O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 20 de abril de 2014

La Plata Spoon River: Poesia para os mortos que o governo tentou calar

Organizada pelo poeta e jurista Julián Axat, a coletânea La Plata Spoon River compõe-se de poemas originalmente escritos para este projeto: representar poeticamente cada um dos mortos na inundação que ocorreu em 2013 na cidade argentina de La Plata.
O título, claro, se inspira no livro do poeta estadunidense Edgar Lee Masters, Spoon River Anthology, de que há uma bela antologia publicada em português pela Relógio d'Água, traduzida pelo poeta português José Miguel Silva. O livro é composto de epitáfios, na própria voz dos mortos, que constroem a vida de uma cidade imaginária nos EUA.
Em 2013, houve uma grande inundação em La Plata. Vários morreram. Um juiz e um defensor judicial (o próprio Axat) decidiram investigar o real número de mortos, curiosamente subestimado pelo governo local...
Contra esse esforço pela verdade e pelas famílias dos mortos, o governo reagiu e tentou até mesmo o impedimento de Axat. Sendo ele quem é, jurista, poeta e editor, e genial nos três campos, decidiu reagir também no plano poético. E criou este livro, para que convidou vários autores, não só da Argentina, com a tarefa de escrever sobre as vítimas do alagamento, que o governo de La Plata, incapaz de prevenir o desastre, tentou silenciar.
Leiam esta entrevista em que Julián Axat explica a origem do livro e sua concepção de poesia política:
La inquietud primero fue meramente judicial y activista. Yo abrí la causa. Interpuse la acción ante la justicia, un habeas data para que se averigüe quienes eran las personas que estaban desaparecidas, fallecidas o en ese momento se desconocía su paradero. Paralelo a la causa judicial, siguiendo mis inquietudes artísticas-literarias, se me ocurrió un proyecto distinto. Yo trabajé casi medio mes con la causa y después el poder político me sacó. Impedido de seguir con la cuestión judicial avancé con la pesquisa literaria. Había pensado en armar un antología como Masters, escribiendo las voces de las víctimas que iba encontrando. En mi propia investigación judicial, al día 5 de abril cuando se dio la nómina, ya había encontrado que existían diez casos que no estaban incluidos. Le hice saber al poder ejecutivo que estaban omitiendo personas. Como respuesta me dicen que dejara de buscar debajo de la alfombra .

Nestes vídeos, podemos ver o lançamento do livro, e a grande multidão que prestigiou o evento: http://coleccionlosdetectivessalvajes.blogspot.com.br/2014/04/cuando-un-libro-de-poemas-es-mas-que-un.html
Na apresentação, Axat explica como a obra foi concebida e realizada, e afirma, sobre a poesia hoje, que "tiendo a creer que gran parte de la poesía que se escribe en este momento ha perdido su potencia disruptiva, por ausencia de una verdadera propuesta o relato interpelativo que la contenga."
A maioria dos autores é argentina, mas há exceções. A vítima que me coube nesse livro foi uma senhora, Dora Romero, que se afogou enquanto seu cão sobreviveu: ele conseguiu subir na mobília e salvar-se, ela não.
Eis o original. Não tentei escrever em primeira pessoa; quis elaborar um texto curto. O poema foi traduzido para o espanhol para a coletânea pelo poeta argentino Anibal Cristobo, que já havia traduzido para essa língua meu livro Cálcio.

Dora Romero

Um cão, uma mulher
e as águas. Só um deles
gritaria as marés,
terra calada. Cão,
mulher e águas. Um deles
seria o mais profundo
fugindo à superfície
da vida autorizada.
Águas e cão, mulher
sob os móveis a ver
toda a casa um rio
que o negro mordia.
Ouvir quem mergulhou
e fala do naufrágio
onde o poder navega.
Ouvir quem naufragou
quando a cidade e as ondas
latiram confundidas.
Ouvir quem se calou
submerso e na justiça
conheceu o deserto.

sábado, 19 de abril de 2014

O 19 de abril e os eventos da campanha Índio é nós





Neste sábado, dia 19 de abril, participarei em São Paulo da Caminhada Índio é nós em prol dos direitos e terras indígenas: não se trata de uma ocasião de festa, e sim de reivindicação:

Dando seguimento à campanha pela mobilização nacional em prol dos direitos e das terras indígenas, o coletivo ÍNDIO É NÓS se une ao TEATRO OFICINA e ao MOVIMENTO PARQUE AUGUSTA em evento no Dia do Índio.
Convidamos a população de São Paulo para uma caminhada contra o ataque (genocídio, etnocídio, espoliação) aos índios patrocinado pelo agronegócio, pelas hidrelétricas, pelas empreiteiras e por novas encarnações do bandeirantismo desenvolvimentista, que destrói a terra como local de práticas simbólicas.
Além disso, dançaremos para celebrar nossos tekohás (termo guarani para designar não apenas o espaço físico da aldeia, mas o lugar onde se mantêm vivas as tradições, o modo de ser de um grupo), espaços da cidade prenhes de significação e ameaçados pela especulação imobiliária, pela segregação socioeconômica, pela paranoia securitária.
O cortejo sairá às 15h00 (concentração a partir das 14h00) do Museu de Arte de São Paulo (Masp), instituição em crise financeira cujo vão livre, tekohá de manifestações cívicas, a direção do museu já cogitou fechar.


Índio é nós (http://www.indio-eh-nos.eco.br/) não é uma organização, mas um ponto de articulação e de reverberação das pessoas e entidades comprometidas com os direitos e terras indígenas. Ela nasceu entre não índios, mas aberta para os povos originários (como se diz em espanhol) fazerem uso dessa campanha para dar mais visibilidade às suas demandas.
Esses povos já estão bem atuantes, e ocuparam o Congresso antes das Jornadas de Junho, mostrando o caminho de ação política. Em outubro, os diversos eventos da Mobilização Nacional Indígena, em prol da Constituição de 1988, foram também exemplares; em São Paulo, houve a histórica ocupação do Monumento às Bandeiras, que tive a alegria de testemunhar.
Lembro do ridículo de certo jornalismo, que noticiou o evento para dizer o quanto seria gasto para remover a tinta vermelha que os índios jogaram sobre o monumento...

Eventos Índio é nós ocorrerão neste dia também no Rio de Janeiro (o Dia Internacional de Combate ao Genocídio Indígena), no Pará (a Cia Balagan com a peça Recusa em Altamira), em Minas Gerais (a Chuva de Poesia com o "Tótem" de André Vallias), em Goiás (o começo da Semana dos Povos Indígenas e da IV Jornada de Arqueologia do Cerrado), em Brasília (estreia de Índio cidadão?, filme de Rodrigo Siqueira).
Participei de outro deles nesta semana. Estive na UFSC na última quarta-feira, 16 de abril, convidado pelo PET da faculdade de Direito, que tem a professora Jeanine Philippi como tutora, para falar em um colóquio sobre a ditadura militar. Lá, tratei do genocídio dos índios nesse período, tema que sugeri (pois foram as maiores vítimas da ditadura) e que foi prontamente aceito. Citei Shalton Davis e Manuela Carneiro da Cunha, Marcelo Zelic e Maria Rita Kehl, além de alguns documentos que encontrei a respeito.



Tive o prazer de rever o jovem (e brilhante) jurista Marcel Soares de Souza, que foi o debatedor na ocasião, e que havia ajudado a coordenar o Seminário Direito e Ditadura na UFSC em 2010.
Em Florianópolis, tive outra alegria, a de ver que duas apoiadoras da Resistência Guarani naquele Estado aproveitaram a palestra para falar sobre a homologação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, no Município de Palhoça. Elas distribuíram panfletos e este cartão, para ser enviado à Presidenta Rousseff. Cliquem sobre a imagens para imprimi-las e enviá-las.

De fato, os eventos de Índio é nós (que podem ser vistos neste mapa) são para isto: tentar dar mais visibilidade ao trabalho das organizações indígenas e das que trabalham com esse universo. Não por acaso, a campanha nasceu entre não índios e não especialistas na questão, que não pode ficar restrita a esses povos e aos antropólogos. Ela deve ser tratada como uma causa de toda a sociedade brasileira.
Eu mesmo, que não sou nenhum especialista no assunto, no dia 17 de abril último fui ao ato dos Guarani de São Paulo de lançamento da Campanha para demarcação de suas terras.

Aconselho que vejam o belo vídeo feito pela Comissão Guarani Yvyrupa (https://www.youtube.com/watch?v=ShzMhVgna-g&feature=youtu.be) e apoiem a petição dos Guarani para o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assinar a homologação de suas terras.
O Ministro, convidado, não compareceu... Mas a Justiça estava lá, na própria causa dos Guarani.
Para lançar a campanha, eles ocuparam o Pátio do Colégio (ver o site da Resistência Guarani: http://campanhaguaranisp.yvyrupa.org.br/) no dia 16. Vejam também a matéria do Repórter Brasil, que inclui vídeos desse momento: http://reporterbrasil.org.br/2014/04/indios-guarani-ocupam-patio-do-colegio-por-demarcacao-de-terras-em-sao-paulo/
Eles ficaram lá até o dia seguinte, quando cantaram e dançaram, e apoiadores discursaram com as lideranças indígenas: representantes do Índio é nós, do Movimento Passe Livre, da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, da Luta Popular, do Comitê Popular da Copa. Até mesmo o padre Carlos Contieri, diretor do museu, que havia chamado a polícia quando houve a ocupação, falou e agradeceu aos Guarani: "a surpresa de Deus sempre abre o olhar da gente".
Estavam lá também, pelo que pude reconhecer, membros do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), do Instituto Socioambiental (ISA), Marcelo Zelic do Tortura Nunca Mais-SP... Esses também trabalham para abrir os olhares.

Em panfleto que foi distribuído no ato, os Guarani explicaram por que ocuparam o Pátio do Colégio, marco histórico da colonização de São Paulo e da apropriação das terras que foram dos índios: "Ocupando pacificamente esse lugar simbólico, não estamos nos vingando, nem estamos enganando vocês, como vocês fizeram. Queremos apenas surpreendê-los para anunciar que precisamos da demarcação das nossas terras."
A Terra Indígena Jaraguá, por sinal, além de ser a menor do país (com 1,7 hectare), insuficiente para os índios que vivem lá, também sofre por o rio estar poluído.
No panfleto, os Guarani convocam para um ato que farão no Vão do Masp no dia 24 de abril, com concentração às 17 horas.

Para somar a essa iniciativa dos índios de São Paulo, Índio é nós chamou para a Caminhada, com o Teatro Oficina, neste sábado, dia 19, para luta contra as violações dos direitos dos índios, que continuam ainda a ocorrer.
Não podemos perder a oportunidade de lutar contra o etnocídio (e, em algumas regiões, o genocídio) em curso, apoiado por governos comprometidos com os interesses econômicos que cobiçam as terras indígenas e destroem o meio ambiente. Como disse Manuela Carneiro da Cunha no lançamento paulista da campanha, e também nesta reportagem de Guilherme Freitas no caderno Prosa e Verso de O Globo, "O cerco aos índios na ditadura e na democracia":
Os índios que foram, como outros resistentes, enquadrados pelo regime militar como casos de segurança nacional, hoje, no regime democrático, continuam perseguidos. A Constituição de 1988, que proclama seus direitos, está sob constante ameaça de uma fortíssima bancada do agronegócio no Congresso.
Trata-se, pois, de uma defesa também da democracia. Participe dos atos que ocorrerão em sua cidade, ou os organize, caso não haja nenhum previsto. E assine as petições virtuais em prol da demarcação das terras indígenas, tarefa que o governo federal deveria, por obrigação constitucional, ter encerrado em 1993, e que continua a protelar, em desrespeito a esses povos e ao direito brasileiro.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Lançamento de Caminhos da lírica brasileira contemporânea

Este livro de ensaios, Caminhos da lírica brasileira contemporânea (org. Simone Rossinetti Rufinoni e Tercio Redondo) foi publicado pela Nankin em dezembro de 2013, mas somente neste 9 de abril de 2014 é que será lançado no Restaurante Central das Artes (rua Apinajés, 1081, em São Paulo).
A própria organizadora é um dos autores, bem como Eduardo Sterzi, Fabio Weintraub, Iumna Maria Simon, Priscila Figueiredo, Renan Nuernberger, Vilma Arêas e Viviana Bosi. Talvez de intruso, também entrei nessa prestigiosa lista, com um artigo sobre Nuno Ramos.
Embora predominem autores ligados à faculdade de Letras da USP (o que não é meu caso, naturalmente), as abordagens críticas são bastante diferentes, bem como o escopo dos ensaios. Alguns se detêm em um só autor, outros fazem referência a vários. Eduardo Sterzi, em um trabalho que tem Pasolini como centro, refere-se a Carlito Azevedo. Nuernberger trata de Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck e, para isso, passa por Leminski, Paulo Ferraz, Fabiano Calixto, Dirceu Villa e outros. Viviana Bosi analisa Rubens Rodrigues Torres Filho, Francisco Alvim e Sebastião Uchoa Leite. Fabio Weintraub debruça-se sobre Régis Bonvicino, Tarso de Melo, Sebastião Nicomedes e outros.
Alguns dos ensaios foram publicados anteriormente: o de Priscila Figueiredo sobre Airton Paschoa e o de Iumna Maria Simon, que tem Claudia Roquette-Pinto como objeto.
Neste livro há críticos que também são poetas: Sterzi, Weintraub, Figueiredo, Nuernberger, e alguns aparecem também como objeto de análises nos ensaios. Fabio Weintraub, por exemplo, é analisado por Simone Rufinoni; Priscila Figueiredo, por Vilma Arêas.
Também nesse aspecto, o livro é interessante por flagrar como os autores de hoje refletem sobre e são pensados por seus contemporâneos. Há uma conversa sendo urdida entre os poetas brasileiros? Provavelmente várias, e a obra apresenta algumas.




sexta-feira, 4 de abril de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXII: O lançamento de "Índio é nós" e os milhares de mortos pela ditadura

Escrevo mais uma nota para a IX Blogagem Coletiva DesarquivandoBR, que durará até 6 de abril.

É necessário dizer novamente: as maiores vítimas da ditadura militar foram os índios. Milhares de mortos na Amazônia, muitas outras vítimas pelo Brasil, a implantação de campos de trabalho forçado (vejam a matéria da Agência Pública), usurpação de terras, estupro, tortura, a militarização da Funai... No campo e na floresta, a violência do Estado brasileiro foi muito maior. E não começou em 1964, claro - o genocídio indígena iniciou-se nos tempos coloniais. No tocante ao campo, a recente pesquisa sobre os quase mil e duzentos camponeses mortos, publicada em 2013 pela Secretaria de Direitos Humanos aponta vítimas da repressão política desde 1961, que estão dentro do alcance legal para indenizações. Ela pode ser lida nesta ligação.
É impressionante que ainda se repita que a ditadura brasileira matou aproximadamente quinhentas pessoas. E ouvimos esse número brutalmente subestimado mesmo de pessoas que trabalham com a justiça de transição, o que mostra como estamos atrasados em relação ao direito à memória e à verdade. Em relação à floresta, estima-se o montante de oito mil índios mortos somente em razão dos projetos desenvolvimentistas na Amazônia, como bem lembra o jornalista Leão Serva.
Também impressiona que se repita que as Comissões da Verdade não estão trazendo nada de novo. Alguns historiadores do passado recente, que deveriam estar acompanhando mais de perto a questão, não perceberam que terão que rever seus livros. Na Comissão Nacional da Verdade, Maria Rita Kehl é responsável pela investigação dos crimes cometidos contra esses povos. Ela voltou recentemente do Paraná, onde também houve genocídio. Leiam esta matéria de Tadeu Breda para a Rede Brasil Atual, "Nos 50 anos do golpe, CNV ouve relatos sobre 'êxodo guarani' no Paraná". Um dos testemunhos é do índio Casemiro Pereira:
Casemiro contou à CNV que se deu de maneira violenta a expulsão dos guarani que viviam nas áreas prestes a serem tomadas pelas águas da barragem, nos anos 1980. "Tinha muito guarani, mas queimaram casa. Incra fez isso. Trouxe militar e expulsou e matou gente lá", relatou, explicando que, antes de a represa tomar conta de tudo, a aldeia se chamava Jakutinga e tomava um amplo pedaço de terra à beira rio. "Não sei quanta gente morreu, mas foi mais da metade. Alguns fugiram para o Paraguai."
Por conta da necessidade de desarquivar esse passado, ainda tão presente na opressão aos índios, a campanha Índio é nós, (a mobilização nacional, neste abril de 2014, em prol dos direitos e terras indígenas no Brasil) preocupou-se com a questão da justiça de transição. Em seu lançamento paulista, neste dia cinco de abril, na Casa do Povo, trará Maria Rita Kehl e Marcelo Zelic, pesquisador que encontrou o Relatório Figueiredo. Esse relatório documentou os crimes contra os povos indígenas no Brasil cometidos na época e pelo SPI, o Serviço de Proteção ao Índio.
David Martim, índio Guarani da Terra Indígena Jaraguá, falará do problema de demarcação dessa TI e também da Tenondé Porã, na Grande São Paulo, que dependem apenas da assinatura do Ministro da Justiça. Índio é nós está apoiando a petição dos Guarani, que eu também assinei, para que o Ministro não tarde mais ainda em cumprir seus deveres constitucionais.

Ademais, o lançamento contará com as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Artionka Capiberibe, a demógrafa e ex-presidente da Funai Marta Azevedo, com as apresentações artísticas de Marlui Miranda e da Cia Oito Nova de Dança. Também ocorrerá o lançamento nacional do novo número da Revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, editada por Afonso Henriques Neto, que apresenta um especial, organizado por Sergio Cohn (que estará no evento), sobre poesia ameríndia.
No lançamento, se divulgará também a petição Índio é nós (já aberta para assinaturas nesta ligação) pela demarcação das terras dos índios (atrasadíssima, deveria ter sido concluída em 1993, segundo a Constituição da República) e respeito ao direito de consulta previsto na Convenção 169 da OIT, sistematicamente desrespeitado nos empreendimentos que se pretendem realizar em áreas que afetam os povos indígenas.
Escrevi um pequeno texto para a revista Baderna sobre a campanha:
A campanha trata dos genocídios de ontem e de hoje, que estão relacionados, como se pode perceber nos projetos de intervenção na Amazônia (Belo Monte é um exemplo) concebidos pela ditadura militar que estão sendo implementados hoje. Por conseguinte, ela envolve também a justiça de transição, isto é, a democratização da sociedade e a punição dos perpetradores de abusos contra os direitos humanos após o fim de um regime autoritário. A falta dessa justiça no Brasil evidencia-se tanto na impunidade escandalosa dos assassinos e torturadores da ditadura militar, bem como de seus financiadores, quanto na continuidade dos abusos cometidos contra os povos indígenas, à revelia dos direitos duramente conquistados, mas que permanecem em plano formal, e com o apoio de forças semelhantes às que promoveram o golpe de 1964, mas agora com a ajuda da esquerda que chegou ao poder. Como bem sintetizou Eduardo Viveiros de Castro, foi preciso a esquerda chegar ao poder “para realizar o projeto da direita”, o que certamente mostra os limites políticos e ideológicos dessa esquerda em particular.
Portanto, mesmo levando em consideração que a opressão data da colonização, é como se o golpe de 1964, para os povos indígenas, não tivesse terminado ainda.
Também por essa razão, esta campanha visa contribuir para a democratização do Estado brasileiro e, por isso, a todos interessa: índio é nós.
Nele, recordo que outra das continuidades da ditadura empregada contra os povos indígenas é o instituto processual da suspensão de segurança, que permite que razões inspiradas na segurança nacional. O Estado brasileiro foi recentemente denunciado na OEA, por índios e organizações não governamentais (como a Terra de Direitos e a Justiça Global) em razão dessa conduta autoritária.
Tanto pior para os que acham que não se deve falar no que "resta da ditadura", questão que abordei em outra nota. O silêncio sobre esses assuntos também é algo que resta da ditadura...






quinta-feira, 3 de abril de 2014

A polícia invadindo debates, debatedores que se evadem da polícia

O tema da violência policial e o da repressão política mantém-se na ordem do dia, e não sairá dela tão cedo, por conta da Copa do Mundo e das eleições. Sobre isso, falei no Vandaleando, "Criminalização dos protestos", no último 11 de março, com a internacionalista Deisy Ventura e os organizadores Pedro Moraes e João Rafael. Mencionei o Derecho a la protesta, livro do constitucionalista argentino Roberto Gargarella. Ao que falei nessa ocasião, devo acrescentar que a OAB-SP felizmente desautorizou os seus membros que tentaram atrapalhar os Advogados Ativistas.
No dia 27 de março, fui falar sobre tema semelhante em debate promovido pelo Comitê Popular da Copa e pelo Comitê pela Desmilitarização da Polícia e da Política, no Espaço Latino-Americano (ECLA). A Mídia Negra transmitiu e gravou o evento; pouco antes dos 24 minutos, começa a tentativa de policiais militares de invadirem o evento. Falava, nesse momento, a advogada e mestranda em Ciências Sociais Juliana Britto, que fazia um panorama das leis e projetos de repressão.
A Agência Pública fez uma nota sobre o ocorrido no facebook, mas vocês mesmos podem ver aos quatro minutos e meio desta parte do vídeo: http://twitcasting.tv/midianegra/movie/49579464
Os policiais, pois, vieram involuntariamente corroborar a análise que estava sendo exposta...
Que a polícia tenha tentado interromper um debate porque supostamente ele seria "uma atividade política", ou um "evento contra a polícia", segundo o que disseram, é um dos sinais do desacerto de análises como a do professor Samuel Rodrigues Barbosa, da faculdade de Direito da USP, em resposta a um artigo provocador de Vladimir Safatle, da FFLCH/USP, "A ditadura venceu". O professor de filosofia e colunista da Folha constatou continuidades da ditadura, não só no tocante à memória coletiva, mas na permanência até de nomes como Sarney e Delfim, além de atitudes de empresas como o Itaú.
Samuel Barbosa reduz o debate à dimensão da memória e lê muito literalmente o artifício retórico de Safatle, que não é sinal de "bloqueio" ou, como quis outro autor, na revista Baderna, "capitulação".
Idelber Avelar logo apontou diversos problemas do texto desse professor de Direito; um deles é o de que não está realmente acompanhando os jornais.
Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo publicaram recentemente editoriais em que se negaram até mesmo a fazer o mea culpa de O Globo. Não só publicaram editoriais comprometidos com a herança de 1964, como deram abrigo às vozes dos nonagenários e de seus seguidores mais jovens. Por que deram tanto espaço a passeatas de três, nove, vinte pessoas, como foram as tentativas farsescas de repetir as marchas pela família (exceto no Rio e, principalmente, em São Paulo, onde houve mais gente, contanto nada que se comparasse às marchas da maconha - para não falar as LBGT)?
Acrescento que é curioso que Samuel Rodrigues Barbosa mencionasse as Jornadas de Junho sem a lembrança de que nenhum policial foi punido, até agora, pela violência usada contra os direitos democráticos de manifestação e expressão. Para o Estado brasileiro, pelo que parecem demonstrar os projetos legislativos sobre terrorismo, o escândalo não é a violência e a repressão política em tempos de democracia formal, e sim que o povo vá as ruas, se manifeste. A materialização da democracia, pois, é o verdadeiro motivo de terror para as autoridades, e os projetos novos de repressão, em um país que afirma não ter terroristas, mal conseguem esconder seu verdadeiro alvo: os movimentos sociais e os manifestantes, mesmo não organizados em torno de uma bandeira única, mesmo sem pertencer a entidades específicas, como foi o caso de boa parte das passeatas do ano passado.
Outra deficiência do texto do professor Samuel Rodrigues Barbosa está no campo jurídico: Idelber Avelar bem lembra da lei de anistia, monstrengo jurídico que é só um dos elementos do entulho autoritário que resta da ditadura: "A ditadura militar cometeu crimes de lesa-humanidade que não foram sequer julgados, que dirá condenados, e o Prof. Barbosa quer nos convencer que ela foi derrotada porque o Estado brasileiro pagou indenizações!"
Escrevi em mais de um texto como o julgamento da ADPF 153, em que o STF considerou que a lei de anistia (que teria sido "constitucionalidade" pela emenda 26 de 1985) era superior à Constituição de 1988, foi uma negação da transição democrática. Em um texto no número 30 do  Sopro, que tem a vantagem de ser mais breve do que os outros que escrevi, afirmei que "A posição do STF, de que a emenda da Constituição da ditadura militar é superior à Constituição da democracia, significa, politicamente, que não houve justiça de transição porque a transição jamais ocorreu: as normas superiores continuam a ser, segundo o Supremo Tribunal Federal, aquelas emanadas pelo velho poder autoritário oriundo do golpe de 1964."

Escrevi acima que Samuel Rodrigues Barbosa errava em reduzir o debate à questão da memória. Idelber Avelar apontou esse mesmo problema e não deixou de lembrar das práticas autoritárias de hoje, contra os moradores de favelas e contra os povos indígenas. Egydio Schwade é um dos que apontam a permanência de moldes da ditadura na política indigenista de hoje.
Eu gostaria de acrescentar que uma mesma nova norma antiga faz o papel de fundamento jurídico nos dois casos: a Portaria do Ministério da Defesa da Garantia de Lei e Ordem, sobre que falei no Vandaleando e no debate que policiais tentaram interromper. Na minha fala, gravada pela Mídia Negra (http://twitcasting.tv/midianegra/movie/49574216), explico a identidade da Portaria de 2013 (revogada em 2014) com a doutrina de segurança nacional: também temos nisso uma continuidade da ditadura!
Meu amigo Murilo Duarte Costa Corrêa escreveu um belo texto, "Cinquenta anos depois", incluído na IX Blogagem Coletiva DesarquivandoBR (que segue até 6 de abril), sobre a recente morte de Cláudia da Silva Ferreira, tratada acintosamente pela polícia e por sua porta-voz, a grande mídia, que a chamava de "arrastada": "É preciso dizê-lo sem temor, e jamais como signo de nossa impotência, mas da consciência de nossa tarefa política por vir: a ditadura militar brasileira matou Cláudia Silva Ferreira 50 anos depois."
Creio que Safatle não escreveu aquele texto com outro propósito. A constatação da continuidade não é uma confissão de impotência, e sim uma necessária demarcação de nossa tarefa política. É o que tenho tentado fazer com meus limitados meios, principalmente nos textos relacionados à justiça de transição.
Crer, por exemplo, que a polícia dos EUA mata menos do que a do Brasil, ou que essa questão não importa para a democracia, é não ter a mínima ideia do que está em jogo. Não ver nada de alarmante na Lei Geral de Copa, uma lei de caráter evidentemente autoritário e inconstitucional, como lembrou, entre outros, Alexandre Morais da Rosa, é estar fora do jogo. Ou querer dele evadir-se, enquanto as forças de repressão cercam o campo.