O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Antigo Regime e magistratura brasileira, parte II

Texto I:
O respeito, que é preciso guardar aos Ministros de Justiça, nos tem obrigado a omitir as repetidas comunicações, que do Brasil temos recebido, sobre o escandaloso procedimento de muitos Magistrados. E contudo convém dizer alguma cousa sobre a administração da justiça em geral.
O mal não provém deste ou daquele indivíduo, mas do sistema em geral; em uma vez que se introduz a corrupção, por mais que se mudem os ministros, continua a opressão.
Temos sempre declamado, contra a jurisdição arbitrária dos Governadores militares; e era de supor, que lhes serviria de freio a administração da justiça pelos ministros letrados; mas a corrupção destes fá-los dependentes dos Governadores, e assim todos de mãos dadas contribuem para a opressão.


Texto II:
Em suas recomendações, a Comissão focalizou as dificuldades da justiça brasileira em cumprir o compromisso de proporcionar à sua população garantias judiciais e o devido processo. O Presidente do Brasil confirmou sua preocupação quanto a esse fato numa exposição que fez perante a Ordem dos Advogados do Brasil, em que reclamou a reforma do sistema judicial a fim de enfrentar sua corrupção administrativa e sua lentidão. (nota: Uma investigação parlamentar concluiu que grande parte dos US$300.000.000 de custos excedentes de construção de edifícios para tribunais (ainda não terminados) em São Paulo passou ao pecúlio privado de um alto magistrado judicial e de um senador. Durante anos, os promotores foram incapazes de descobrir as provas obtidas pela Comissão Parlamentar. New York Times, 22 de novembro de 1999.)


O primeiro texto já é do século XIX (atualizei a ortografia, mas não a pontuação), embora ainda não do Brasil independente. Trata-se de "Administração da Justiça no Brasil", publicado em dezembro de 1818, de Hipólito José da Costa, que sozinho escreveu o primeiro jornal brasileiro, Correio Braziliense ou Armazem Literario. O jornal, devido à tradição autoritária lusa, era impresso em Londres.
O segundo, ainda referente ao século XX, é o Informe Anual da Comissão Interamericana sobre Direitos Humanos relativo ao ano 2000, que citei mais extensamente na minha tese:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=86855
Deve-se notar que as duas críticas ao Judiciário no Brasil foram realizadas no exterior: no primeiro caso, a censura portuguesa contrastava com a liberdade de imprensa na Inglaterra. No segundo, temos um órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA) no exercício cotidiano de suas funções: não substituir os governos e magistrados locais (ao contrário do que os ignorantes e mal-intencionados dizem), e sim identificar suas falhas e contribuir para remediá-las. Papel pequeno? Não, pois, na ausência dele, a opressão sofre menos denúncias e pode crescer imperturbada.
Papel pequeno? Não, pois incomoda os poderosos locais, que querem combatê-lo reclamando da ingerência em assuntos internos (o ensino jurídico no Brasil, geralmente de pendores marcadamente provincianos, contribui também nisso para a opressão).
Quando se lembra de que a imprensa brasileira nasceu no exilio, entende-se como a suposta defesa da soberania se tornou uma das bandeiras mais levantadas por aqueles que desejam fazer da opressão, coisa julgada e, da coisa julgada, a opressão.

domingo, 29 de agosto de 2010

Leitura do dia: The idea of justice, de Amartya Sen



O livro mais recente de Amartya Sen, The idea of justice (Cambridge: Belknap Press, 2009), tem como um de seus traços notáveis - presentes em outras obras do autor - o conhecimento e a leitura de autores europeus e dos EUA, porém a partir de uma visão externa à desses grandes centros. O pensamento clássico indiano sobre a justiça, tal como problematizado no Bhagavadgita, alia-se à filosofia moral de Adam Smith, na interessante síntese operada por Sen.
Senti-me especialmente feliz ao lê-lo por:
  1. Sua recusa a uma visão paroquial da justiça (nesse ponto, Sen recorda de Kant, e vê, como outros, até, bem mais modestamente, eu mesmo no meu último livro, as grandes limitações de Rawls na tentativa de pensar a justiça internacional);
  2. Sua compreensão a respeito do valor moral dos direitos humanos (ele muito perspicazmente vê que, algumas vezes, para melhor defendê-los, não deve haver uma legislação coercitiva);
  3. A postura metodológica de pensar a sociedade de baixo para cima, e não de cima para baixo; a ênfase nas regras oficiais e nas instituições seria um dos problemas do pensamento de Rawls.

O livro todo, em verdade, foi escrito contra a teoria da justiça de Rawls, de quem Amartya Sen foi aluno. No entanto, as discordâncias teóricas, mesmo quando frontais, são expressas neste livro com uma profunda cortesia intelectual. Um exemplo é a divergência com Dworkin no tocante à justiça distributiva; nesse ponto, verificamos que é o jurista Dworkin, e não o economista Sen, quem concebe uma teoria submissa aos ditames do mercado.
Escrevi uma breve resenha sobre o livro, que pode ser lida aqui:

http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/viewFile/2347/1762

Espero que o traduzam logo para o português. The idea of justice já está disponível em francês; contra essa tradução, pude ver manifestação mais ou menos furiosa, bem etnocêntrica, de leitor que condenou a obra por nela não serem muito discutidos os autores da pátria que está agora a banir os ciganos.

Nota: Há mais pátrias do banimento, como alerta Eduardo Pitta: http://daliteratura.blogspot.com/2010/08/o-absurdo.html

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Antigo Regime e Magistratura no Brasil

"[...] quando se aposenta o &%&%¨% está se retirando o **%&*¨do local que lhe propiciava a prática de atos irregulares. Isso não é pouco." Um funcionário público, criminoso, é condenado a simplesmente se aposentar, recebendo seus belos proventos. Isso não é pouco? Se a lógica fosse uma atmosfera, a frase mataria de sufocação. Isso é a impunidade, nada menos.
Imagine que os funcionários envolvidos fossem de alguma forma relacionados à justiça e à ordem pública. Se a lógica fosse um continente, a frase condenaria ao desterro universal. Como pensar em retribuir dessa forma os ilícitos praticados por essa categoria que deveria zelar pela lei?
Pode-se pensar em algo pior: a primeira palavra omitida poderia ser juiz, e a segunda, magistrado. Teríamos então a declaração de Gilson Dipp, Corregedor Nacional de Justiça, responsável pelas fiscalizações do Conselho Nacional de Justiça, dada a Frederico Vasconcelos na Folha de S. Paulo de 23 de agosto de 2010.
A ordem jurídica do Antigo Regime, o Absolutismo, marcava-se pela desigualdade: os estamentos recebiam normas diferenciadas, isto é, o direito aplicável aos nobres não era o mesmo a que se submetiam os homens do povo, as normas para o clero também eram especiais... O mesmo ocorria com os bacharéis (uma elite ainda no século XIX) e com os magistrados.
Exemplo do direito dessa época, as Ordenações Filipinas, de 1603, eram aplicáveis na maior parte do período colonial no Brasil e ainda após a independência.
Muito já foi escrito sobre a herança dessa ordem colonial (por exemplo, Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda).
Algo dessa lógica estamental sobrevive em normas tais como o Estatuto da Magistaratura e o princípio constitucional da vitaliciedade, da forma como é previsto hoje. A proposta de emenda constitucional (PEC) 89/2003 tem por objetivo permitir a demissão de juízes condenados, mesmo que já tenham adquirido a vitaliciedade. De autoria da senadora Ideli Salvatti, a PEC foi, em julho de 2010, para a Câmara dos Deputados.
Que essa lógica se fundamenta na desigualdade, é fácil demonstrar. Imagine que se afirmasse: transferimos o traficante de drogas da favela onde atuava para um apartamento da avenida Atlântica (onde, de acordo com lógica parecida, só há pessoas de bem e ninguém ligado ao tráfico). Nós o tiramos do local onde auferia lucros irregulares. Isso não é pouco?

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Waltercio Caldas e algo como um poema

Waltercio Caldas é um de meus artistas preferidos. Lembro-me especialmente de uma exposição, na década de 1990, de seus Livros no MAM do Rio de Janeiro, simultânea a uma enorme exposição de Picasso. O público acorria numeroso para a segunda, não para a primeira, o que me permitiu ver/ler com muita calma. Um desses livros, atravessava-o uma bala [na verdade um olho, veja os comentários]. Outros eram apenas equilíbrio, mais do que matéria. No lirismo de Voo noturno , o livro era voo, não pássaro. E lá estava uma provocadora reinterpretação de Velásquez.
Percebi de pronto como a poderosa poética de Picasso pertencia então ao passado.
Nesta pequena entrevista (aqui disponível: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/787698-contradicao-corroi-as-bienais-de-arte-diz-artista-waltercio-caldas.shtml), Waltercio Caldas toca em problema que afeta a literatura também: o desconhecimento da história da arte. Quem nunca viu algum jovem escritor orgulhoso de não ter lido, por exemplo, Clarice Lispector, Balzac, ou - para lembrar da teoria - Aristóteles? Há quem desdenhe por não poder comprar.
É belo também que ele diga que o mundo tem complexidade suficiente para incorporar um trabalho como o dele, que não explora a cor local. Existem críticos, no entanto, que têm muitos complexos e quase nenhuma complexidade, e não aceitam que o mundo tenha uma visão mais larga do que eles mesmos.
Waltercio Caldas tem um sítio na internet: http://www.walterciocaldas.com.br/. Nele foram incluídos textos críticos, inclusive de Adolfo Montejo Navas.
No meu primeiro livro, há um poeminha que dediquei a esse grande artista brasileiro, uma pequena nota lírica.



um livro com todas as páginas iguais

não: um livro com todas as páginas iguais, porém apagadas

isto é: um livro com todas as páginas iguais, todas apagadas, mas em diferentes graus de esvaecimento

o grau de esvaecimento é o grau de página

ou seja: o livro

mais rico quanto maior o esvaecimento

mais vário quanto mais idênticas as páginas

e maior se de todas escolher uma só

domingo, 22 de agosto de 2010

Memória como reserva de mercado, parte II

O projeto de lei PLS 308/2009 (sobre que já escrevi aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/08/memoria-como-reserva-de-mercado-parte-i.html) prevê, no artigo 4o., VI, combinado com o artigo seguinte, a "elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos" como competência exclusiva dos portadores de diploma, seja de graduação, de mestrado, ou de doutorado (mas não apenas pós-graduação lato sensu) em História.
O que, no entanto, pode ser visto como "tema histórico"? Algum fato social pode ficar de fora de tão larga categoria? Algum produto da cultura - e, nisso, a própria teoria histórica?
Em princípio, não. A amplitude do projeto é avassaladora.
Como se constituem os "temas históricos" a que alude o projeto? Por meio de um olhar diacrônico sobre os temas sociais. Trata-se de um trabalho que se constrói sobre fontes. Lembremos de Adam Schaff em História e Verdade (obra que a Martins Fontes publicou em 1995, em tradução de Maria Paula Duarte):

No seu trabalho, o historiador não parte dos fatos, mas dos materiais históricos, das fontes, no sentido mais extenso deste termo, com a ajuda dos quais constrói o que chamamos os fatos históricos. [...] Assim, a despeito das aparências e das convicções correntes, os fatos históricos não são um ponto de partida, mas um fim, um resultado.


Esse resultado parte de materiais que são estudados também por outras disciplinas - não se trata de tijolos já marcados para construção do cenotáfio da "ciência histórica"! Pergunto, portanto: terão os outros saberes que se inclinar diante dos portadores daqueles diplomas para poderem olhar diacronicamente seus objetos?
Ou melhor, já que a questão é menos epistemológica do que de oportunidades profissionais, pergunto: os laudos sobre história da arte somente deverão ser elaborados por tais portadores, não por artistas ou críticos de arte? Projetos sobre história da filosofia deverão ser monopólio daqueles portadores, e não daqueles que estudam filosofia sem tal crachá acadêmico? Um parecer de história do direito somente deverá ser escrito por um portador daquele diploma, mesmo que não saiba, por exemplo, a diferença entre direito sujetivo e direito objetivo?
Uma objeção prática ao projeto pode ser construída a partir da noção de que, que em vários temas, o portador do diploma em História não é aquele que terá condições de escrever a melhor história, por falta do instrumental teórico de outros saberes.
E, mesmo que ele fosse o mais apto a escrever sobre os "temas históricos", na amplidão pretendida, faria sentido dar-lhe o monopólio dessa escrita? Em nome de que ética estabelecer-se-ia o monopólio desse reduzido grupo social sobre a construção da identidade da própria sociedade?

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Memória como reserva de mercado, parte I

Ainda tramita no Senado Federal o projeto de lei PLS 368/2009, que pode ser visto aqui:

http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=74739


TEXTO FINAL APROVADO PELA COMISSÃO DE
ASSUNTOS SOCIAIS
PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 368, DE 2009
Regula o exercício da profissão de historiador e dá outras providências.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Esta Lei regula a profissão de historiador, estabelece os requisitos para o exercício da atividade profissional e determina o registro em órgão competente.
Art. 2º É livre o exercício da atividade profissional de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta Lei.
Art. 3º O exercício da profissão de historiador, em todo o território nacional, é privativo dos portadores de:
I – diploma de curso superior em História, expedido por instituições regulares de ensino;
II – diploma de curso superior em História, expedido por instituições estrangeiras e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação;
III – diploma de mestrado, ou doutorado, em História, expedido por instituições regulares de ensino superior, ou por instituições estrangeiras e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação.
Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior;
II – organização de informações para publicações, exposições e eventos em empresas, museus, editoras, produtoras de vídeo e de CD-ROM, ou emissoras de televisão, sobre temas de História;
III – planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;
IV – assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica;
V – assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação;
VI – elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.
Art. 5º Para o provimento e exercício de cargos, funções ou empregos de historiador, é obrigatória a apresentação de diploma nos termos do art. 3º desta Lei.
Art. 6º As entidades que prestam serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados.
Art. 7º O exercício da profissão de historiador requer prévio registro na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do local onde o profissional irá atuar.
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.


Poderia, no entanto, este projeto criar hipóteses abusivas de atribuições exclusivas dos portadores de diploma em História? Estar-se-ia criando uma reserva de mercado para a memória? Trata-se de algo a discutir.

Marco Alexandre Rebelo escreve-me e confirma a inexistência de Alberto Pimenta





No mês passado, publiquei aqui texto, que escrevi originalmente para o extinto Ciberkiosk, sobre o genial autor português contemporâneo Alberto Pimenta: "Da inexistência de Alberto Pimenta". Nas linhas que escrevi para introduzi-lo no blogue, indiquei uma prova suplementar da inexistência, presente no Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português, coordenado por Fernando Cabral Martins e editado pela Leya. Nesse livro, a referência a Alberto Pimenta, em verbete escrito por Marco Alexandre Rebelo, foi transformada, no índice onomástico, em Alfredo Pimenta! Outro escritor, de outra época.
Eis que Marco Alexandre Rebelo, autor também do livro cuja capa podem ver acima (um ensaio tão original quanto antiacadêmico, em que datas e símbolos servem para apontar ligações insuspeitas entre os três autores do título), escreve-me a respeito do imbróglio. Pedi autorização, e aqui segue a mensagem dele.
A imagem que veem foi tirada de uma exposição no Centro de Artes, comemorativa da editora portuguesa & etc:
http://centrodeartes.blogs.com/etc/
Trata-se da editora de Vitor Silva Tavares, que, em sua longa carreira marcada pela militância contra o fascismo, o colonialismo, o comodismo e a resignação, continua a lançar livros que ninguém mais ousa.



Digo-lhe que, talvez aí por 2003 ou mesmo 2002, li com muito gosto o seu ensaio sobre a inexistência do Alberto. Foi agora, por coisas do acaso, que dei com o meu nome neste texto do seu blog sobre Alberto Pimenta. E por isso lhe escrevo.

Curiosamente, assim que recebi a cópia do dicionário a que tive direito, enquanto colaborador, dei também conta desse erro... Julgo não ter o direito de lhe pedir que, para leitores incautos, deixe claro no seu texto que, à parte desconhecer que índices seriam feitos, não tive eu nenhuma responsabilidade nesse erro e nada pude fazer para que ele não surgisse no dicionário, mas não quis deixar de fazer notar a si a curiosidade.

Fui aluno do Alberto na cadeira de Retórica do Mestrado de Teoria da Literatura (2002-2006), dirigido por Silvina Rodrigues Lopes, na Universidade Nova de Lisboa. A par das aulas de Silvina, as aulas do Alberto foram uma revelação e é, todo esse mestrado, um tempo memorável para mim. Tenho agora a sorte e a alegria de ter o Alberto como amigo. Muito do que escrevo é, de alguma forma, escrito em réplica ao Alberto: umas vezes em conversa, outras em atrito com o pensamento dele.

Por isso, além da citação no verbete "RIMBAUD" do Dicionário de Fernando Pessoa, dois livros de ensaios de Alberto Pimenta --- A magia que tira os pecados do mundo e O Silêncio dos Poetas --- são por mim citados e comentados nos dois livros que editei até hoje:

--- Nietzsche, Pessoa, Borges: Por trás das máscaras (in)voluntárias do acaso, Lisboa, &etc., 2004

--- O Espaço sem Volta: do spleen de Baudelaire aos passos de Herberto Helder, Lisboa, Vendaval, 2008 (Este livro tem como base o texto da dissertação de mestrado, que teve orientação de Silvina Rodrigues Lopes)


Em 2005, fiz também uma recensão crítica à edição de 2003 de O Silêncio dos Poetas: “A arte de ver o silêncio” — Revista Intervalo nº1, Lisboa, Vendaval/Diatribre, 2005

Claro que, como sou tão ou ainda mais inexistente que ele, nada que eu escreva jamais apagará o acaso da bela inexistência do Alberto.


um abraço,

Marco Alexandre Rebelo

domingo, 15 de agosto de 2010

Impressões Latino-americanas: Poesia e polícia



Ao lado, pode-se ver foto que tirei na região central de Buenos Aires. A inscrição parece aludir a uma série de leituras de poesia e prosa que vem ocorrendo nessa cidade.
Alguns escritores argentinos (entre eles, Julián Axat) reúnem-se para leituras em eventos com este inspirado título. A programação pode ser vista nesta ligação: http://maspoesiamenospolicia.blogspot.com/
A inscrição lembrou-me Rancière, com sua dicotomia entre política e polícia.
De acordo com o filósofo, a polícia é o que impede de atravessar as fronteiras e de alterar a partilha do comum. Em uma entrevista publicada em Et tant pis pour les gens fatigués (Paris: Éditions Amsterdam, 2009), declarou:
Eu mesmo disse que a palavra de ordem própria da polícia é 'Circulem! Não há nada para ver'. A polícia define a configuração do visível, do pensável e do possível por um sistema de evidências percebidas, não por estratégias espetaculares de controle e de repressão.

A poesia, por forçar-nos a ver o que não era visível, quer desarranjar essas fronteiras na linguagem. Tal é sua dimensão política. Versos que reiteram as fronteiras são bobagem para tocar em rádios comerciais.
Lembro agora que o poeta Alberto Pucheu tem um belo livro, de 1997, intitulado A fronteira desguarnecida, no qual lemos: "Sob o testemunho pânico de alguns, uma desordem no corpo e nas coisas, uma fronteira desguarnecida entre a pessoa e a cidade" e "No vozeio dos arranjos da cidade, o voo inesperado da sintaxe e do sentimento."
Se há poesia, há o inesperado.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Índios, Peruíbe e OAB

Comunidades indígenas de São Paulo estão sob ameaça de certos empreendedores, prefeitos, vereadores e tribunais. Por conta disso, em Peruíbe, palco deste enfrentamento, será realizado este evento de 19 a 21 de agosto de 2010.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Tahirih e a luta das mulheres no Irã



Após a proibição da burka na França e a condenação de Sakineh Ashtiani no Irã ao apedrejamento, é interessante lembrar desta poeta, teóloga e precursora persa do feminismo. Anticlerical, ela tomou várias atitudes revolucionárias: deixou de fazer as orações diárias, repudiou o marido e os filhos, pregou publicamente a religião Baha'i, que acabava de nascer, defendeu a igualdade entre os sexos. Foi executada em um dos vários momentos de massacre dos seguidores dessa religião por islâmicos.
Fátimih Zarrín Táj Baragháni nasceu provavelmente em 1817. Tornou-se conhecida como Ghorrat'ol Ein ou Quarratu'l-Ayn (já vi as duas transliterações; significam Consolação dos Olhos) e Tahirih (Pura).
Jovem, queria ter acesso à educação, o que lhe era negado por ser mulher. Seu pai, no entanto, consentiu que ela ouvisse suas lições (o que lembra a história de Isaac Bashevis Singer, "Yentl", entre os judeus). Ela tinha que se esconder atrás de uma cortina, para que os homens não vissem que havia uma mulher presente.
Recebeu o título de Tahirih pelo próprio profeta da religião Baha'i, o Bahá'u'llah, na Conferência de Badasht. Em um dos dias da Conferência ela apareceu sem véu, o que causou escândalo e o suicídio de um dos participantes. Era mais uma quebra das leis do Islamismo.
Foi estrangulada com seu próprio véu. Ela teria dito a seu carrasco que ele poderia matá-la quando quisesse, mas não conseguiria parar a emancipação da mulher.
Para os ignorantes que, como eu, não são capazes de ler os seus originais, é difícil ter acesso a seus escritos. O grande cantor e compositor Mohammad Reza Shajarian interpretou um de seus poemas, "Face a face", no disco "Masters of Persian Music". Recomendo essa interpretação, a música clássica persa é emocionante.
Lembro que é escandaloso reduzir a história do feminismo e a história dos direitos humanos ao Ocidente, o que é comumente feito pelos inimigos desses direitos, tanto à direita quanto à esquerda, nos dois hemisférios.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Algo como um poema: Do livro O palco e o mundo

ouvir, em arte, nunca foi um fenômeno fisiológico, disse Mário de Andrade.

(nunca escrevi música para ser ouvida. mas para ouvir o corpo. assim, passei a aplicar tatuagens com trechos de minhas partituras.
sei que, em determinadas festas, enquanto todos dançam, em alguns pares e trios e quartetos minhas notas estarão se combinando, e será essa nova composição que eles estarão dançando, e não a que ouvem, que, se traz o movimento ao corpo, nunca é o corpo do movimento
como é vulgar escrever para ser ouvido! as tatuagens com trechos de minhas músicas podem infeccionar. enquanto gritam de dor e aprendem que toda nota solitário é um grito ou moléstia, a pele que se desfaz sabe, silenciosa, que o gênio destrói as aparências. e, se um braço se perde, esse membro será capaz de tocar a música absoluta
música. sei que, ao fazerem amor, estarão combinando minhas notas para criar não um filho, mas a minha música. incentivo a infidelidade e o sexo grupal entre os tatuados: prefiro a polifonia. o sexo não desmente que a arte sempre foi um fenômeno fisiológico

é verdade que, com a morte, vão-se o executante e a própria música; está certo. nunca acreditei que, sendo um corpo para os ouvidos, ela pudesse durar mais que o homem)