O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 3 de maio de 2011

O império contra-ataca e a sombra dos sabres

"Justice has been done", a justiça foi feita. É mesmo? "Killing or capture", a ordem dos substantivos bem mostra a prioridade das ações.
Imagino que deva ser muito difícil ser presidente de um Estado (e comandar todo o aparato de violência correspondente) e não ser um assassino; quando se é presidente de um império, trata-se obviamente de tarefa impossível: pois império nomeia todo um conjunto de saques, escravidão, exploração, tortura.
Eu não respeito a vingança, não estudei Aristóteles para isso. Porém, não vou citar os gregos, e sim os judeus. Sabe-se quem foi Adolf Eichamnn, que levou milhões à morte na política de genocídio dos nazistas. Escondeu-se após a Segunda Guerra Mundial e foi parar na Argentina.
Os judeus tinham razões para querer vê-lo morto. Quando Israel o descobriu, não mandou agentes para dar-lhe um tiro no meio da testa, muito menos o jogou no mar e lhe negou o direito à sepultura. Sequestrou-o, sim (a Argentina protestou contra a violação à soberania, que realmente ocorreu), mas para ser julgado.
O julgamento ocorreu em Jerusalém, não exatamente o lugar mais isento, e o veredito foi o esperado. Houve, no entanto, um julgamento. E Eichmann participou da morte de muito mais judeus do que Bin Laden da morte de estadunidenses.
Se lembrarmos do número de vítimas civis feitas pelos EUA na "guerra contra o terrorismo", bem como dos centros de tortura infinita hipocritamente localizados fora do território de jure estadunidense, temos que o "crime foi abolido por excesso de vítimas", como escrevi em Cinco lugares da fúria.
Não é possível comparar, em termos jurídicos e morais, o que os israelenses fizeram em 1961, por mais questionáveis que tenham sido os procedimentos, com a sordidez espetacularesca do bangue-bangue estadunidense.
Segundo Hannah Arendt, uma das falhas do julgamento em Jerusalém, devido ao partidarismo do trbunal nacional, foi não se ter fixado a noção do crime contra a humanidade; o crime de extermínio de um grupo étnico, como os judeus, poloneses e ciganos, afetava não só esses grupos, mas a humanidade em sua inteireza:
At no point, however, either in the proceedings or in the judgement, did the Jerusalem trial ever mention even the possibility that extermination of a whole ethnic group–the Jews, or the Poles, or the Gypsies–might be more than a crime against the Jewish or the Polish or the Gipsy people, that the international order, and mankind in its entirety, might have been grievously hurt and endangered.

Os EUA, neste caso de conversão de um corpo nas ondas do mar, não cometeram um crime contra a humanidade, mas violaram as normas de guerra.
Tais ondas propagam-se e fazem afogar. A degradação do império ecoa naquele terrível "May God bless America" no final do discurso do líder estadunidense - o apelo ao deus que abençoa as bombas e ao paraíso na sombra das armas. Como Deus é um absoluto, a ação imperial que ele pode legitimar é a do mal absoluto. Com o acirramento dos particularismos, imagino que mais crimes contra a humanidade estejam próximos.
Ecos seculares fazem-se ouvir nesse apelo ao divino. Al-Bokhari, no século IX: "o paraíso está na sombra dos sabres".

P.S. I: Alan García, ainda presidente do Peru, ao atribuir a morte de Bin Laden a um milagre do futuro santo-express e falecido Papa polonês, bem demonstra, no plano da irrisão involuntária, a relação entre Deus e Império.
P.S. II: Hannah Arendt pensou que Eichmann deveria ter sido entregue a uma corte internacional. Lembremos que a recusa dos EUA de se submeterem ao Tribunal Penal Internacional ocorre porque tal constrangimento jurídico atrapalharia sua ação imperialista. Nem Deus nem o Império querem ser julgados; ademais, para eles, a pena somente poderia ser absoluta...

P.S. III: Como um amigo escreveu-me com perguntas sobre esta nota, resolvi responder aqui também: não quis igualar Eichmann e Bin Laden, tão dissemelhantes em ideologia, processos e ações. Só quis dizer que, se até o Eichmann merecia processo, o Bin Laden também. E escrevi que os EUA não cometeram, especificamente neste assassinato, crime contra humanidade, que é um conceito juridicamente determinado, e diferente do de crime de guerra - que foi o que ocorreu.
Os crimes ligados aos KZ (campos de concentração) eram crimes contra a humanidade - como Arendt bem viu. Ela reclamou que, no julgamento de Eichmann Jerusalém, essa caracterização ficou perdida (foi a citação que fiz acima), e essa autora estava correta.
Esse meu amigo falou dos fins políticos do julgamento de Eichmann, em favor do governo israelense. O assassinato de Bin Laden, que estava desarmado (mas tentou reagir, segundo o cinismo institucional do porta-voz de Obama) também teve um propósito político, que foi o de restaurar a presidência claudicante dos EUA.

4 comentários:

  1. otimas as palavras, parabéns Padua
    Matar uma synedoque nao significa matar a metonimia, n'est pas?!!

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  2. "Meu nome é Apreensao" (Goethe - Fausto)

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  3. Obrigado.
    Bien sûr. A metomínia continuará, bem como as metáforas teológico-políticas que acompanham o assunto.

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  4. Mas no fundo no fundo a justiça não é sempre vingança? Existe justiça desvinculada do ressentimento?

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