O trailer (https://www.youtube.com/watch?v=sWu-qzkI0Cs) sugere muito de longe a violência documentada, e a própria violência em documentar toda aquela situação, especialmente na busca por um índio isolado: o fazendeiro desmatou e atirou nos índios, mas foi apanhado pelo levantamento do desmatamento. Esses índios têm um hábito jamais documentado na literatura antropológica: fazer buracos no chão de suas moradias.
Consegue-se uma interdição temporária do local, mas, se o(s) índio(s) não for(em) encontrado(s), ela será levantada. Rodrigo de Oliveira, destaca essa questão já no título da resenha que elaborou sobre o filme, "Índio que ninguém viu é boato". Um desses índios é encontrado, mas ele recusa contato; cercam-no durante seis horas (!) e logram filmar seu rosto, apesar de ter se mostrado mais agressivo em relação à câmera.
Certamente, a situação foi extremamente agressiva em relação ao índio. Mas a imagem dele arrancada foi a prova que garantiu, judicialmente, sua presença na área. Daí a autocrítica, anos mais tarde (são muito interessantes os comentários feitos sobre as imagens captadas no anos anos 1980, 1990 e 2000), de que eles foram uns "filhos da puta" com aquele índio, embora com um bom propósito.
Marcelo Ribeiro, no Incinerrante, põe no centro de sua análise do filme a noção de colonialidade:
A estrutura da colonialidade marca a inscrição das sociedades indígenas na narrativa nacional brasileira. O ataque do "índio do buraco" à câmera como dispositivo narrativo aparece como um gesto anticolonial que responde simbolicamente à opacidade fundamental que caracteriza o pertencimento do índio à narrativa nacional brasileira. Sua recusa deve ser entendida como a reivindicação de um direito à invisibilidade e a não participar da narrativa da nação. Seu mistério deve ser reconhecido como uma lembrança contundente da violência que nos constitui como comunidade imaginada.É possível que haja algo de superinterpretação nisso; aquele índio, cujos hábitos e língua desconhecemos, terá visto a câmera como "dispositivo narrativo"? Ou simplesmente uma máquina tal qual as armas usadas contra ele e os seus pelo agrobanditismo que dá as cartas na Amazônia? Em termos da motivação daquele índio, nada podemos afirmar. No entanto, é certo dizer que o imaginário da nação é constituído violentamente, e a ideia de "democracia racial" é uma das mais violentas.
As resenhas, porém, perdem de vista outra violência que o filme documenta: a da invisibilidade. Rodrigo de Oliveira, em sua resenha, chega a perguntar qual índio não foi visto, o que inverte completamente o problema: em geral, no Brasil, os índios não são vistos, ou o que deles é permitido aparecer são estereótipos - o que torna o Vídeo nas Aldeias tão importante.
Antes da busca desse índio isolado, ocorre outra, que é a que dá título ao filme, a de sobreviventes do massacre de índios ocorrido na gleba Corumbiara, em Rondônia. Em 1985, Marcelo Santos, da Funai, insiste em que ele ocorreu, acha os restos da ocupação indígena, mas o Judiciário acaba por proteger os fazendeiros, que vieram de São Paulo, e o indigenista é impedido de voltar à área pela própria Funai. Carelli, além de filmar as provas da presença de índios, capta o advogado dos fazendeiros expulsando-os.
Até que, em 1995, ele consegue voltar, e agora como responsável pelos índios isolados. Carelli retorna com ele. Conseguem, depois de buscas, topar com dois irmãos, cuja língua desconhecem - e que vêm de sobreviventes do quase extermínio dos índios Kanoê da época do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), antecessor da Funai. Um velho índio, ouvindo uma gravação deles, reconhece a língua, e passa a servir de intérprete. O massacre de camponeses sem-terra em Corumbiara, afirma-se em momento do filme, também teria atingido os índios sobreviventes, se a Funai não estivesse presente naquele momento.
Esse encontro, acompanhado por repórteres de O Estado de S.Paulo, foi filmado por Carelli e suas imagens foram para um programa da TV Globo chamado Fantástico, o que gerou muita contrariedade na região, na cidade e entre os fazendeiros e seu advogado. Eles tentaram negar que os irmãos fossem índios. O Estado de S.Paulo passou a publicar a versão dos fazendeiros, e não abriu espaço para os indigenistas retrucarem.
A questão mergulha na invisibilidade; aquela exposição na tevê foi tão importante que, quando a Polícia Militar prendeu Carelli a mando de um dos fazendeiros, o que o salvou foi dizer que o proprietário acabaria no Fantástico também... E, assim, o proprietário diz para os policiais o soltarem.
A ilegalidade geral na invasão das terras indígenas e os massacres sofridos por esses povos não importam para os meios de comunicação. E, no tocante ao Judiciário, Carelli percebe que, por mais provas que reúna, os criminosos jamais serão responsabilizados. Uma zarabatana para os que falam em estado de direito no Brasil. O que lhe sobrou? Contar a história, impedir que ela se tornasse completamente invisível.
Neste sábado, na Mostra, vi dois filmes do Guarani Ariel Ortega: Desterro Guarani e Bicicletas de Nhanderu. No primeiro, um índio afirma que eles se tornaram estrangeiros e invisíveis nas terras que ocuparam.
Essa violência persiste. Elpídio Pires, um Guarani, em depoimento dado em maio de 2013 a Marcelo Zelic, fez uma reivindicação por verdade e justiça:
Hoje a Comissão da Verdade, instituída pelo governo Dilma, investiga os abusos praticados pela ditadura, inclusive contra os índios. Mas de que adianta se hoje se praticam agressões semelhantes àquelas praticadas naquela época e se o Estado não reconhece a sua responsabilidade pela política indigenista equivocada que resultou no desterro desses povos? Se os presos políticos da ditadura recebem reparação do Estado brasileiro pelos abusos sofridos, por que os índios não merecem a sua reparação. Por desprezo? Por considerá-los cidadãos de segunda categoria, entrave ao desenvolvimento nacional, ameaça à soberania do território nacional? Por racismo? Aos índios é negado o direito à memória, a verdade histórica, o direito a voz!Diversos estudos continuam contribuindo para essa invisibilidade, alguns deles de pessoas que passaram a escrever sobre assuntos relacionados com a justiça de transição, e continuam, em pleno 2014, a falar de 400 mortos, como fez recentemente Paulo Arantes em evento no ECLA (Espaço Cultural Latino-Americano, em São Paulo), em que tratou de seu novo livro, O novo tempo do mundo (2014). A obra, por sinal, não conseguiu avançar, nesse aspecto, em relação ao ensaio contido em O que resta da ditadura (2010). Note-se que o interessante livro novo tem um capítulo sobre as revoltas de 2013 sem mencionar a Mobilização Nacional Indígena e a ocupação do Congresso Nacional pelos índios - apenas se lembra, numa digressão, que o índio é "ingovernável" e sobre ele o "neodesenvolvimentismo" "está passando agora o rodo da solução final" (p. 404; ele diz algo parecido a partir dos dez minutos desta entrevista dada à TV Carta Maior). Ele não estuda a resistência contra esse "rodo" na extensa bibliografia que consultou para escrever o livro.
Em nota, porém, o autor reconhece seus limites: "minha visão é muito paulista, para não dizer paulistana, mas não há nada que possa fazer a respeito" (p. 409). Poderia talvez visitar e apoiar as aldeias em São Paulo ameaçadas de remoção - é o problema da Terra Indígena Jaraguá, a menor do país. Os Guaranis, que não têm para onde ir, estão sendo processados para que se construa um posto de gasolina em suas aldeias! Essa é uma das razões para a Campanha Resistência Gurani SP e sua petição: http://campanhaguaranisp.yvyrupa.org.br/?page_id=20
Note-se que remover índios em prol do culto ao carro, além de ilegal, é uma coisa tradicionalmente paulista, e uma das raízes do monumental fracasso urbano de São Paulo. É um sinal da invisibilidade política desses povos que esse escândalo não esteja mobilizando a população dessa cidade.
Essa invisibilidade, que Carlos Alberto Ricardo chama de tradicional esquecimento da existência de índios no Brasil, tem um propósito político, que é o de espoliação de suas terras e destruição de suas culturas. Nesse sentido, são extremamente violentos no que silenciam, as atas do Conselho de Segurança Nacional (CSN) que tratam dos projetos de colonização da Amazônia.
Silencia-se, acima de tudo, a existência dos povos indígenas, com direitos e terras previstos em lei mesmo naquela época. O Programa de Integração Nacional (PIN), oficialmente criado pelo decreto-lei n. 1.106 de 16 de junho de 1970, tinha como finalidade a "expansão da fronteira econômica nacional, principalmente em relação ao Planalto Central, vales úmidos do Nordeste, e, progressivamente, a AMAZÔNIA, para tirar proveito da dimensão continental" (em caixa alta no original, como se pode ver na imagem), destaca o relatório do CSN, na época dirigido pelo futuro presidente Figueiredo. Trata-se de trecho da 18a. consulta ao CSN, em que se decidiu considerar "indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais terras devolutas situadas na faixa de cem quilômetros de largura, em cada lado, do eixo de rodovias na Amazônia Legal", o que foi formalizado pelo decreto-lei n. 1164, de 1o. de abril de 1971.
O massacre dos corpos dos índios pelos projetos rodoviários da ditadura era, pois, prefigurado pela sua invisibilidade política e jurídica imposta no planejamento da segurança/desenvolvimento nacional pelos militares.
No trecho que destaquei da ata da 27a. consulta ao Conselho de Segurança Nacional, de 30 de outubro de 1972, o caráter do PIN, que tinha como um dos seus objetivo a colonização das faixas lindeiras das rodovias federais, "medida do mais alto interesse para a segurança e desenvolvimento nacionais". Previsivelmente, não se dedica nenhuma palavra para os povos atingidos por esses projetos.
Há vários outros casos semelhantes, num modus operandi de extermínio. Em Corumbiara, o primeiro massacre que é tratado pelo filme envolve justamente a abertura de uma estrada de terra em cima de aldeia, o que foi verificado pela polícia federal.
Ainda não se sabe quantos milhares de índios foram mortos durante a ditadura militar; de qualquer forma, trata-se de número muito superior a de outros grupos juntos. Daí impressiona que o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, afirme que "a tendência é que a CNV consiga quantificar em torno de 400 o número de vítimas da repressão no Brasil". Talvez ele não esteja acompanhando os trabalhos do grupo sobre índios e camponeses, coordenado por Maria Rita Kehl. Por sinal, Bessa Freire noticiou, no início deste mês, que o Comitê Estadual da Verdade do Amazonas vai publicar relatório, já enviado à CNV, comprovando o massacre de várias etnias.
Os índios não deveriam ser contados porque não foram ativistas que lutaram contra a ditadura? Ora, a Comissão foi criada, segundo o artigo primeiro da lei n. 12528/2011, com a "finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no artigo 8o. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias", isto é, de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição de 1988. Se genocídio não é uma grave violação de direitos humanos (e é anterior a 1964, documentou-a o Relatório Figueiredo), então não sei o que possa ser. Imaginem se Eichmann, por exemplo, afirmasse que milhões de judeus e ciganos não poderiam ser contados como vítimas do Estado alemão porque não eram ativistas contra o regime...
Para terminar esta breve nota, lembro que o Balanço de Atividades do primeiro ano da CNV trai temporalmente (afirma-se explicitamente que a "prioridade o levantamento das informações relacionadas às mortes e desaparecimentos ocorridos durante o regime de 64-85") seu mandato legal, o que me parece bastante equivocado, como se no período 1945-1964 não houvéssemos tido também perseguição e assassinato de militantes políticos, censura à imprensa e - não custa lembrar - genocídio indígena. Tampouco no governo Sarney (que tem um representante na CNV, deve-se lembrar), em que a violência no campo e na floresta foi grande. No campo, eis que os camponeses também são vítimas tradicionais de violações graves de direitos humanos.
Lembro agora de Paulo Sérgio Pinheiro (também da Comissão): "Em 1974, começo da abertura política mais longa do mundo, foram assassinados 22 trabalhadores. Em 1985, primeiro ano da Nova República, foram assassinados dez vezes mais trabalhadores rurais: 222." (em Democracia x Violência, da Comissão Teotônio Vilela. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986).