Li ano passado o primeiro livro do músico e poeta Dimitri BR,
Ocupa (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016). Na orelha, Angélica Freitas refere-se à presença do autor nas Jornadas de Junho de 2013, com outros corpos que ocuparam as ruas.
Vi com muito interesse a afirmação da poeta, pois o livro não corresponde às imagens mais correntes que circulam sobre aquelas manifestações. Decerto elas variaram muito regionalmente, e as pautas foram diversas; em geral, no entanto, protestava-se contra o sistema político e a negação de direitos pelo Estado, a partir das passeatas do Movimento Passe Livre pelo direito à circulação e à cidade.
Em regra, elas suscitaram, do Estado brasileiro, seja à direita ou à esquerda, com apoio dos oligopólios de comunicação, forte repressão, e reformas para tornar mais fácil a criminalização dos movimentos sociais e dos protestos democráticos.
Esses processos, tão importantes em um livro como "Mais cotidiano que o cotidiano", de Alberto Pucheu, publicado em 2013 (
como escrevi alhures), não aparecem, de fato, neste livro de Dimitri BR, que se volta às experimentações com o corpo e com o gênero. Esta é a ocupação em que o autor está interessado, a pauta que o faz ir às ruas e às escolas ocupadas; leiam o relato que ele fez de visita a um escola em Realengo, a convite de Luiz Guilherme Barbosa, nas ocupações que os secundaristas fizeram no segundo semestre de 2016:
https://t.co/gDxWRbH2ku.
O relato do poeta enfatiza as descobertas que os estudantes fizeram de si mesmos e dos colegas na realização de um projeto coletivo. A descoberta de si e dos outros parece-me ser o centro do livro, em vez de questões da política institucional (o que poderia ser tão convencional...), e, nele, está a sílaba central da palavra "Ocupa". Como o próprio autor escreveu, por sinal: "com ênfase no CU" (
https://t.co/wEdyN8cU3c).
Sobre essa questão, a interessante resenha de Rafael Zacca peca por um momento de pudor:
http://rafaelzacca.blogspot.com.br/2016/10/o-cu-como-campo-de-testes-em-ocupa-de.html. É evidente o que deve ser escrito para preencher a lacuna nesta palavra, título de um poema: la _ _ na. Ou para completar o enigma destes versos: "quem tem _ _/ tem medo?". A palavra "deus", sugerida pelo resenhista, é incompatível, tem mais de duas letras, não cabe no jogo da forca que Dimitri BR cria aí, e no qual sai perdedor e morto o pudor: "deus deu o cu/ o homem deu/ a culpa" ("dádiva").
As ocupações, em termos de sociologia do direito, fazem parte do repertório de ação dos movimentos sociais e são instrumentos para criação ou para efetivação de direitos de grupos minoritários ou discriminados. Sabe-se que o jargão publicitário se apodera dessa palavra para anunciar exposições em bancos e estabelecimentos congêneres.
Dimitri BR não realiza essa falsificação em "ocupa", muito pelo contrário: a ocupação dos corpos (o primeiro poema aponta que há quem só use dez por cento do corpo para fazer sexo) e dos papéis de gênero, nesta poesia, vincula-se a uma proposta de emancipação, e não à lógica do marketing, para o qual os corpos são recursos para vender produtos.
Os poemas sobre cu e a exploração sensual do corpo convivem harmoniosamente com os que tratam da fluidez de gênero: "toda mulher tem um pau/ nem sempre é cor-de-rosa" ("uma rosa é uma flor"); em desafio à transfobia, presente até mesmo em certas feministas, "pai e mão é quem cria/ mulher é quem quiser ser" ("quem vai querer"); a escolha por parecer Matilde Campilho em vez de Neymar ("football dreams").
Mais fluidez de gênero em "seu nome começa com ele":
meu bem que bom
que você não é
homem
meu bem que bom
que às vezes
você é
A primeira seção, "ocupa", e a terceira, "volta às aulas", concentram os poemas co essas temáticas. "meu pai era drag" lembra que também os bancários (ou todo mundo, talvez) se "montam", não se trata de um privilégio "drag". "filme de gênero" desnuda os pensamentos de uma mulher e de um homem se cruzando "numa rua escura", desnudando a assimetria da situação.
Apesar do tom lúdico de muitos poemas, há também um certo mal-estar ("todo mundo tem/ um armário de onde sair") e um desajuste em relação ao corpo: em "copacabana", que encerra a primeira seção, lemos sobre um corpo que não veste bem roupa alguma: "o P me fica curto, o G me queda largo, acabo com o M/ que me fica curto e largo". Pondera se deveria comprar saias, pensa na origem familiar, na miscigenação, mas só lhe resta "dançar ao som da obra, ruína, obra, eternamente, brasileira, brasileiro/ em progresso.".
Todo este desajuste com o corpo, o gênero e a família encenado em uma loja de departamentos em Copacabana diz respeito à condição nacional? A nacionalidade, neste livro, não é uma fonte de desconcerto tão grande quanto o corpo. Parece ser mais importante a passagem "ontem tornei-me empresário, vi logo/ dívidas imensas, prisão, degradação e o confisco de meus/ poucos bens, esta calça rota". Como dançar assim, com esta calça e sem as saias que o "jovem amigo" veste?
Aqui, o desajuste que ocupa o artista é parecido com o de uma canção sua, "Eu não consigo me vender direito". Nela, o músico lamenta ironicamente não conseguir se tornar mercadoria, o que faz com que perca o respeito de seus "pares".
Estes desajustes com o capital, porém, não são realmente encarados ou formalmente resolvidos neste livro, o que é algo análogo, talvez, aos processos sociais em 2013, que não lograram tomar o poder.
Eu fui um dos que foram ouvir a música de Dimitri BR depois de conhecer seu livro. Na sua poesia, aquelas questões aparecem de forma bem mais intensa do que na música, ao menos no disco "Todos os dias são bons", em que a voz macia e bem conduzida do barítono e compositor diz achados poéticos seus e de outros. Por exemplo, a suave desolação completa de "o pão tem seis mil anos/ mas o mar tem mais/ você só tem a brisa", de Bruna Beber, ou, letras dele mesmo, "quando o sangue sobe à boca/ é que o samba principia"; "você estende os pulsos/ eu lhe digo: corte". Aqui:
https://youtu.be/qFiFdo9Od_Q.
Na poesia, ele é mais ousado tematicamente.
Formalmente, o livro parece-se com uma estreia na medida que é um pouco desigual. Entre poemas menos conseguidos, há até mesmo um que lembra Mário Quintana ("um acerto é um erro/ que mudou de lugar"), e às vezes a dicção de Paulo Leminski está presente em demasiado ("quando consigo estar em mim/ sempre vale muito a pena/ sempre penso nessa hora/ ainda bem que eu vim").
Esses poemas estão na última seção, "a rua mandou um beijo", que não tem a força da primeira.
Já vi poetas, seguindo a lógica da reserva de mercado, reagir nada alegremente, ou com despeito, à publicação de poesia por nomes de outras áreas. Espero que isso não se repita diante desta estreia tão interessante, que, ao tratar dos corpos, bem encarnou uma das tarefas de que a poesia se ocupa.