Às 10 horas de 30 de agosto de 2022, em frente à Prefeitura de São Paulo, começará o ato público "Onde estão nossos desaparecidos?", com organização da Associação Mães em Luta, da Associação Mães da Sé e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Será o Dia Internacional das Vítimas do Desaparecimento Forçado, instituído pela Organização das Nações Unidas em 2010.
Trata-se de um crime que o Estado brasileiro nunca combateu com efetividade e que, não raro, é por ele mesmo praticado: lembre-se, por exemplo, de Amarildo de Souza, que foi sequestrado por agentes da polícia militar do Rio de Janeiro em 2013; seus restos mortais nunca apareceram. Por isso, estão juntas no ato associações dos familiares de desaparecidos da "democracia" e da ditadura.
O desaparecimento forçado, um crime de lesa-humanidade, foi um dos principais instrumentos da repressão política durante a ditadura militar. O Dossiê Ditadura, dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, indica que esse crime cresceu a partir de Geisel: a ocultação dos corpos servia para que a ditadura não só negasse a ocorrência dos crimes, mas reforçasse o discurso da "abertura democrática".
É dessa época esta Carta Mensal do DEOPS/SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social, a polícia política, do Estado de São Paulo), de março de 1975. O documento, que pode ser lido no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, representa um bom exemplo de que a ditadura não apenas praticava sistematicamente crimes: ela se preocupava em impedir que eles viessem à luz: havia a censura dos meios de comunicação para tanto, bem como a cassação de parlamentares que denunciassem publicamente o governo, só para mencionar os meios "legais" da época; sequestro, tortura e execução extrajudicial de quem denunciasse eram outros meios, fora da lei mesmo naquela época.
Vejam que a campanha de denúncia dos desaparecimentos forçados, que ocorria com força no exterior contando com as redes de exilados, era caracterizada pelos órgãos de repressão como "guerra psicológica adversa" movida pelo "movimento comunista internacional". São categorias da chamda "doutrina de segurança nacional", cuja retórica era usada para as Forças Armadas camuflarem os próprios crimes. Reproduzo a segunda página do documento porque ele menciona um caso famoso, o de Ana Rosa Kucinsi:
Inspirado pelo desaparecimento da irmã (e do marido dela, Wilson Silva) pela ditadura, Bernardo Kucinski escreveu o célebre romance K, traduzido para vários idiomas, sobre que eu e muitos outros já escrevemos. Vejam como a busca de um pai pela filha é vista pelas autoridades: um caso evidente de culpabilização das vítimas.
Diante da inefetividade da justiça de transição no país, há algumas décadas os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos vêm insistindo no fato de que esses métodos da ditadura se institucionalizaram na "democracia" brasileira. Em 2010, depois de o Supremo Tribunal Federal ignorar a Constituição brasileira e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos para estender a anistia aos agentes da repressão, o Estado brasileiro foi condenado no caso Gomes Lund e outros (o chamado "Caso Araguaia"), pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a investigar os casos de desaparecimento forçado na ditadura e a punir os responsáveis por esse delito. Foi o mesmo ano em que o Estado brasileiro ratificou a Convenção da ONU contra desaparecimentos forçados, depois de tê-la assinado em 2007.
O Estado brasileiro nunca cumpriu a decisão e, em 2018, foi escolhido para a presidência da república um entusiasta da ditadura e da repressão política (mas não em eleições livres, pois o candidato à frente das pesquisas na época, e à frente hoje também, o presidente Lula, foi arbitrariamente preso). Não surpreendentemente, ele, J. Bolsonaro, tem aliado o negacionismo histórico com o negacionismo científico em campos como clima, meio ambiente e saúde pública, com um governo que deixará um saldo inédito de mortos (a pandemia matou muito mais no Brasil do que no resto do mundo) e de devastação ambiental. Nesses dois tipos de negacionismo, vemos o culto e a gestão da morte, que muitos têm caracterizado como necropolítica e é típica dos fascismos.
O ato do dia 30 é justamente o oposto: uma recordação das vidas dos desaparecidos e uma cobrança pública feita em nome deles, pois exigir justiça também é uma medida de memória: quando Judiciário e Ministério Público não punem certo crime, eles contribuem para o esquecimento, que é uma outra dimensão social da injustiça.