Saiu na revista 451 uma resenha que fiz, "O arco-íris e a nação", sobre os dois livros mais recentes em português de César Braga-Pinto: o volume de ensaios Poses e posturas: performances de gênero e sexualidade na literatura brasileira (1850-1950) e a antologia de contos O homem que passou por baixo do arco-íris: e outras histórias sobre sexualidades, gênero e dissidência entre 1880-1950, ambos publicados pela Alameda em 2023. São trabalhos fundamentais para rever a história da literatura brasileira, que não pode fugir do reconhecimento da importância dessas representações das dissidências de gênero, que foram mais influentes no Brasil, explica Braga-Pinto, do que na América hispânica.
As duas obras, juntas, somam mais de novecentas páginas. Por isso, tive de cortar alguns trechos para que a resenha coubesse dentro do espaço do periódico. Sacrifiquei Joaquim Manuel de Macedo, Coelho Neto e José Lins do Rego; doeu-me bastante fazê-lo, pois o ensaio sobre Coelho Neto, em especial, é muito esclarecedor. Parte da análise da antologia também teve que ser apagada, inclusive minha lembrança de Diadorim, talvez impertinente. Se alguém tiver curiosidade, e se isto servir para aguçar o interesse pelo trabalho de César Braga-Pinto, eis os trechos cortados:
[...] Com esse tipo de leitura, ele se interessa por autores secundários (que ele reconhece como tal), porém relevantes para o quadro analisado, e também por escritores canônicos (re)vistos por este prisma. [...]
A partir desses autores, o crítico realiza saltos teóricos de longo alcance; no primeiro ensaio, a partir do travestimento das mulheres que tentavam se alistar para lutar contra o Paraguai e o culto aos militares que se destacaram na Guerra da Tríplice Aliança, Braga-Pinto desvenda “uma genealogia da nacionalidade desracializada” e a criação do “protótipo do novo homem republicano” (p. 39), em um “período crítico na redefinição das categorias de gênero e, principalmente, de masculinidade do Brasil oitocentista” (p. 41).
O ensaio sobre Coelho Neto trata da figura do andrógino, que aparece diversas vezes em sua obra, destacando o romance Esfinge, de 1908, que explorou “questões de gênero (híbrido) e sexualidade” “de forma praticamente inaudita” (p. 57). Na comédia O patinho torto, dez anos posterior, com a personagem Eufêmia, que se revela um homem, “as categorias de gênero são atribuídas menos à biologia do que ao costume e à gramática” (p. 68).
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João do Rio “manipula, em proveito próprio, o conceito de imitação, tornando-o um mecanismo de reconhecimento, sobrevivência, aceitação e ascensão social” (p. 168). Nesse brilhante ensaio, Braga-Pinto ainda corrige Davi Arrigucci Jr. e Brito Broca sobre a importância da recepção de Wilde, que ensejou uma “complexa negociação de novos valores estéticos, subjetividades e desejos” (p. 180).
O ensaio sobre José Lins do Rego centra-se no romance O moleque Ricardo e apresenta menos novidades do que os outros do livro; ele termina com uma curiosa tentativa de dirigir o brilhante diretor de cinema Hilton Lacerda para hipotética filmagem do romance, o que parece reproduzir uma postura de scholar a querer guiar os artistas.
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Em outros textos, falei do paradigma da “medicina moral” como dominante no direito urbano brasileiro do fim do século XIX e início do XX. O mesmo se verifica na literatura da época: a partir de um enfoque cientificista, o discurso médico é empregado para legitimar condenações de cunho moral contra as chamadas dissidências de gênero: nos contos, uma personagem feminina de Medeiros de Albuquerque morre simplesmente por experimentar um primeiro orgasmo (e com um homem negro); a homossexualidade é categorizada como “anomalia estrutural’ no “barro humano” (Carlos Vasconcelos, p. 228). As histórias de travestis e transexuais muitas vezes se passam durante o Carnaval, mas, quando se dão fora dele, muitas vezes terminam com a morte violenta da personagem. Seria de se pensar se um romance genial Grande Sertão: Veredas não encontra parte de sua genealogia nesse tipo de literatura que trata de dissidências e gênero.
Braga-Pinto vê com simpatia um conto de Nestor Vitor que começa com um relacionamento amoroso entre dois rapazes, que não recebe condenação moral do narrador; no entanto, ele segue o mesmo paradigma: o personagem principal, depois do relacionamento com o rapaz, vai passando por um declínio social e psíquico; descobrimos que o pai havia enlouquecido. Incorporando a noção de tara familiar, o conto parece uma ilustração das teorias psicopatológicas da época. O conto renegado de Lygia Fagundes Telles, a obra que fecha o volume, significativamente chama-se “Tara”.
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