O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 13 de agosto de 2016

Poesia e tremor III: Treme o corpo em fuga, ou A casa elástica de Eduardo Jorge

Já escrevi duas notas sobre a intimidade da poesia contemporânea com os abalos sísmicos: sobre Escala Richter de Leonardo Gandolfi e as Tróiades de Guilherme Gontijo Flores, livros muito diferentes entre si, de tão vários são os abalos de hoje, e tão diversos os temperamentos dos poetas. Outra obra recente, que também percorre trilhas originais, é A casa elástica (Minisséries) (São Paulo: Lumme Editor, 2015), de Eduardo Jorge. Poucas vezes a experiência do corpo migrante e sua passagem (seja no Brasil, seja no exterior) foi expressa com tanta intensidade na poesia brasileira quanto nesse livro.
Ele parte da experiência do estrangeiro que tem que compartilhar com outro, mais velho, um cômodo de "Dezessete metros quadrados". A seção é dedicada a Contador Borges. Nela, a experiência de confinamento é tanto física quanto social: “imigrantes em pares de sapatos, com pão e um aparelho rádio./ participam do país pelas orelhas”.
As "minisséries", além de constituírem sequências de poemas, expressam esse tipo de experiência no espaço: o mundo pode ser vasto, porém o espaço é pequeno, por mais que se viaje. Ao fim d'A casa elástica, resta a tentativa de fazer do próprio corpo a casa, ou da casa um corpo.
As seções seguintes do livro referem-se a outras experiências congêneres: diversas mudanças de endereço (muitos deles no Brasil, outros na Europa), correspondência devolvida, as palavras e os corpos sempre em viagem: “na pele escrita à unha,/ um pedido para ficar./ enquanto o barqueiro/ espera, há dois motivos/ para ensaiar o voo,/ abandonar a cidade em febre”.
A segunda seção, "A casa elástica", cita ironicamente um verso de Adoniran Barbosa, "tenho minha casa pra olhar"; no último poema, faz-se uma brincadeira com Mondrian: "uma linha seguida de outra, Mondrian Adoniran:/ mínima casa para morar". O poema termina, apropriadamente, com uma citação de Trem das Onze: "não posso ficar".
"Onze endereços, quase a mesma morada", a seção seguinte, é mais impactante na experiência desse corpo que tem que se deslocar incessantemente (tal é a experiência da "casa elástica") e, nos transportes e nos choques que vivencia nos diferentes lugares, vacila. O primeiro, "rua santa clara, 261". impressiona na apresentação das necessidades básicas do corpo (a epígrafe, agora, é de Valéry, com o trecho "Les voix de la chair sont élémentaires") e como elas determinam a própria experiência do tempo: "o dia seguinte está na distância entre os buracos brancos do pedaço de pão e o balanço sonoro dos corpos que dormiam no veículo. mesmo aos mais atentos, a música está no corpo que treme," Em outro momento marcante, temos a tensa experiência do imigrante a contar dinheiro brasileiro na "calle mártir olaya, 280".
Nessa seção e nas outras, a proliferação e a dispersão de imagens parecem emular o deslocamento incessante do sujeito; esta passagem é um bom exemplo da poética deste livro: “o herói incontornável/ do poeta olhando com/ escrita como um coro/ de toalhas brancas faz/ parte da imitação de/ Sófocles sétimo andar/ as toalhas, serpentes/ complicadas contra o/ látex azul e o pigarro/ da hóspede passada/ ornam a rota de fuga [...]”. Nos melhores momentos, a poesia se torna a própria rota de fuga.
A penúltima seção tem o nome de um endereço em Madri,"paseo de santa maría de la cabeza, s/n. (correspondência incompleta)", com imagens de migrantes que partem, ficam, passaportes, hematomas e tensões.
Mais interessante é o final, a seção “Peça para a casa”, toda de poemas em prosa, confirmando que o assunto do livro não são os bens imóveis. No final, temos: “Peça para a casa os princípios dos portos, das rodoviárias, dos aeroportos e das estações no sentido de que são ambíguos: quem está partindo, quem está voltando. Existem princípios móveis da casa. A casa está lá, sob a pele, inclusive, na sua superfície. [...] Em carne viva, a casa treme, ela está a caminho.” Trata-se quase de pedir que o corpo migrante seja a própria casa, a despeito de fronteiras e nacionalidades.
Falando em casas que tremem e fogem, boa parte da literatura brasileira contemporânea foi encontrar espaço em editoras pequenas. Afinal, o iletramento é a orientação política adotada, mais ou menos abertamente, pelos governos em geral, as políticas para o livro e a literatura se fecham e as grandes editoras estão a buscar alguma nova tendência que possa substituir os livros para colorir (a impressionante queda de trinta por cento, segundo publicação do PublishNews, na venda de livros no varejo é um exemplo disso). Parece que a bola da vez são os youtubers.
Essas editoras menores, infelizmente, nem sempre realizam o trabalho de revisão necessário. Um autor sempre precisa de mais um olhar. O resultado são erros de digitação que aparecem neste livro, como "poema à quatro mãos" (p. 16), "micro-paisagem" (p. 39), "se não houvessem nomes" (p. 65) etc. Isso é responsabilidade editorial - mas o Lumme Editor vacilou neste ponto.
Dito isso, espaçaria], que era a obra de Eduardo Jorge que eu conhecia, não me preparou para este salto do livro novo, para este movimento; "A água escorre em chuveiro aberto, ela escorre em torneiras, águas de permanência selvagem".

Jonas Kaufmann com Helmut Deutsch no Brasil

O tenor alemão Jonas Kaufmann veio ao Brasil, pela primeira vez, com o pianista Helmut Deutsch para um recital na Sala São Paulo no último 10 de agosto. Uma grande estrela da ópera, veio, no entanto, interpretar canções de câmara.
Já vi pessoas confundindo esses gêneros, mas as exigências são diferentes. Para um cantor de ópera, o repertório de câmera, que exige um canto mais íntimo, em que a restrição dos meios é tão importante, pode ser vocalmente muito desconfortável. Vejam a diferença entre cantar a "Ave Maria" de Schubert, no original (ou seja, em alemão e com piano) e uma cena de ópera; no caso, A Valquíria, de Wagner, com uma orquestra possante, nos dois casos, com Jessye Norman;
Schubert: https://www.youtube.com/watch?v=do5ZmQQM8AE
Wagner: https://youtu.be/vb_g8GXrZPc?t=1m15s
Vejam que não é realmente o mesmo uso da voz; um cantor pode ser adequado para a música de câmera e não para ópera, e vice-versa. Ademais, ao contrário da canção de câmara, muitas vezes, em ópera, a palavra é bem menos importante do que a música; veja-se o final d'As bodas de Fígaro, de Mozart (exemplo do Joseph Kermann em A ópera como drama), momento em que o libreto (de Lorenzo dal Ponte) não tem valor poético algum, e é a música que transfigura tudo.
Mas pode-se escolher este outro exemplo da mesma ópera; as cantoras (Renée Fleming e Cecilia Bartoli) repetem as mesmas palavras, é a música que sustenta o interesse: https://www.youtube.com/watch?v=BLtqZewjwgA
Dito isso, o libreto das Bodas é maravilhoso. Essas repetições ajudavam, claro, o público a entender o texto e tinham valor mnemônico.
Já a canção de câmera é, em geral, feita a partir de poemas; nem sempre os melhores, mas poemas (muitos dos maiores poetas foram musicados: Celan, Heine, Baudelaire, Goethe...). Nem sempre o cantor de ópera possui o tipo de sensibilidade para a palavra específica para a canção de câmera.
Alguns cantores conseguiram fazer coisas excelentes nos dois campos; creio que é o caso de Dietrich Fischer-Dieskau; também é o de Hermann Prey. Entre os tenores, o falecido Ernst Haefliger, schubertiano, bachiano e mozartiano, foi um exemplo e, com uma voz muito diversa (é só comparar ambos cantando o Florestan...), Jonas Kaufmann também é um caso de sucesso. O pianista Helmut Deutsch, que o acompanhou, é um dos grandes pianistas atuais do Lied (a canção de câmera germânica) e já gravou discos com o tenor.