O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Desarquivando o Brasil CXCII: O assassinato de Pablo Neruda

Repercutiu internacionalmente mais uma prova do assassinato de Pablo Neruda pela ditadura de Pinochet. Não se tratava de algo inesperado, como se sabe: sua morte súbita, dias depois do golpe militar, suscitou suspeitas desde o início: ele mesmo suspeitou de que algo havia sido inoculado nele na clínica em que estava internado. 

Esta morte de poeta chileno em seu próprio país não foi investigada pelas comissões da verdade brasileiras. No entanto, ela repercutiu muito no Brasil na época, assim como outras mortes e os exílios causados pelo golpe no Chile e, por essa razão, não deixou de ser lembrada em depoimentos. Em 2013, na audiência da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" sobre Norberto Nehring, um dos mortos políticos da ditadura, a filha, Marta Nehring, ao tratar do contexto geopolítico da época, mencionou o poeta e diplomata chileno:

Se a gente pensa na escala do que estava em jogo naquele momento, não é, considerando que hoje já estão sendo exumados os cadáveres de dois presidentes do Brasil, Juscelino e Jango, de que na época, não foi só a ditadura no Brasil, foi ditadura no Cone Sul inteiro, que provavelmente o Pablo Neruda foi um dos que foram mortos logo depois do golpe do Chile, envenenado, apesar de que ele estava doente, ele não morreu da doença dele, isso está sendo provado agora.

Norberto Nehring foi assassinado em 1970. Três anos depois, em setembro de 1973, eclodiria, com apoio dos EUA e colaboração do Brasil, o golpe no Chile: era a época, na Guerra Fria, da multiplicação das ditaduras de segurança nacional na América Latina. Em novembro do mesmo ano, ironicamente, começariam os trabalhos do II Tribunal Bertrand Russell, que foi instituído para julgar essas mesmas ditaduras. Neruda havia concordado em participar do julgamento: a morte impediu-o e o Chile acabou fornecendo vários casos para o exame; entre eles, o saque que as autoridades fizeram à casa do poeta, bem como a apreensão de suas obras: "Os livros de Pablo Neruda, normalmente, suscitam a ira dos guardas de fronteira e, frequentemente, são sequestrados." (cito a edição brasileira das atas do Tribunal, organizada por Giuseppe Tosi e Lúcia de Fátima Guerra Ferreira para a UFPB).

Em 1970, a ditadura militar no Brasil preocupava-se com os exilados brasileiros que estavam no Chile, então sob o governo eleito de Salvador Allende, da Unidade Popular. Nesta informação do Centro de Informações da Marinha, destacava-se a criação do Comitê Chileno de Solidariedade aos Torturados Brasileiros, "encabeçado pelo poeta comunista PABLO NERUDA":



O documento está no Arquivo Nacional. 
É um dos fatos que constam na ficha de Neruda no DEOPS/SP, hoje no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP):


As autoridades de segurança já o conheciam, evidentemente. Em 1952, ele havia sido impedido, por ser comunista, de desembarcar e de ser homenageado por simpatizantes brasileiros quando o navio com o qual voltava da Europa para o Chile, depois do exílio, aportou em Santos; aqui, um relatório da polícia política, também no APESP:


Visitas foram também interditadas. O Partido Comunista havia sido proibido no Brasil em 1947 (no ano seguinte, o mesmo ocorreria no Chile). Nesse período soi-disant democrático, a repressão política comunista aos comunistas continuaria, incluindo o fechamento e a repressão veículos de imprensa de esquerda.
Em primeiro de abril de 1964, o país sofreu o golpe que derrubou João Goulart; em dezembro, Neruda participou de ato no Uruguai em solidariedade ao povo brasileiro.


Apesar da falta de simpatia dos militares daqui ao poeta, político e diplomata chileno, ele acabou vindo ao Brasil depois do golpe de 1964. O próprio governo chileno pediu visto para que ele participasse da inauguração do monumento a Garcia Lorca:


Trata-se de um documento do DSI do Ministério das Relações Exteriores, guardado no Arquivo Nacional. A obra foi realizada por ninguém menos do que Flávio de Carvalho; ela foi, como se sabe, destruída no ano seguinte pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O artista teve que restaurá-la. Neruda havia conhecido pessoalmente Lorca na Argentina em 1933. Três anos depois, o autor espanhol foi preso e executado pelos franquistas. Ele continua a ser um dos desaparecidos políticos da Guerra Civil Espanhola.
Neruda, ao que parece, também acabou sendo alvo dos fascistas. Lorca era uma celebridade internacional, o que não o impediu de ser morto, e Neruda também, Prêmio Nobel à parte (afinal, muitos autores nobelizados são esquecidos depois, o que não ocorreu com o poeta chileno). 
Em poesia, pareceu ecoar uma resposta sua ao golpe. Em novembro de 1973, na então UEG, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foram encontradas cópias deste poema de Neruda:


Outro documento que está no Arquivo Nacional. Entre as hienas vorazes, roedores, depredadores infernais, os sátrapas, cujas leis eram a tortura e a fome açoitada do povo, está Garrastazu, o ditador brasileiro de então, o general Médici. No entanto, o poema não é completamente de Neruda: trata-se de uma parte do Canto Geral, cujos primeiros versos foram atualizados para nomear os novos tiranos. No original, eram nomeados Trujillo, Somoza, Carías, "com Moríñigo (ou Natalicio)/ no Paraguai".

Natán (Popik) Ofek, falecido em 2006, era colaborador do jornal argentino Nueva Sion e nele publicou essa "atualização" como se fosse um poema novo de Neruda.  O poeta nem mesmo soube da publicação, mas Pinochet, sim, e achou que fosse um original do autor. Os estudantes da UEG também devem ter acreditado nisso, mas tinham razões: até o The New York Times publicou-o logo após a morte de Neruda como se fosse um original dele.

Já em 1974, Efraín Huerta havia esclarecido a questão e criticado a viúva, que simplesmente tinha negado que Neruda tivesse escrito sobre a Junta militar, mas sem perceber (ou sem querer dizê-lo) que se tratava de um trecho do Canto Geral com o início reformulado. O triste é que bastava alterar os nomes: todo o resto não necessitava de atualização.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Aniversário da Patuá: um depoimento sobre Eduardo Lacerda



Eu publiquei quatro livros na Patuá, que agora faz doze anos: um de contos, Cidadania da bomba, em 2015; dois de poesia, O desvio das gentes (2019) e Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de Antologia completa) (2022) e um romance, Gravata lavada (2019). Falo, a pedido da editora, a partir dessa experiência.
Nesse modelo de negócio, a editora nada cobra dos autores (embora não recuse, ao contrário da Averno, livros subsidiados); como a escolha dos títulos se guia pelo gosto do editor, e não pela busca do best-seller, a editora sustenta-se com o número de lançamentos. Cito o próprio editor, Eduardo Lacerda, nesta entrevista a Theo G. Alves, sobre esta diretriz básica: "damos espaço para pessoas muitas vezes com poucos resultados financeiros, mas muitos resultados literários".
Nesse processo, ele aposta não só em muitos autores jovens da literatura brasileira, mas também em peste-sellers como eu. Ele não tem estrutura das grandes corporações para trabalhar os livros; ademais, a distribuição depende muito dos esforços pessoais dele e dos próprios autores. A melhor forma de encontrar as obras é o portal da editora: https://www.editorapatua.com.br/
Dito isso, é em casas com este perfil que respiram a renovação e a experimentação da literatura brasileira. Até membros da Academia Brasileira de Letras passaram a publicar pela Patuá, pois ela respeita os autores e a literatura. Temos um exemplo eloquente no atual presidente da Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi
A comemoração de aniversário ensejou esta promoção que vai até 12 de fevereiro:


Conheci Eduardo Lacerda muito antes, porém. Em 2003, eu estava tentando cursar as disciplinas do doutorado; tive a sorte de poder seguir dois ótimos cursos na FFLCH-USP e lá o conheci, graduando em Letras. Ele já editava: tenho ainda, dessa época, os dois primeiros números da Metamorfose: Revista de cultura e literatura Geral. No número 2, de 2004, ele contou com Andréa Catrópa, que era então mestranda em Letras. Anos depois, ela também publicaria pela Patuá.
No vídeo acima, li algumas das frases do editorial do primeiro número. Nele, Eduardo fala da metamorfose como "mediação" e de como espera poder "evoluir, crescer". Comentei que, nesses vinte anos, apesar de ter crescido a ponto de criar uma editora própria com centenas de títulos, não mudou em dois pontos essenciais: no amor pela literatura (especialmente a poesia) e nesta improvável aposta, em um país como o Brasil, de intervir no espaço público e no debate cultural por meio da edição de livros.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

O (des)tombamento da Bela Vista e o condomínio Praça dos Franceses

 Um bairro sob ataque:


No início deste século, depois de intensa mobilização da sociedade civil, o bairro da Bela Vista foi tombado por meio da Resolução da Secretaria Municipal de Cultura SMC/CONPRESP nº 22 de 13 de dezembro de 2002. Foram estabelecidos três níveis diferentes de proteção para certos imóveis e as áreas envoltórias. 

Há alguns anos, porém, a especulação imobiliária, em geral fomentada pela expansão do metrô, tem colocado o bairro sob ataque, e a Prefeitura não tem cumprido seu dever de preservar o patrimônio histórico e cultural. 

O CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) não tem correspondido às demandas da sociedade pela preservação da memória da cidade. O Coletivo Salve Saracura, em razão de empreendimentos imobiliários liberados pelo Conselho na área do Grota do Bixiga em 2021, lançou a nota pública “O Bixiga sob ataque”, assinada por mais de cinquenta associações, instituições e grupos, como o Teatro Oficina, a Escola de Samba Vai-Vai e a Casa de Dona Yayá - Centro de Preservação Cultural da USP, repudiando essas decisões do CONPRESP.

Esses ataques à memória do bairro também põem em risco a vida dos moradores porque as características geológicas e hidrológicas da região poderão provocar desmoronamentos, se essas construções forem erguidas.

A judicialização desses empreendimentos tem sido o resultado dessa atuação da Prefeitura favorável à especulação imobiliária e contrária aos interesses da preservação da cultura e da memória urbanas, bem como da própria vida dos moradores.


O ataque chega ao condomínio Praça dos Franceses:


No ano seguinte, em 2022, a resolução de tombamento do bairro foi alterada por esse Conselho, com destaque justamente para a área que concerne ao Condomínio Praça dos Franceses:


Artigo 1° - AJUSTAR E DETALHAR a Resolução 22/Conpresp/2002, apenas no que concerne às diretrizes relativas aos muros e encostas protegidos na Rua Almirante Marques de Leão, no Setor 009, Quadra 019, pelo inciso IV do art. 1º da referida resolução, sendo que para tal, altera pontualmente a redação dos artigos 1º; 3º; 7º e 9º da Resolução 22/Conpresp/2002, de tombamento do bairro da Bela Vista.

Artigo 2° - O inciso IV do artigo 1º da Resolução 22/Conpresp/2002 passa a vigorar com as seguintes alterações:

IV. Encostas e Muros de Arrimo da rua Almirante Marques de Leão (Setor 09/Quadra 19) (NP1), que passam pelos lotes especificados em tabelas abaixo. [grifos nossos]


A parte que colocamos em negrito corresponde ao trecho que foi adicionado à Resolução de 2002. Essa “especificação” visa retirar a proteção do tombamento aos muros atrás do condomínio Praça dos Franceses. 

Outra alteração da Resolução pode abrir as portas para enfraquecer a proteção das encostas e muros de arrimo, ao permitir “intervenções pontuais”:


Artigo 5° - Ao artigo 9º da Resolução 22/2002 passa a vigorar com o seguinte acréscimo na redação, com o item que segue:


- No caso de encostas e muros de arrimo, visando sua conservação e manutenção, intervenções pontuais, quando justificadas, poderão ser realizadas, desde que não impliquem em sua descaraterização. [grifos nossos]


Essa previsão, em princípio, é redundante, pois o dever de manter os bens tombados decorre diretamente da legislação federal de loteamento, o Decreto-Lei n. 25 de 1937. No entanto, ela pode ensejar sua má aplicação: pode acontecer que mudanças sejam aprovadas pelo CONPRESP, embora efetivamente descaracterizem o bairro, se os conselheiros entenderem que são “pontuais” e justificáveis.


Uma Resolução com endereço determinado:


Pode parecer estranho que o CONPRESP tenha se dado ao trabalho de criar uma Resolução para descaracterizar como bens tombados as encostas e muros de arrimo da Almirante Marques de Leão. A 755ª reunião ordinária do Conselho, que discutiu as mudanças, no entanto, deixou clara a razão.

Na ata da reunião, lê-se que a mudança está sendo feita por causa da pressão do Ministério Público em relação ao terreno atrás do Praça dos Franceses: “O Dr. Fábio Dutra pede a palavra e esclarece que o Conselho está atendendo, inclusive, a uma demanda do Ministério Público em relação ao terreno que fica abaixo do empreendimento Praça dos Franceses, construído antes do tombamento da Bela Vista, e consta na resolução como área de encosta e, no entanto, isso nunca foi verdade.”

A ata inclui também a opinião do vice-presidente do CONPRESP: “O conselheiro Orlando esclarece que as alterações sugeridas não se tratam de modificação da incidência que já está imposta na resolução, mas de um detalhamento do texto da resolução”.

No vídeo da reunião, pode-se ver que a Resolução nova foi feita tendo em vista justamente a obra que a Canopus deseja realizar no terreno atrás do Praça dos Franceses. O vice-presidente do CONPRESP foi bem explícito:


[...] porque ali, essencialmente na Almirante Marques Leão, nós tivemos uma confusão inclusive com uma incorporadora que acho que já tem desde 2018 uma autorização, Conselheiro Rubens, para fazer uma construção ali e justamente ela foi impedida de continuar porque a gente não tinha esse detalhamento das encostas e dos muros e a parte da encosta dela, que é onde ela vai fazer essa edificação, atrás daquele condomínio dos Franceses, na rua dos Franceses, ela ficou então impedida por causa da carência desse individualização que foi feita agora em apartado [...]


Uma resolução com endereço determinado, portanto, movida pela tentativa de viabilizar a obra de uma construtora determinada (Paixão, em visão do futuro, diz que ela “vai fazer” a obra, como se o CONPRESP fosse o órgão decisivo para o licenciamento do empreendimento em questão), e não exatamente pela necessidade de preservação do bairro. A estranheza da declaração é sublinhada pelo fato de o terreno em questão apresentar, como outras regiões do bairro, condições geológicas que podem ensejar desmoronamento e ameaçar a vida dos moradores.


Um “destombamento” inconstitucional:


Também no vídeo da reunião, pode-se ver que Orlando Corrêa da Paixão insistiu mais de uma vez que a Resolução de 2022 não seria uma alteração da original de 2002, e sim mero “detalhamento”, embora isso seja falso: a alteração ocorreu, com o destombamento daqueles muros da Almirante Marques de Leão. Se fosse de fato uma simples pormenorização, a Resolução nova seria válida. Como não é o caso, ela é nula.

Por se tratar de destombamento, a resolução do CONPRESP feriu as diretrizes constitucionais da preservação do patrimônio: o parágrafo primeiro do artigo 216 da Constituição da República exige a “colaboração da comunidade" para promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro. O próprio Estatuto da Cidade coloca o tombamento sob o princípio da “gestão democrática das cidades”.

O fim do tombamento só poderia ter sido aprovado depois de audiência com a comunidade interessada. Porém, a discussão pública, exigência legal e democrática, foi impedida pela Prefeitura pelo fato de o destombamento não ter ocorrido às claras, mas sob a forma juridicamente irregular de “detalhamento” de resolução antiga.

O “destombamento” é raro no Direito brasileiro. É possível encontrá-lo na jurisprudência como razão de crime de improbidade do chefe do Executivo, como o Prefeito, se ele extinguir o tombamento ilegalmente. No entanto, se o Prefeito tem o respaldo do órgão técnico da Prefeitura, mesmo que o parecer técnico não seja correto, ele não responde por crime de responsabilidade. O CONPRESP concedeu, neste caso, esse respaldo.