O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Alberto Pimenta na tevê e a liberdade dos afetos




Pude recentemente assistir ao programa da emissora portuguesa de tevê RTP "O Portugal de... Alberto Pimenta", de 2006, em que o autor foi entrevistado por Rui Ramos.
A RTP, em 1978, havia transmitido o programa "A arte de ser português", do próprio poeta, que muita polêmica gerou na época. Nas fotos, temos o poeta nesses dois momentos.
No programa de 2006, ele inicialmente reluta em dar sua visão de Portugal, afirmando que irá magoar a todos, inclusive o procurador-geral da república. E afirma que já tinha sido muito insultado na época de "A arte de ser português". Vemos então um trecho de 1978, em que ele atende ao telefonema de um telespectador (cuja voz não ouvimos), que o chama, entre outras coisas, de "marxista" e de "desestabilizador" - mas só esta última qualificação, naturalmente, ele toma como insulto, pois parece nome de peça de automóvel...
Por que ofenderia a todos? Ele acaba logo dando sua visão: para ele, Portugal é um país "igualzinho" (não igual, faz notar) a todos. Nisso, ele discordaria de quase todos os seus compatriotas, que em geral, ou acham que é o melhor país do mundo, ou o pior!
Na época de Camões, Portugal, Pimenta explica, era a cabeça da Europa; para Fernando Pessoa, os olhos; hoje, dizem que é a cauda, "em casa dizem que é o rabo".
Porém, mesmo os que consideram Portugal o último país, compartilham do mesmo complexo dos que querem vê-lo como primeiro (e Pimenta lembra que, ao contrário do que era ensinado na faculdade de direito de Coimbra, não foi o pioneiro na abolição da pena de morte): sempre querem um lugar de destaque, o que se deve a compensações pessoais...
Portugal é "igualzinho" aos outros: tem águas territoriais, tem isso, tem aquilo, maternidades, cemitérios - e então Pimenta dá mais uma ideia para os políticos do país:

Era uma belíssima ideia juntar, fazer dos jardins das maternidades os cemitérios. Apanhava a vida em seu sentido total, não é mesmo? Os cemitérios são uns dos lugares mais agradáveis neste país para passear. São os únicos lugares limpos, são muito sossegados, são serenos.
Não tem aquela coisa que a outros portugueses incomoda tanto que é os namorados a beijarem-se. Isso é uma coisa que incomoda a muitos portugueses que é o afeto. O beijo, principalmente, se for intenso.

E passa a tratar da fata dos sentidos trágico e cômico entre os portugueses, que preferem a contenção e fazem da educação a amarra dos afetos. O que ele aconselha aos portugueses? "Viva e deixe viver." A liberdade dos afetos.
Em um país contra essa liberdade, houve três séculos de Inquisição, ou seja, três séculos de delação, com consequências duradouras em um país tão pequeno. Ainda hoje, os portugueses se sentiriam perseguidores ou perseguidos, e continuariam a ter uma sociedade do medo. Medo também do prazer.
Explica que, antes de sair de Portugal, falava-se "corrução". Quando voltou, em 1977, corrupção era a pronúncia estabelecida. Disse que isso deve ter vindo do francês e do inglês: "houve uma mudança no sentido. Veio o p, e está instalado no país..." Explica que, antes, gratificação e suborno eram duas coisas diferentes, "hoje estão todas unidas". Temos então o "p" de Portugual, "p" de corrupção, "p" de país.
Há muito mais. A entrevista, peripatética, feita em uma praça, deveria ser disponibilizada pela emissora na internet. Seria inspiradora também neste momento de crise em Portugal e na Europa.
"O meu Portugal é o da vida trivial, o Portugal que eu vejo, aquele em que vivo – e o que eu sou." Ouvimos esta última frase, mas não é o fim. Temos mais uma sequência de Pimenta em 1978, outro diálogo ao telefone. Só ouvimos a voz de Pimenta:
Não vi, não vi não. Não vejo televisão, não tenho aparelho. Quando tenho o que fazer, tenho o que fazer. E quanto não tenho o que fazer, tenho mais o que fazer do que ver televisão
Amaeçaram-no de morte? A esquerda? A esquerda ameaçou de morte pelo telefone? E matou?
A esquerda nunca cumpre.

E diz que são coisas sérias, mas se não brincarmos com elas, com o que haveremos de brincar?

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