ponto que, de alguns, sobraram 2% da população
  10. que seus rios estejam sendo envenenados por aqueles que desejam expulsá-los; 
  11. que o governo federal tenha criado uma "guarda pretoriana" que protege os empreendimentos de invasão e/ou destruição de suas terras...

... mas interrompo a lista, não por falta de tinta para novas pinceladas, mas porque essa pintura é feita com sangue e o seu peso faria o afresco derrubar todo o prédio.
Diante dessa situação, que é, em geral, a dos povos indígenas no Brasil, os porta-vozes dos grandes negócios, muito bem acomodados na grande imprensa, repetem diuturnamente certos absurdos: o de que a melhor coisa é ser índio, pois assim se tem "segurança fundiária" (!); ou ode que o Brasil vive uma "ditadura antropológica"; que os laudos antropológicos são produzidos por alucinações do Santo Daime; que os índios têm terras demais; ou o absurdo de a tevê mais vista no Brasil manipular a edição para que membro do ISA pareça dizer o contrário do que falou; ou o fato de os índios continuarem a ser o que são seja chamado de "reetnização" por quem não aceita a ideia de que os índios não acabaram e quer fazer crer que, se hoje eles reivindicam seus modos de vida, é porque há gente muito oportunista que deseja aumentar as próprias chances de ser baleada por empresas de segurança...
Por sinal, se tanto os antropólogos, aos índios e aos homossexuais são acusados de "ditadura" por esses porta-vozes, a finalidade é justamente a de disfarçar quem está realmente exercendo um poder autoritário e promovendo os preconceitos.
Por que toda essa gigantesca campanha de desinformação e violência é necessária, com apoio de tantos poderes oficiais e oficiosos? Porque os índios resistem e, para essas vozes contrárias aos direitos humanos, são culpados de existir, de o secular genocídio no Brasil não ter se cumprido de todo. Quando são acusados de atrapalharem o progresso, o desenvolvimento, de serem "preguiçosos", de quererem manter suas próprias terras etc., estão sendo acusados, na verdade, de serem o que são.
E contra esse modo de vida, o mínimo que aqueles poderes cúmplices desejam é o etnocídio. Eduardo Viveiros de Castro, nesta recente conferência sobre a destruição do mundo, o antropólogo diz que estamos em uma espécie de "ofensiva final contra os povos indígenas": http://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/os-indios-sao-especialistas-em-fim-do-mundo-diz-o-antropologo-eduardo-viveiros-de-castro  Para tanto, temos este novo "colonialismo", que, à diferença do antigo, é interno e, à semelhança dos velhos tempos coloniais, usa o racismo em prol dos interesses do grande capital.
O ecocídio, claro, faz parte desse quadro de ruínas; a propósito, sugiro, novamente, a leitura da primeira e da segunda partes da lista de leituras sobre o ecocídio de Belo Monte, que Idelber Avelar comentou.
Nesse sentido, não há nada mais velho do que os avanços ilegais do que se chama de agronegócio. Velhos também os ataques contra os homossexuais. O que pode ser novo é a reação, a resistência.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Questão de prova: Kant e o cosmopolitismo


Uma singela questão de Filosofia do Direito:



Como a prova pode ser respondida com consulta, vocês podem dar uma olhadinha em À paz perpétua, de Kant (um de meus livros favoritos), antes de responder. 
Deixo aqui os trechos originais e as minhas tentativas de tradução livre:


Segundo artigo definitivo para a paz perpétua
O Direito das Gentes deve fundamentar-se em um federalismo de Estados livres.

[...] Isso seria uma federação de povos, que, porém, não deveria ser um único Estado. Nele haveria, de fato, uma contradição: porque cada Estado contém uma relação entre um superior (o legislador) e um inferior (quem obedece, isto é, o povo), muitos povos em um só Estado se uniriam em somente um povo, o que contradiz a condição (pois nós aqui consideramos o direito dos povos uns em relação aos outros, na medida em que eles constituem diversos Estados e não devem se confundir em um só Estado).

Zweiter Definitivartikel zum ewigen Frieden
Das Völkerrecht soll auf einen Föderalism freier Staaten gegründet sein.


[...] Dies wäre ein Völkerbund, der aber gleichwohl kein Völkerstaat sein müßte. Darin aber wäre ein Widerspruch; weil ein jeder Staat das Verhältnis eines Oberen (Gesetzgebenden) zu einem Unteren (gehorchenden, nämlich dem Volk) enthält, viele Völker aber in einem Staat nur ein Volk ausmachen würden, welches (da wir hier das Recht der Völker gegen einander zu erwägen haben, so fern sie so viel verschiedene Staaten ausmachen, und nicht in einem Staat zusammenschmelzen sollen) der Voraussetzung widerspricht.




Da garantia da paz perpétua.

2. A ideia do Direito das Gentes supõe a separação de muitos Estados vizinhos e independentes entre si e, apesar de uma situação como essa em si ser um estado de guerra (se uma união federativa dos mesmos não previne a irrupção de hostilidades), no entanto ela é preferível, segundo uma ideia da razão, à fusão desses Estados pelo controle de um sobre os outros, e um poder transformado em uma monarquia universal; pois as leis, com a maior extensão do governo, perdem sempre mais em força, e um despotismo sem alma, depois de ter exterminado as sementes do bem, acaba, então, decaindo em anarquia.

Von der Garantie des ewigen Friedens.

 2. Die Idee des Völkerrechts setzt die Absonderung vieler von einander unabhängiger benachbarter Staaten voraus, und, obgleich ein solcher Zustand an sich schon ein Zustand des Krieges ist (wenn nicht eine föderative Vereinigung derselben dem Ausbruch der Feindseligkeiten vorbeugt); so ist doch selbst dieser, nach der Vernunftidee, besser als die Zusammenschmelzung derselben, durch eine die andere überwachsende, und in eine Universalmonarchie übergehende Macht; weil die Gesetze mit dem vergrößten Umfange der Regierung immer mehr an ihrem Nachdruck einbüßen, und ein seelenloser Despotism, nachdem er die Keime des Guten ausgerottet hat, zuletzt doch in Anarchie verfällt. 


O livro inteiro pode ser lido aqui: http://homepage.univie.ac.at/benjamin.opratko/ip2010/kant.pdf

P.S. O gabarito não é necessário, suponho. 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Alberto Pimenta: última lição na UNL e o Prêmio Diógenes


Duas notícias sobre Alberto Pimenta, nenhuma delas realmente muito nova, porém ainda oportunas, pois, na obra desse autor, tudo se torna atual: dos antigos egípcios até o (al-) facebook.
No fim de 2007, ele se aposentou na Faculdade de Letras da Universidade Nova de Lisboa, por ter completado setenta anos. Como no Brasil, trata-se da idade da aposentadoria compulsória.
Nessas ocasiões, o professor dá sua "última lição", e foi o que ele fez. Eu nunca vi uma aula de Pimenta, exceto por este vídeo, que ele me havia dado há algum tempo para colocar na internet, e somente há pouco consegui fazê-lo. "Alberto Pimenta: a última lição na UNL" pode ser visto agora nesta ligação.
A aula parte de um poema de António Botto:
Explica-me tu se podes
Num movimento de calma,
Porque razão
Se te beijo num desvairo de prazer
Às vezes sou todo corpo
E às vezes sou todo alma?
Afirma que, há muito, começou a sentir-se o interpelado pelo poema. E começa a fazer uma análise linguística do poema para chegar à conclusão de que isso não o explica, e que Botto, que não era um erudito, já teria apanhado o chapéu e ido embora, já teria percebido que todas aquelas considerações não passavam de "afetações com dois mil e quinhentos anos de idade [...] senis, e que não explicam nada"; pois a poesia tem como função dizer o indizível. Ou, então, seria apenas ele mesmo - Pimenta - que não seria capaz de explicar o poema.
Pimenta afirma, no entanto, que se pode referir à história da dualidade corpo e alma, e começa dos Salmos. A partir disso, ele passa por Lucrécio ("à minha pequena medida, sou exatamente como Lucrécio: tenho horas lúcidas"), Cervantes (especialmente), Dante, Adorno, Sêneca e termina com dois belos poemas de José Maria Fonollosa. Com a desenvoltura dos verdadeiros mestres, Pimenta discorre com a mesma facilidade sobre a literatura clássica e a teoria crítica do século XX.
Faço apenas notar que, no grande livro de ensaios A magia que tira os pecados do mundo, há uma análise detida de outro poema lírico de Botto ("Andava a Lua nos céus"). Nesse capítulo, lemos algo que é rapidamente citado e, na verdade, é pressuposto da última lição na UNL:
A ordem estética do poeta não é deduzida do repertório linguístico mas sim introduzida nele, numa autêntica re-organização de signos, e isto a todos os níveis: fonético, sintáctico, semântico. Os signos despem-se da sua função pré-estabelecida, para vestirem outra função: a estética. A dessemantização que Lessing descobre no discurso poético é um correlato deste processo.
A poética nunca entendeu isso, porque se considerou abusivamente uma extensão da semântica. Por isso nunca entendeu p. ex. que o odi et amo de Catulo não se pode descrever dizendo que é uma antítese, porque isso é um critério pré-estético, é um critério duma lógica que este enunciado justamente quer invalidar. Odi et amo é uma informação estética sobre a insuficiência da língua no tocante à classificação dos sentimentos humanos.

A própria poesia de Pimenta é rica nesse tipo de informação - e mais, julgo, do que a do outro poeta português. Trata-se, ademais, da última aula apenas na Universidade Nova de Lisboa: ele continua a ensinar-nos com seus escritos.
Não por acaso, outra notícia, mais recente, foi a de ele ter ganho o Prêmio Diógenes 2013, atribuído pela Cão Celeste, em virtude de seu último livro de poesia, De nada. Ele o aceitou. É um prêmio dado por poetas e editores comprometidos com esse gênero, e não algo como o prêmio da LER, que Vitor Silva Tavares com razão recusou.
Aqui está o anúncio; o júri, que foi unânime, compôs-se de Luís Miguel Queirós, Rosa Maria Martelo e Rui Caeiro: http://ocaoceleste.blogspot.pt/2013/11/premio-nacional-de-poesia-diogenes-2012.html
Pimenta me enviou o texto de agradecimento, que é um primor. Diógenes, por sinal, é um dos personagens preferidos de sua poesia (e que não lhe deixa de lhe estar próximo em atitude em relação ao poder), e deu as caras ainda no último livro: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/02/alberto-pimenta-e-de-nada-ou-revolucao.html
Depois das páginas de considerações sobre Diógenes, que, imagino, serão logo publicadas (na Cão Celeste, talvez?), Pimenta relativiza os prêmios, inclusive o Nobel. Em seguida, imagina esta resposta, orgânica, aos que se manifestarem, por um motivo ou outro, contra o fato de ele ter aceitado a distinção, e que bem pode se aplicar àqueles que preferem ignorar sua obra:


E agora ... agora estou a antever os blogues: "Pimenta afinal também recebe prémios, não se pode acreditar mesmo em ninguém!" Ou o contrário, que não sei bem o que é. Talvez: " Mas o raio da forma como ele agradeceu! Que é que esperavam?"
César Rendueles, no seu recente livro "Sociofobia" diz que a Internet é um zoo (isto soa-me!), um zoo em ruínas onde se conservam, já muito gastos, os velhos problemas que nos afligem, que nós achamos melhor não encarar de frente... é como os psicofármacos: ninguém confunde o bem-estar que dá o Prozac com uma vida plena, mas ele ajuda a ir aguentando, seja qual for o dano que produz.
Portanto, digo eu agora (com Vergílio, se a memória me não falha), quotquot nautae in gurgite vasto, façam o gosto ao dedo, que outra coisa é utopia.