O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Não é crítica literária ou jornalismo versus literatura, parte II


1. Instruções para lidar com os críticos:
Para que literatura, se podemos falar em cultura? A partir disso:
a) Enviar 20 perguntas genéricas para os críticos de que temos e-mail (incluir universitários, para mostrar que respeitamos os chatos da academia);
b) Escolher uma frase de cada resposta, a que tiver mais potencial de impacto textual*;
c) Escolher as que, fora de contexto, fizerem sentido oposto ao que têm na resposta - a resposta do crítico aumentará o impacto e dispensará a criação de nova pauta editorial;
d) Críticos mais polêmicos, isto é, com mais impacto, ou os que escrevam mais sem nexo (a perplexidade aumenta o impacto*), podem ter duas frases escolhidas;
e) Recortar as respostas e colar, misturando com as fórmulas de coesão textual previstas no manual da redação;
f) Se críticos de famílias ou editoras ou faculdades inimigas estiverem juntos no mesmo parágrafo, não há problema: o jornalismo é inclusivo e agregador, ao contrário da literatura;
g) Esperar as críticas e polêmicas e fazer mais perguntas a partir delas;
h) Voltar à primeira instrução.

* Impacto textual: alavancagem das vendas do jornal.

2. Instruções para autores:
Se os autores necessitarem de ajuda para responder às entrevistas, poderemos aconselhar estas frases a serem acrescentadas a um panorama literário abrangente**.
a) Precisamos destruir o cânone, ainda não estou nele.
b) Ninguém estuda a literatura contemporânea, só os meus rivais é que são estudados.
c) Críticas contra mim não podem ser divorciadas de minha posição social e, portanto, são mais um instrumento da burguesia na luta de classes.
d) O crítico falou mal de meu livro, ele tem é que calar a boca, ele quer impedir o debate.
e) Não copiei nenhum outro autor contemporâneo, nem leio essa gente, não perco tempo com merda.
f) Sou vanguarda há décadas, literatura mais nova que a minha só se for gugu dadá.
g) O gênio é uma exceção, mas é preciso implantar o verdadeiro estado de exceção, que não é este, falso, precisamos também acabar com a vontade de verdade.
h) "A burguesia fede" é o nome de nosso último projeto patrocinado pela confederação da indústria; recebemos selo verde.
i) Sociedade péssima, literatura pior? Faltou dizer: crítica feia e chata demais; nós, autores, é que somos avançados e construímos um país novo e sem preconceitos.

**Panorama literário abrangente: lista de releases de lançamentos.

3. Para o caso de ter que ler algum livro:
Selecionamos algumas resenhas*** prontas, exemplares até mesmo na extensão, proporcional à importância do tema.
Lembrar da autorização do setor de marketing se alguém quiser mencionar livros de editoras que não são anunciantes nem frequentam a lista de best-sellers.
a) Causa espécie que um livro de poesia de tal extensão não apresente nem mesmo um soneto, um só que pudesse rimar tantas aventuras com alguma doçura. O emprego de deuses na história é típico da literatura infantil, e as crianças adoram rimar. Contudo, não presta para alfabetização, a falta de técnica reitera-se na ausência de rimas. Para ele não existe a tradição poética ocidental. Mandemos o poeta para alguma oficina de poesia aberta na cidade. O pior trecho é o do romance entre Aquiles e Pátroclo, obviamente um sensacionalismo que vai na onda do beijo gay na Globo. Um livro da moda, que logo será esquecido.
b) Este autor nunca escreveu um romance. Logo, não tem fôlego narrativo. Um escritor menor. Ele não tem cultura, afinal não sabe nem quem escreveu o Quixote, que não foi ninguém chamado Pierre. Não tem imaginação nenhuma: chamar um livro de contos de Ficções mostra o quê? Parei na parte em que diz que nenhum livro é uma escada... Nem mesmo um cego confundiria livros com escadas. Uma grande biblioteca (será que o autor já entrou em alguma?) não pode ser feita de livros tão magrinhos. Não dá para empilhá-los com segurança. O autor mais óbvio do mundo.
c) Confesso que não li inteiro. Mas, na época em que as redes sociais nos dão tantas mensagens boas para ler, cabe editar um romance em 6 ou 7 volumes? Numa autoficção (sabe o que está na moda), o autor quando criança comia doces (chamado Madalena, que homenageia a namorada do escritor) e tinha insônia e complexo de Édipo. O ensimesmamento da história é infantil, não há nenhuma preocupação com a sociedade. Só quem é como o romancista pode usar o livro sem contraindicação: um volume como sonífero, outro como travesseiro. Nem precisa comprar todos.
d) A escritora tem uma narrativa fragmentada. Ela não sabe o que é um romance. No seu "livro", digamos assim, só há realmente uma personagem. Não pode ser um romance. O personagem não é nem plano nem redondo nem octogonal, ele é uma linha que no final se interrompe. Ou um ponto que fura as páginas até a contracapa. Sem Paixão, sem romance. Alguém tem que explicar à autora que nunca deveria ter existido um "livro" que não poderia ser escrito se a personagem varresse a casa ou pagasse dignamente a doméstica. Usem-no para matar baratas.
e) Este livro é cheio de positividade. Ensina que devemos sempre seguir adiante, mesmo que outros apareçam e comecem a reclamar da vida e repetir seus problemas. Mostra que nem o céu é o limite quando estamos apaixonados por nossa meta. Que o sol brilha somente para aquele que atravessou os obstáculos e soube não levar na jornada os perdedores. Se você se sente no escuro, é porque está ainda no meio do caminho! Dante para empreendedores: saindo do inferno para o céu, ao atualizar o livro do velho romancista italiano, prova como os autores de hoje superam a literatura e criam novas formas.
 ***Resenha: tipo de anúncio que não é diretamente pago.

4. Para não esquecer:
Matérias mais amplas sobre a literatura devem ser feitas pelos profissionais do mercado, como agentes, donos das editoras anunciantes (atenção: dono de editora, e não editor), executivos de redes que vendem livros, isto é, gente que entende mesmo do assunto.

Mensagem urgente: Em nome da contínua evolução e da objetividade do jornalismo contemporâneo e sua importância no futuro do país e do mundo, o caderno cultural foi descontinuado.
Antes de pegarem o último contracheque, não esqueçam de deixar o manual de crítica literária na reciclagem. A empresa é sustentável e respeita a responsabilidade social.

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