O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 30 de abril de 2017

Direitos humanos do cassetete





Não o de ser rompido
na cabeça intransigente
de transeuntes que sem licença
andam pela cidade
como se as ruas não imitassem minha forma

Não o de ser quebrado
no corpo de militantes
como se eu também não tivesse um corpo
mais homogêneo, sem divisões
pois ele é todo repressão
perfeito, sem divergências,
tudo em mim
serve para a ordem

Não o de ser partido
na testa que ostenta vaidosa a si mesma
como se eu também não tivesse partido, o da ordem
e a ordem de hoje é partir

Não o de ser dividido em dois
no crânio de militantes
ao contrário deles
não tenho aberturas
como boca e olhos
portas de entrada para mim
ao contrário dos crânios
não sou oco por dentro
não sirvo de esconderijo para pensamentos
e outros instrumentos da desordem

Tampouco o direito de respirar por aparelhos
eu o dispenso, mesmo na minha atmosfera preferida,
a do gás lacrimogêneo
nunca me falta fôlego
é o Estado que não consegue respirar sem mim

Eu, o cassetete,
sou o verdadeiro titular de direitos humanos
porém nenhum daqueles

E sim, embora rompido por testas intransigentes,
detenho o direito humano da integridade
física pessoal política

Meu direito nunca foi cassado

Garantido
por
fardas
jornais
togas
e outros acessórios
menos íntegros do cassetete

sexta-feira, 28 de abril de 2017

#GreveGeral


O que se deve
faz-se afinal,
o que nos devem,
o quanto e qual,
será entregue
por bem, por mal,
o braço se ergue em
greve geral;

existem direitos demais temos que superar isso, o pé, além de pisar, pode até chutar
não haverá ônibus, pagaremos táxis para os servidores chegarem ao trabalho
existem direitos demais, precisamos cortar alguns, basta que a terra seja pisada e aberta
os táxis ficaram com medo de atender só aos servidores, atenderão a todos, desde que sejam cidadãos e se dirijam ao trabalho 
o pé pode pisar a terra, a terra pode ser escavada, e nela guardamos os direitos, um dia poderiam germinar, se estivessem vivos
como os cidadãos também não quiseram, decreto que os servidores durmam na repartição até acabar a greve

entrar em greve,
ação total,
produto leve,
descapital,
criado em série,
marcha jogral,
o grito segue,
ressoa igual
ao juro, ao spread,
mesmo ao jornal
que nada escreve
do industrial
ritmo que segue,
marcha atual
porque a greve
cria o geral.

a terra, aberta, não sairá andando, pode receber os pés e tudo o que sobrar do corpo plantado com os direitos, se tivessem raízes, quem sabe cresceriam
mas o próprio prédio da repartição ausentou-se, demitimos estes cidadãos e esta arquitetura, encontraremos uma cidade mais dócil para abrigar a prefeitura,  
eles crescem, os direitos e os corpos; temos que atacar a raiz da subversão, onde ela se planta, tudo se pode dar, chegou a hora de devastar a terra

(gritos e juras
greve geral
os graves juros
greve geral
mais groove e gira
greve geral
mais ginga e jump
greve geral
jari, jirau?
greve geral)

O ministério da justiça desempacota as bombas para receber a passeata dos direitos;
Se temos escravos ainda para que mantermos dispendiosos direitos trabalhistas, privilégio dos que ainda estão livres? Acabemos com o privilégio da liberdade, exceto para os senhores, óbvio, se não o que  digo não fará sentido.
A secretaria de segurança resolve ampliar seu palácio faz obras sob as togas, sobre as redações dos jornais, dentro dos robôs de redes sociais para acomodar a importação de escudos e balas;
Introduzo a tese, as greves faziam sentido quando prejudicavam os patrões, estou desenvolvendo que estamos no capitalismo humanista, a empresa tem hoje uma função social, concluo enfim que o grevista é um criminoso contra a humanidade. Já sou pós-doutor?
O economista explica que exercer direitos gera custos enquanto exerce a liberdade de expressão;

Todo o local
vira intempérie:
as balas ferem,
tudo normal,
o tiro reflete a
voz oficial;
as bombas fedem,
hálito usual
do Estado, verme
intestinal
que indigere
o ar vital.

Não quero greve porque não gosto de carro de som, as músicas são tão fracas, às vezes até índios e chocalhos participam, não quero acabar na mata,  prefiro chegar em Brasília com a trilha sertaneja do agronegócio. 
O geneticista revela a origem mórbida dos direitos e recomenda engenharia genética nos trabalhadores para gerar mais empregos;
Por que fazer greve em dia de trabalho? Não é contraditório? Por que não vai fazer greve quando estiver morto? Greve de apodrecer? De cheirar mal? Daqui a pouco vão dizer que existe diferença entre patrão e empregado, vida e morte, inteligência e alguma outra coisa que esqueci.
A professora de direito penal fiscaliza se os banheiros entraram em greve, promete prender o governo se os odores não forem produzidos, assegura os cidadãos da continuidade da produção de merda.
Falam de "direito do trabalho", mas antes disso vem o "trabalhar direito"; falam do trabalhador, mas antes do "trabalha" vem a "dor". Está no Pentateuco, e antes do penta te dou um teco.

O que se deve
faz-se afinal,
o braço ergue em
greve geral
nada mais leve
que a capital,
agora entregue
na rua-coral
ao risco à febre
desvertical

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Desarquivando o Brasil CXXXVI: Homenagem a Romeu Tuma e desserviço à memória e à democracia

O vereador Eduardo Tuma propôs neste ano o projeto de lei 22/17 que homenageia o próprio tio, o falecido Romeu Tuma, ex-diretor do DOPS de São Paulo, um homem cuja carreira ultrapassou as dimensões institucionais da polícia: quando morreu, em 2010, no mesmo dia do ex-presidente da Argentina Néstor Kirchner, ele era senador da república e colunista da revista Carta Capital.
Ou se trataria de um homem cuja carreira demonstra como a polícia teve suas próprias dimensões alargadas pelo princípio da segurança nacional? Não sei. A tramitação do projeto, que "Acrescenta à denominação da Ponte das Bandeiras o nome Senador Romeu Tuma", foi célere: a aprovação ocorreu em 21 de março.
A sumária justificativa, publicada no Diário da Câmara de 2 de fevereiro, limitou-se a reproduzir uma sucinta biografia, extremamente lacônica nesta parte: "Foi diretor geral do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) paulista de 1977 a 1982. Em 1982, tornou-se superintendente da Polícia Federal no Estado de São Paulo, e em 1985, torna-se diretor geral do órgão."
O nobre vereador, autor do projeto da lei que criou o dia do "capitalismo humanista" em São Paulo, esqueceu de incluir que seu tio figura entre os agentes de graves violações de direitos humanos no relatório da Comissão Nacional da Verdade, na página 871 do segundo tomo do primeiro volume:
130) Romeu Tuma (1931-2010) Delegado da Polícia Civil do estado de São Paulo. Atuou no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP) de 1969 a 1982, período em que o órgão teve grande envolvimento com atividades de repressão política. Foi seu diretor de 1977 a 1982. Em 1982, assumiu a superintendência da Polícia Federal em São Paulo e, em 1985, tornou-se diretor-geral.
Não se tratava, é claro, de descoberta da CNV; as denúncias eram antigas. Pode-se, por exemplo, lembrar de Suzana Lisboa, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, afirmando que Romeu Tuma havia mentido sobre a execução de seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisboa, que foi um dos poucos identificados entre os desaparecidos políticos ocultados no cemitério de Perus, em São Paulo. Ele havia sido enterrado sob o nome falso de Nelson Bueno. Cito matéria de Patrícia Benvenuti para o Brasil de Fato:
Questionado por um juiz, que solicitou ao Dops informações sobre Lisboa, Tuma afirmou que não havia registros em nome de Nelson Bueno. Em 1991, porém, quando Suzana teve acesso aos arquivos do Dops, ela encontrou uma lista de 1978, endereçada a Tuma, onde constava o nome de Luiz Eurico e a informação de que havia morrido em setembro de 1972. “Tuma mentiu sobre meu marido, dizendo que não tinha informações sobre ele”.
[...]
Em março de 1983, com a extinção do Dops, Tuma assumiu o cargo de superintendente regional da Polícia Federal em São Paulo, para onde levou os arquivos do órgão que comandava. O objetivo, segundo Suzana, era “evitar que a esquerda ou que nós [familiares e organizações de direitos humanos] tivéssemos acesso”.
Mais tarde, Tuma passou a ser acusado, com mais força, de alterar os arquivos do Dops e omitir uma série de documentos importantes para a elucidação de crimes. As fraudes teriam ocorrido quando o ex-presidente Fernando Collor de Mello se propôs a entregar, ao governo de São Paulo, os arquivos do Dops.
Dom Paulo Evaristo Arns, na época, afirmou ter recebido denúncias de que os arquivos estariam sendo esvaziados, o que motivou uma vigília de vítimas da repressão e familiares em frente à sede da Polícia Federal, na capital paulista.
A nova lei municipal representa um enorme desserviço à justiça de transição e, portanto, à democracia e à memória social. A opção política pela homenagem às graves violações de direitos humanos coloca a Câmara dos Vereadores de São Paulo em posição contrário ao princípio da dignidade da pessoa humana. O Ministério Público de São Paulo (lembrando das várias citações no relatório da CNV), a Secretaria Municipal de Justiça e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos haviam recomendado que o Prefeito Doria vetasse o projeto. Ele teria a base legal para fazê-lo, mas se absteve, deixando que a lei seja promulgada pela Câmara, desprestigiando assim aquelas Secretarias da Administração municipal (como já fez com a Secretaria de Cultura). Mônica Bergamo escreveu matéria sobre o caso ("Prefeitura libera o uso de nome de Tuma para ponte das Bandeiras").
Sobre a base legal, a lei municipal 14.454, de 27 de junho de 2007, em seu artigo 5º ("É vedada a alteração de denominação de vias e logradouros públicos, salvo nos seguintes casos:"), modificada por outra lei municipal (15.717, de 23 de abril de 2013), prevê esta hipótese de proibição de mudança de nome de vias e logradouros: "IV – quando se tratar de denominação referente à autoridade que tenha cometido crime de lesa-humanidade ou graves violações de direitos humanos."
De acordo com o relatório da CNV, trata-se do caso de Romeu Tuma.
No tocante à tramitação do projeto, apenas quem se opôs à homenagem foram parlamentares do PSOL. Note-se que o vereador Reis, do PT, votou a favor do projeto na Comissão de Constituição, Justiça na sessão extraordinária de 22 de fevereiro de 2017, que aprovou o parecer conjunto das Comissões da Câmara (segundo o próprio vereador, porém, "Em seu primeiro mandato na Câmara Municipal de São Paulo, Reis dará voz aos movimentos populares, aos defensores dos direitos humanos").
Trata-se de documento de qualidade técnica diretamente proporcional à extensão de suas breves e míseras linhas:
O SR. PRESIDENTE (Senival Moura - PT) - Há parecer, que será lido.
- É lido o seguinte:
“PARECER CONJUNTO N° 23/2017 DAS COMISSÕES REUNIDAS DE CONSTITUIÇÃO, JUSTIÇA E LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA; COMISSÃO DE POLÍTICA URBANA, METROPOLITANA E MEIO AMBIENTE; COMISSÃO DE EDUCAÇÃO, CULTURA E ESPORTES; E COMISSÃO FINANÇAS E ORÇAMENTO SOBRE O PROJETO DE LEI N° 0022/2017.
Trata-se de projeto de lei de autoria do nobre Vereador Eduardo Tuma que acrescenta à denominação da Ponte das Bandeiras o nome Senador Romeu Tuma.
Sob o aspecto estritamente jurídico, o projeto pode seguir em tramitação, como veremos a seguir.
Com efeito, a matéria de fundo versada no projeto é de nítido interesse local, estando albergada pela competência legislativa prevista no art. 30, I, da Constituição Federal.
De modo ainda mais expresso o art. 13, XVII, da Lei Orgânica do Município respalda a propositura, verbis:
Art. 13 - Cabe à Câmara, com a sanção do Prefeito, não exigida esta para o especificado no artigo 14, dispor sobre as matérias de competência do Município, especialmente:
...
XVII - autorizar, nos termos da lei, a alteração de denominação de próprios, vias e logradouros públicos.
Para ser aprovado o projeto depende de voto favorável da maioria absoluta dos membros desta Casa nos termos do art. 40, § 3o, XVI da Lei Orgânica do Município.
Pelo exposto, somos pela LEGALIDADE
Quanto ao mérito, as Comissões pertinentes entendem inegável o interesse público da proposta, razão pela qual se manifestam FAVORAVELMENTE ao projeto de lei.
Quanto aos aspectos financeiros a Comissão de Finanças e Orçamento nada tem a opor, vez que as despesas com a execução da lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias.
FAVORÁVEL, portanto, o parecer.
Sala das Comissões Reunidas, 22/02/17
COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO, JUSTIÇA E LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA
Reis (PT)
Janaína Lima (NOVO)
Rinaldi Digilio (PRB)
Caio Miranda Carneiro (PSB)
Zé Turin (PHS)
Claudinho de Souza (PSDB)
COMISSÃO DE POLÍTICA URBANA, METROPOLITANA E MEIO AMBIENTE
COMISSÃO DE EDUCAÇÃO, CULTURA E ESPORTES
Claudio Fonseca (PPS)
Aline Cardoso (PSDB)
Celso Jatene (PR)
George Hato (PMDB)
Toninho Vespoli (PSOL) - contrário
COMISSÃO DE FINANÇAS E ORÇAMENTO
Isac Felix (PR)
Ota (PSB)
Reginaldo Tripoli (PV)
Rodrigo Gomes (PHS)
Rodrigo Goulart (PSD)”
O SR. PRESIDENTE (Senival Moura - PT) - Em discussão. Não há oradores inscritos; está encerrada a discussão. A votos o PL 22/2017. Os Srs. Vereadores favoráveis permaneçam como estão; os contrários, ou aqueles que desejarem verificação nominal de votação, manifestem-se agora. (Pausa) Tem a palavra o nobre Vereador Toninho Vespoli.
O SR. TONINHO VESPOLI (PSOL) - (Pela ordem) - Sr. Presidente, requeiro seja consignado meu voto contrário.
O SR. PRESIDENTE (Senival Moura - PT) - Registre-se o voto contrário do nobre Vereador Toninho Vespoli. Aprovado em primeira discussão, volta em segunda.
- Assume a presidência o Sr. Eduardo Tuma.
Nessa ocasião, apenas Toninho Vespoli (PSOL), da Comissão de Política Urbana, votou em contrário.
Na sessão extraordinária de 21 de março, o projeto foi aprovado em plenário. As vereadoras do PSOL Sâmia Bonfim e Isa Penna foram contrárias, e Antonio Donato, do PT, apenas se absteve:
O SR. PRESIDENTE (Milton Leite - DEM) – [...]
Passemos ao item seguinte.
- “PL 22/17, do Vereador EDUARDO TUMA (PSDB). Acrescenta à denominação da Ponte das Bandeiras o nome Senador Romeu Tuma. (Situado ao longo da Avenida Santos Dumont sobre o canal do Rio Tietê e a Avenida Presidente Castelo Branco (Setores 018 e 073/ARs SÉ e ST), no Subdistrito – Vila Guilherme). FASE DA DISCUSSÃO: 2ª. Aprovação mediante voto favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara.
O SR. PRESIDENTE (Milton Leite - DEM) – Em discussão. Não há oradores inscritos; está encerrada a discussão. A votos o PL 22/17. Os Srs. Vereadores favoráveis permaneçam como estão; os contrários, ou aqueles que desejarem verificação nominal de votação, manifestem-se agora.
A SRA. SÂMIA BOMFIM (PSOL)- (Pela ordem) – Registre-se meu voto contrário.
A SRA. ISA PENNA (PSOL) – (Pela ordem) - Registre-se meu voto contrário.
O SR. ANTONIO DONATO (PT) - (Pela ordem) – Registre-se minha abstenção.
O SR. PRESIDENTE (Milton Leite - DEM) – Registrem-se os votos contrários das Vereadoras Sâmia Bomfim e Isa Penna e abstenção do Vereador Antonio Donato. Aprovado. Vai à sanção.
A Câmara e o Prefeito ignoraram também o relatório da Comissão da Verdade da Prefeitura, publicado no suplemento ao Diário Oficial de 15 de dezembro de 2016, o que, seja por ignorância, seja por cálculo, é no mínimo inadequado e lamentável para detentores de cargos políticos no Município, porquanto se trata de um relatório oficial com diversas recomendações aos administradores.
O texto, naturalmente, cita algumas vezes Romeu Tuma, especialmente a ação que o Ministério Público Federal movia contra ele alegando o cometimento de crimes durante a ditadura militar, extinta para o réu em razão de sua morte.
O capítulo sobre a repressão aos movimentos sociais refere-se ao antigo delegado mais de uma vez. Em uma delas, o tema é a repressão ao movimento contra a carestia, que, em razão do desastre econômico e social da ditadura militar, tinha voltado às ruas no fim dos anos 1970 e início da década seguinte:
19. A data de 27 de agosto de 1981 foi novamente escolhida como “dia nacional da luta contra a carestia”, mantendo a tradição iniciada em 1978. Nela se realizou ato público nas escadarias da Catedral da Sé, com faixas em solidariedade a militantes contra a carestia presos na Bahia e mensagens favoráveis ao congelamento de preços. A passeata foi até as escadarias do Teatro Municipal com os slogans “1, 2, 3 / Maluf no xadrez”, “Abaixo a repressão / mais arroz, mais feijão” e “Vai acabar / a ditadura militar”.
20. Agentes do Deops/SP se infiltraram na passeata e seu diretor, o delegado Romeu Tuma, comunicou a realização desse ato em São Paulo, por meio de telegrama, ao SNI, ao II Exército, ao IV Comando Aéreo Regional (Comar), ao Comando Naval e à Polícia Federal. O relato dos atos reivindicatórios realizados em São Paulo para toda a rede nacional de repressão e vigilância era praxe do Deops/SP, e confirmava que os temas sociais continuavam a ser, como na República Velha, problemas de polícia. Os movimentos sociais eram encarados como inimigos internos do regime. [p. 197]
O então delegado Romeu Tuma enviava informações recebidas da Prefeitura aos órgãos repressivos de Brasília como o SNI, bem como a órgãos das Forças Armadas em São Paulo e à Secretaria de Segurança Pública do Estado. Nesta outra passagem, o relatório aborda a repressão aos movimentos de moradia:
66. As informações encaminhadas pela Prefeitura ao Deops/SP eram às vezes difundidas para outras instituições de vigilância e repressão, em outros Estados, não se destinando apenas à polícia política de São Paulo. Em 1979, reunião do secretário Municipal das Administrações Regionais, Francisco Martins, com o Movimento dos Moradores de Loteamentos Clandestinos realizada no Gabinete do prefeito foi prontamente relatada, no mesmo dia 24 de outubro, pelo diretor do Deops/SP, delegado Romeu Tuma, por meio de telegrama, ao SNI, ao II Exército, ao IV Comar, ao Comando Naval e à CIOP-SSP-SP (Coordenadoria de Informações e Operações da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo).
67. Em 16 de julho de 1980, uma “comissão de favelados”, conforme o registro feito pelo agente do Deops/SP, acompanhada pelos deputados Aurélio Peres, Irma Passoni e o vereador Benedito Cintra, foi recebida por Tufi Jubran, chefe de Gabinete do prefeito, e, em seguida, pelo próprio prefeito. “Expuseram reivindicação no sentido de que as creches em construção na periferia tenham administração e sejam lotadas com funcionários da Prefeitura”, diz a anotação.
68. O mesmo movimento teve outra reunião, em 13 de janeiro de 1981, acompanhado do advogado do Centro Jurídico XXII de Agosto (da faculdade de Direito da PUC-SP), com Tufi Jubran, então secretário de Assuntos Extraordinários. Os vinte representantes do movimento entregaram reivindicações para a legalização dos loteamentos. O secretário afirmou que “encaminharia as reivindicações para estudos” e marcou nova reunião. No mesmo dia, o diretor do Deops/SP, delegado Romeu Tuma, enviou a informação, por meio de telegrama, ao SNI, ao II Exército, ao IV Comar, ao Comando Naval e à Polícia Federal.  [p. 210]

O relatório da Comissão da Verdade da Prefeitura não reproduziu os documentos referidos, salvo alguns poucos nos anexos. Ao lado, reproduzo um dos que foram aqui citados, um telegrama do então chefe do DOPS ao Serviço Nacional de Informações, ao Comando Aéreo Regional, à Comissão Naval e à Coordenadoria de Operações e Informações da Secretaria de Segurança Pública.
O documento está no fundo DEOPS/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Não só os agentes do DOPS estavam presentes na Prefeitura, como ela enviava informações para a polícia, cumprindo um papel no sistema de repressão e vigilância da ditadura militar. Dessa forma, o Executivo municipal acabou por servir para infiltrar e espionar movimentos sociais que demandavam direitos e assistência dos órgãos municipais. A questão social continuava sendo uma questão de polícia.
Nesta outra passagem do relatório, atesta-se que os movimentos relativos aos transportes públicos também eram espionados:
71. Em 9 de junho de 1982, aconteceu reunião no Gabinete do prefeito sobre reajuste das passagens de ônibus com os representantes das empresas de ônibus. Um tema como esse também era considerado afeto à segurança nacional, e o chefe do Deops/SP, Romeu Tuma, relatou no mesmo dia os encaminhamentos sobre o reajuste para o SNI, o II Exército, o IV Comar e o Comando Naval. Dois dias depois, enviou o informe para a “comunidade de informações”.
72. O próprio prefeito Reynaldo de Barros chegou a declarar à imprensa que recebia informações dos órgãos de segurança e que se reunia com o diretor do Deops, o delegado Romeu Tuma. [p. 211]
Como se trata de família importante em São Paulo (a presença na Câmara atual do sobrinho do falecido delegado demonstra-o), o  relatório lembra também da passagem do irmão de Romeu Tuma, Renato Tuma, à frente da Secretaria Municipal de Defesa Social, época em que foi assassinado o pedreiro e sem-teto Adão Manoel da Silva:
165. A GCM passou a ter como atribuições, segundo a redação original do artigo 1º da Lei, “a vigilância dos próprios municipais e a colaboração na segurança pública”. A referência à segurança pública serviu de pretexto para a nova institucionalização municipal da doutrina de segurança nacional.
166. A GCM nasceu ligada à então Secretaria Municipal de Defesa Social, cujo titular era Renato Tuma (irmão de Romeu Tuma, que havia sido delegado do Deops/SP), e teve como primeiro comandante o coronel José Ávila da Rocha, que, à frente da Secretaria da Família e do Bem-Estar Social, como se viu neste relatório, ficou conhecido por perseguir movimentos sociais e funcionários municipais segundo os parâmetros da doutrina de segurança nacional, adotando a ótica do inimigo interno.
 167. A GCM promoveu infiltração em movimentos sociais, servindo ilegalmente de instrumento de repressão política; segundo seu próprio comandante no governo de Jânio Quadros, coronel José Ávila da Rocha, guardas metropolitanos foram empregados para realizar “infiltração no meio dos invasores”, isto é, infiltração no meio de militantes de movimentos sociais que faziam ocupações. No mesmo governo, surgiu a denúncia, oriunda de um dos agentes da GCM, de infiltração em um partido político, o PCdoB. [p. 237-238]
Como se para ratificar a importância da família, não só o irmão, como o  filho Romeu Tuma Junior é citado no relatório, na recomendação 17:
113. Com base nesse acervo foi possível aferir, no âmbito dos trabalhos desta Comissão, que opositores do regime militar sepultados como desconhecidos tinham identidade conhecida, o que serviu de evidência da colaboração de agentes da Prefeitura para a prática criminosa de ocultação de cadáveres. Também graças ao estudo de documentos ora depositados no prédio da Superintendência, foi possível consultar os prontuários de antigos servidores, como o do diretor Jayme Augusto Lopes, em cuja gestão foi feito um abaixo-assinado denunciando corrupção no Serviço Funerário, e os de Harry Shibata Junior e Romeu Tuma Junior, empregados no Serviço Funerário enquanto seus pais comandavam respectivamente o IML de São Paulo (1976-1983) e  o Deops/SP (1977-1982). [p. 285]
Note-se também que o Prefeito João Doria, ao lavar as mãos e não vetar o projeto aprovado pelo Legislativo, e a Câmara dos Vereadores, aprovando a homenagem, agiram em sentido contrário ao da Recomendação nº 21 da Comissão da Prefeitura, "Prosseguir com as alterações de nomes de logradouros e equipamentos públicos que homenageiam agentes da ditadura", bem como da Recomendação nº 32, "Propor à Câmara Municipal a revogação de homenagens e títulos conferidos a violadores de direitos humanos e impedir que esses violadores sejam homenageados no futuro".
Na justificativa desta última, lemos que "O princípio democrático impede os Poderes Públicos de promover ou apoiar atos e eventos contrários à dignidade humana, bem como homenagear nomes ligados a violações aos direitos humanos." [p. 317].
No entanto, parece que o princípio democrático está afastado desta nova legislatura municipal, bem como do seu Executivo, que, juntos, passando por cima do próprio relatório oficial publicado em dezembro de 2016, calaram a memória da cidade.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Dimitri BR e as ocupações da poesia

Li ano passado o primeiro livro do músico e poeta Dimitri BR, Ocupa (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016). Na orelha, Angélica Freitas refere-se à presença do autor nas Jornadas de Junho de 2013, com outros corpos que ocuparam as ruas.
Vi com muito interesse a afirmação da poeta, pois o livro não corresponde às imagens mais correntes que circulam sobre aquelas manifestações. Decerto elas variaram muito regionalmente, e as pautas foram diversas; em geral, no entanto, protestava-se contra o sistema político e a negação de direitos pelo Estado, a partir das passeatas do Movimento Passe Livre pelo direito à circulação e à cidade.
Em regra, elas suscitaram, do Estado brasileiro, seja à direita ou à esquerda, com apoio dos oligopólios de comunicação, forte repressão, e reformas para tornar mais fácil a criminalização dos movimentos sociais e dos protestos democráticos.
Esses processos, tão importantes em um livro como "Mais cotidiano que o cotidiano", de Alberto Pucheu, publicado em 2013 (como escrevi alhures), não aparecem, de fato, neste livro de Dimitri BR, que se volta às experimentações com o corpo e com o gênero. Esta é a ocupação em que o autor está interessado, a pauta que o faz ir às ruas e às escolas ocupadas; leiam o relato que ele fez de visita a um escola em Realengo, a convite de Luiz Guilherme Barbosa, nas ocupações que os secundaristas fizeram no segundo semestre de 2016: https://t.co/gDxWRbH2ku.
O relato do poeta enfatiza as descobertas que os estudantes fizeram de si mesmos e dos colegas na realização de um projeto coletivo. A descoberta de si e dos outros parece-me ser o centro do livro, em vez de questões da política institucional (o que poderia ser tão convencional...), e, nele, está a sílaba central da palavra "Ocupa". Como o próprio autor escreveu, por sinal: "com ênfase no CU" (https://t.co/wEdyN8cU3c).
Sobre essa questão, a interessante resenha de Rafael Zacca peca por um momento de pudor: http://rafaelzacca.blogspot.com.br/2016/10/o-cu-como-campo-de-testes-em-ocupa-de.html. É evidente o que deve ser escrito para preencher a lacuna nesta palavra, título de um poema: la _ _ na. Ou para completar o enigma destes versos: "quem tem _ _/ tem medo?". A palavra "deus", sugerida pelo resenhista, é incompatível, tem mais de duas letras, não cabe no jogo da forca que Dimitri BR cria aí, e no qual sai perdedor e morto o pudor: "deus deu o cu/ o homem deu/ a culpa" ("dádiva").
As ocupações, em termos de sociologia do direito, fazem parte do repertório de ação dos movimentos sociais e são instrumentos para criação ou para efetivação de direitos de grupos minoritários ou discriminados. Sabe-se que o jargão publicitário se apodera dessa palavra para anunciar exposições em bancos e estabelecimentos congêneres.
Dimitri BR não realiza essa falsificação em "ocupa", muito pelo contrário: a ocupação dos corpos (o primeiro poema aponta que há quem só use dez por cento do corpo para fazer sexo) e dos papéis de gênero, nesta poesia, vincula-se a uma proposta de emancipação, e não à lógica do marketing, para o qual os corpos são recursos para vender produtos.
Os poemas sobre cu e a exploração sensual do corpo convivem harmoniosamente com os que tratam da fluidez de gênero: "toda mulher tem um pau/ nem sempre é cor-de-rosa" ("uma rosa é uma flor"); em desafio à transfobia, presente até mesmo em certas feministas, "pai e mão é quem cria/ mulher é quem quiser ser" ("quem vai querer"); a escolha por parecer Matilde Campilho em vez de Neymar ("football dreams").
Mais fluidez de gênero em "seu nome começa com ele":

meu bem que bom
que você não é
homem

meu bem que bom
que às vezes
você é

A primeira seção, "ocupa", e a terceira, "volta às aulas", concentram os poemas co essas temáticas. "meu pai era drag" lembra que também os bancários (ou todo mundo, talvez) se "montam", não se trata de um privilégio "drag". "filme de gênero" desnuda os pensamentos de uma mulher e de um homem se cruzando "numa rua escura", desnudando a assimetria da situação.
Apesar do tom lúdico de muitos poemas, há também um certo mal-estar ("todo mundo tem/ um armário de onde sair") e um desajuste em relação ao corpo: em "copacabana", que encerra a primeira seção, lemos sobre um corpo que não veste bem roupa alguma: "o P me fica curto, o G me queda largo, acabo com o M/ que me fica curto e largo". Pondera se deveria comprar saias, pensa na origem familiar, na miscigenação, mas só lhe resta "dançar ao som da obra, ruína, obra, eternamente, brasileira, brasileiro/ em progresso.".
Todo este desajuste com o corpo, o gênero e a família encenado em uma loja de departamentos em Copacabana diz respeito à condição nacional? A nacionalidade, neste livro, não é uma fonte de desconcerto tão grande quanto o corpo. Parece ser mais importante a passagem "ontem tornei-me empresário, vi logo/ dívidas imensas, prisão,  degradação e o confisco de meus/ poucos bens, esta calça rota". Como dançar assim, com esta calça e sem as saias que o "jovem amigo" veste?
Aqui, o desajuste que ocupa o artista é parecido com o de uma canção sua, "Eu não consigo me vender direito". Nela, o músico lamenta ironicamente não conseguir se tornar mercadoria, o que faz com que perca o respeito de seus "pares".
Estes desajustes com o capital, porém, não são realmente encarados ou formalmente resolvidos neste livro, o que é algo análogo, talvez, aos processos sociais em 2013, que não lograram tomar o poder.
Eu fui um dos que foram ouvir a música de Dimitri BR depois de conhecer seu livro. Na sua poesia, aquelas questões aparecem de forma bem mais intensa do que na música, ao menos no disco "Todos os dias são bons", em que a voz macia e bem conduzida do barítono e compositor diz achados poéticos seus e de outros. Por exemplo, a suave desolação completa de "o pão tem seis mil anos/ mas o mar tem mais/ você só tem a brisa", de Bruna Beber, ou, letras dele mesmo, "quando o sangue sobe à boca/ é que o samba principia"; "você estende os pulsos/ eu lhe digo: corte". Aqui: https://youtu.be/qFiFdo9Od_Q.
Na poesia, ele é mais ousado tematicamente.
Formalmente, o livro parece-se com uma estreia na medida que é um pouco desigual. Entre poemas menos conseguidos, há até mesmo um que lembra Mário Quintana ("um acerto é um erro/ que mudou de lugar"), e  às vezes a dicção de Paulo Leminski está presente em demasiado ("quando consigo estar em mim/ sempre vale muito a pena/ sempre penso nessa hora/ ainda bem que eu vim").
Esses poemas estão na última seção, "a rua mandou um beijo", que não tem a força da primeira.
Já vi poetas, seguindo a lógica da reserva de mercado, reagir nada alegremente, ou com despeito, à publicação de poesia por nomes de outras áreas. Espero que isso não se repita diante desta estreia tão interessante, que, ao tratar dos corpos, bem encarnou uma das tarefas de que a poesia se ocupa.