Nunca soube, no entanto, por que ele não queria vendê-los. Um tempo depois, ele deixou a livraria. Eu a continuei lendo até o último livro, Estar sendo ter sido, publicado pela Nankin, já incluído na edição das obras completas pela Globo.
Várias vezes, textos seus foram encenados, o que desmente um pouco sua reputação de autora difícílima, de "tábua etrusca". No teatro Pequeno Ato, em São Paulo, seguem até este domingo dois breves espetáculos, separados por leitura de textos por convidados que variam de acordo com o dia, baseados em Hilda Hilst, "Casca!" e "O oco".
Em "Casca!", ouvimos principalmente textos de A obscena senhora D e Qadós (Kadosh, na nova edição); em "O oco" (que está "em processo"), nada do conto homônimo, e sim principalmente dos Poemas Malditos, Gozosos e Devotos.
As linguagens são muito diferentes. O primeiro é, principalmente (mas não só), uma coreografia, e a música é tocada em uma vitrola; úberes com leite e ovos cozidos dão a marca do nascimento. Gisele Petty e Mariana Corale dividem o palco; o "papel", na verdade performance, principal é de Petty, que dança e diz o texto com grande domínio do espaço.
O segundo espetáculo é um recital solo com Maurício Coronado Jr., que conta com poucos elementos cênicos: um baú, uma projeção de imagem religiosa. A presença da música é menor, porém, quando surge, suspende a ação, ao contrário do jazz e do rock de "Casca!". Em "O oco", tudo para quando se ouve Luciano Pavarotti na canção "Core 'ngrato" (a voz é belíssima; a orquestração não está no mesmo nível).
O quanto "Casca!" é extrovertido, "O oco" se volta para dentro. Coronado Jr. mantém-se tranquilo, o que está de acordo com os textos, e jamais tira a roupa - enquanto Gisele Petty termina o espetáculo nua, e a nudez é o corolário dessa dança. No primeiro, há espaço para o improviso, sua linguagem o permite; no segundo, tudo parece já determinado.
A obra de Hilda Hilst tem uma variedade que permite essas abordagens muito diversas. É significativo que nenhum dos artistas tenha escolhido textos originalmente escritos para o teatro da autora. É fácil notar que os diretores e atores preferem adaptar textos de outros gêneros, pois no teatro é o campo em que ela é mais fraca, não obstante os protestos de Hilst: "eu sei que o meu teatro, como tudo o que escrevi, é lindo demais.", declarou na entrevista que saiu publicada nos Cadernos de Literatura Brasileira, publicados pelo IMS, em outubro de 1999; e reclamou que o "meu teatro, por exemplo, ninguém faz". Mas o teatro a monta e traz para um novo público, e é isso que importa.
O que mais me interessou nos dois espetáculos é o que realizam de traição, não sei se voluntária, à obra de Hilst. Sua obra junta o fescenino (mesmo antes da trilogia "pornográfica") à busca de Deus. A perda do Deus na literatura de Hilda Hilst corresponde à perda do Pai. Um é o símbolo do outro:
(...) eu pus num teto que o meu personagem chupava o dedões do pé do pai (...) deus também, deus adora que lhe chupem o dedões do pé [Estar Sendo Ter Sido, São Paulo: Nankin Editorial, 1997 p. 108]Deus-Pai está perdido, mas não definitivamente morto. A sua morte é um ritual que se repete na escrita:
há névoas dentro de mim, Matias. ah, pára com isso, que névoa? não começa de novo, é aquilo outra vez? é isso ó. (tira rapidamente o revólver da cintura e dá um tiro na têmpora).
(eu poderia ter escrito tudo isso e agora dava um tiro na têmpora. mas não o fiz. então tenho que continuar, dizendo é isso ó) [Estar Sendo Ter Sido, p. 18]
A escrita de Hilst, pois, é o teatro onde se reencena ritualmente a perda do Deus e a sua busca.
O sexo, na obra dela, não está diretamente comprometido com nenhuma bandeira política de afirmação da liberdade da mulher. A liberdade sexual está posta nessa obra, que inclui descrições de sado-masoquismo, relações homossexuais e heterossexuais, bestialismo, incesto e outras fantasias, tanto do homem quanto da mulher, mas orientadas para a busca do divino. Deus pode estar no porco, no cu, em todas as possibilidades sexuais, e a escrita não pode temer essas possibilidades:
no meu cu, idiota, ah, está bem, não chora, já vi que você não entende nada de deus, eu precisava é falar com Dom Deo, mostrar-lhe o único buraco aqui na Terra onde deus habita. [Estar Sendo Ter Sido, p. 90]
Ó buraco, estás aí também no teu Senhor? Há muito que se louva o todo espremido. Estás destronado quem sabe, Senhor, em favor desse buraco? Estás me ouvindo? Altares, velas, luzes, lírios, e no topo uma imensa rodela de granito, umas dobras no mármore, um belíssimo ônix, uns arremedos de carne, do cu escultores líricos. E dizem os doutos que Tua Presença ali é a mais perfeita, que ali é que está o sumo, o samadhi, o grande presunto, o prato. [A Obscena Senhora D, Rútilo Nada, Campinas: Pontes Editores, p. 54]
Tubo sagrado. Hein? Porque expele a tua matéria deletéria. Ah, sim. Tubo espectral. Por quê? Escuro, Ruiska, escuro. [Fluxo-Floema, Ficções, São Paulo: Quíron, p. 206, 1977]
- Procura Deus, senhora? Procura Deus?
E simétrico de zelos, balouçante
Dobra-se num salto e desnuda o traseiro.
[Amavisse, III de “Via Espessa”]
Hilst, porém, não está a simplesmente a inverter os locais sagrados, pois não se deve alimentar nenhuma ilusão de encontro, nem mesmo no traseiro:
E há indivíduos e povos iludidos que ainda acreditam que o traseiro do louco possa ser o retrato do divino. “Voilà”. Ilusões de cegos e de moucos. [Cascos e Carícias, São Paulo: Nankin Editorial, 1998, p. 139]Essa busca é desesperançada. Por isso, o verdadeiro júbilo que "Casca!" alcança no fim, quando Giselle Petty, molhada com o leite que desceu dos úberes do céu, se desnuda e dança com Mariana Corale, embora coerente com a coreografia feita até esse momento, foge à noção de escárnio que está no centro da obra de Hilst: um grotesco sem esperança, com nostalgia do sublime; enfim, "É tedioso e até inaceitável mas é assim" [Contos d'Escárnio, São Paulo: Siciliano, 1990, p. 93].
Essa nostalgia do sublime é uma força que aparece mais na poesia de Hilda Hilst (entendo que, por isso, muitos costumam preferi-la na prosa) e anima o recital "O oco". No entanto, aquela poesia, lida por um homem, faz tudo mudar de figura; antes, víamos a poeta querendo um encontro amoroso com um Deus masculino; agora, temos um ator que, em determinado momento, se identifica com a figura divina: Maurício Coronado Jr., com sua roupa branca e sua barba, recebe na parede uma iluminação que sugere a imagem de Cristo.
Subitamente, o encontro com o divino é possível, mesmo que só por um momento, o que é reforçado pelos três minutos de epifania da voz de Pavarotti interpretando uma canção italiana de amor perdido, um amor cujo retorno foi pedido na Igreja.
Nessas sutis traições, creio, os dois espetáculos ganham interesse: eles nos fornecem sua própria visão sem mudar o texto da autora, o que apenas poderia ser feito consistentemente após uma prolongada convivência com a obra de Hilda Hilst, o que parece ser o caso destes jovens artistas.