O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 26 de outubro de 2014

Hilda Hilst no palco: "Casca!" e "O oco"

Lembro de quando resolvi ler Hilda Hilst. Eu havia lido uma entrevista interessante no caderno Ideias do saudoso Jornal do Brasil, no fim da década de 1980. Fui a uma livraria que ficava em Copacabana (não há mais); um dos sócios, que era psicólogo, me questionou por que eu queria ler "aquela mulher". Achei sexista. Comprei três livros de uma só vez.
Nunca soube, no entanto, por que ele não queria vendê-los. Um tempo depois, ele deixou a livraria. Eu a continuei lendo até o último livro, Estar sendo ter sido, publicado pela Nankin, já incluído na edição das obras completas pela Globo.
Várias vezes, textos seus foram encenados, o que desmente um pouco sua reputação de autora difícílima, de "tábua etrusca". No teatro Pequeno Ato, em São Paulo, seguem até este domingo dois breves espetáculos, separados por leitura de textos por convidados que variam de acordo com o dia, baseados em Hilda Hilst, "Casca!" e "O oco".
Em "Casca!", ouvimos principalmente textos de A obscena senhora D e Qadós (Kadosh, na nova edição); em "O oco" (que está "em processo"), nada do conto homônimo, e sim principalmente dos Poemas Malditos, Gozosos e Devotos.
As linguagens são muito diferentes. O primeiro é, principalmente (mas não só), uma coreografia, e a música é tocada em uma vitrola; úberes com leite e ovos cozidos dão a marca do nascimento. Gisele Petty e Mariana Corale dividem o palco; o "papel", na verdade performance, principal é de Petty, que dança e diz o texto com grande domínio do espaço.
O segundo espetáculo é um recital solo com Maurício Coronado Jr., que conta com poucos elementos cênicos: um baú, uma projeção de imagem religiosa. A presença da música é menor, porém, quando surge, suspende a ação, ao contrário do jazz e do rock de "Casca!". Em "O oco", tudo para quando se ouve Luciano Pavarotti na canção "Core 'ngrato" (a voz é belíssima; a orquestração não está no mesmo nível).
O quanto "Casca!" é extrovertido, "O oco" se volta para dentro. Coronado Jr. mantém-se tranquilo, o que está de acordo com os textos, e jamais tira a roupa - enquanto Gisele Petty termina o espetáculo nua, e a nudez é o corolário dessa dança. No primeiro, há espaço para o improviso, sua linguagem o permite; no segundo, tudo parece já determinado.
A obra de Hilda Hilst tem uma variedade que permite essas abordagens muito diversas. É significativo que nenhum dos artistas tenha escolhido textos originalmente escritos para o teatro da autora. É fácil notar que os diretores e atores preferem adaptar textos de outros gêneros, pois no teatro é o campo em que ela é mais fraca, não obstante os protestos de Hilst: "eu sei que o meu teatro, como tudo o que escrevi, é lindo demais.", declarou na entrevista que saiu publicada nos Cadernos de Literatura Brasileira, publicados pelo IMS, em outubro de 1999; e reclamou que o "meu teatro, por exemplo, ninguém faz". Mas o teatro a monta e traz para um novo público, e é isso que importa.
O que mais me interessou nos dois espetáculos é o que realizam de traição, não sei se voluntária, à obra de Hilst. Sua obra junta o fescenino (mesmo antes da trilogia "pornográfica") à busca de Deus. A perda do Deus na literatura de Hilda Hilst corresponde à perda do Pai. Um é o símbolo do outro: 
(...) eu pus num teto que o meu personagem chupava o dedões do pé do pai (...) deus também, deus adora que lhe chupem o dedões do pé [Estar Sendo Ter Sido, São Paulo: Nankin Editorial, 1997 p. 108]
Deus-Pai está perdido, mas não definitivamente morto. A sua morte é um ritual que se repete na escrita:
há névoas dentro de mim, Matias. ah, pára com isso, que névoa? não começa de novo, é aquilo outra vez? é isso ó. (tira rapidamente o revólver da cintura e dá um tiro na têmpora).
(eu poderia ter escrito tudo isso e agora dava um tiro na têmpora. mas não o fiz. então tenho que continuar, dizendo é isso ó) [Estar Sendo Ter Sido, p. 18]

A escrita de Hilst, pois, é o teatro onde se reencena ritualmente a perda do Deus e a sua busca.
O sexo, na obra dela, não está diretamente comprometido com nenhuma bandeira política de afirmação da liberdade da mulher. A liberdade sexual está posta nessa obra, que inclui descrições de sado-masoquismo, relações homossexuais e heterossexuais, bestialismo, incesto e outras fantasias, tanto do homem quanto da mulher, mas orientadas para a busca do divino. Deus pode estar no porco, no cu, em todas as possibilidades sexuais, e a escrita não pode temer essas possibilidades:
no meu cu, idiota, ah, está bem, não chora, já vi que você não entende nada de deus, eu precisava é falar com Dom Deo, mostrar-lhe o único buraco aqui na Terra onde deus habita. [Estar Sendo Ter Sido, p. 90]

Ó buraco, estás aí também no teu Senhor? Há muito que se louva o todo espremido. Estás destronado quem sabe, Senhor, em favor desse buraco? Estás me ouvindo? Altares, velas, luzes, lírios, e no topo uma imensa rodela de granito, umas dobras no mármore, um belíssimo ônix, uns arremedos de carne, do cu escultores líricos. E dizem os doutos que Tua Presença ali é a mais perfeita, que ali é que está o sumo, o samadhi, o grande presunto, o prato. [A Obscena Senhora D, Rútilo Nada, Campinas: Pontes Editores, p. 54]

Tubo sagrado. Hein? Porque expele a tua matéria deletéria. Ah, sim. Tubo espectral. Por quê? Escuro, Ruiska, escuro. [Fluxo-Floema, Ficções, São Paulo: Quíron, p. 206, 1977]

- Procura Deus, senhora? Procura Deus?
E simétrico de zelos, balouçante
Dobra-se num salto e desnuda o traseiro.
[Amavisse, III de “Via Espessa”]

Hilst, porém, não está a simplesmente a inverter os locais sagrados, pois não se deve alimentar nenhuma ilusão de encontro, nem mesmo no traseiro: 
E há indivíduos e povos iludidos que ainda acreditam que o traseiro  do louco possa ser o retrato do divino. “Voilà”.  Ilusões de cegos e de moucos. [Cascos e Carícias, São Paulo: Nankin Editorial, 1998, p. 139]
Essa busca é desesperançada. Por isso, o verdadeiro júbilo que "Casca!" alcança no fim, quando Giselle Petty, molhada com o leite que desceu dos úberes do céu, se desnuda e dança com Mariana Corale, embora coerente com a coreografia feita até esse momento, foge à noção de escárnio que está no centro da obra de Hilst: um grotesco sem esperança, com nostalgia do sublime; enfim, "É tedioso e até inaceitável mas é assim" [Contos d'Escárnio, São Paulo: Siciliano, 1990, p. 93].
Essa nostalgia do sublime é uma força que aparece mais na poesia de Hilda Hilst (entendo que, por isso, muitos costumam preferi-la na prosa) e anima o recital "O oco". No entanto, aquela poesia, lida por um homem, faz tudo mudar de figura; antes, víamos a poeta querendo um encontro amoroso com um Deus masculino; agora, temos um ator que, em determinado momento, se identifica com a figura divina: Maurício Coronado Jr., com sua roupa branca e sua barba, recebe na parede uma iluminação que sugere a imagem de Cristo.
Subitamente, o encontro com o divino é possível, mesmo que só por um momento, o que é reforçado pelos três minutos de epifania da voz de Pavarotti interpretando uma canção italiana de amor perdido, um amor cujo retorno foi pedido na Igreja.
Nessas sutis traições, creio, os dois espetáculos ganham interesse: eles nos fornecem sua própria visão sem mudar o texto da autora, o que apenas poderia ser feito consistentemente após uma prolongada convivência com a obra de Hilda Hilst, o que parece ser o caso destes jovens artistas.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Desarquivando o Brasil XCIV: Recomendações das comissões da verdade e nova blogagem coletiva

A campanha DesarquivandoBR criou nova blogagem coletiva, de 13 a 31 de outubro de 2014, com tuitaço no último dia. O tema é bastante interessante: "O que esperamos do relatório da CNV?"
Não me cabe responder a essa pergunta, pois fiz pesquisa para esse relatório. Posso ressaltar, porém, a questão das recomendações, que estarão presentes no relatório, e para que - o blogue Desarquivando o Brasil ressalta - a Comissão Nacional da Verdade, democraticamente, abriu consulta pública de 11 de agosto a 30 de setembro.
Trata-se de previsão do inciso VI do artigo 3º da ei 12.528 de 18 de novembro de 2011, que permitiu a criação da CNV: "recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional".
Irromperam, neste último semestre de funcionamento da Comissão, alguns clamores (na matéria, Amelinha Teles, Renan Quinalha e Marcelo Zelic, entre outros) para que a CNV não descuidasse de assuntos como a Guerrilha do Araguaia, a questão LBGT e as violações de direitos dos povos indígenas. Imagino que todos eles terão seu espaço, dada a sua importância.
A justiça de transição é como a cabeça do deus romano Jano: ela duas faces. Olha para o passado e para o futuro. Quer julgar e reparar o passado, mas também almeja construir, institucionalmente, as bases para um futuro em que as graves violações de direitos humanos não sejam mais sistematicamente cometidas. Por essa razão, todas as comissões estão a incluir recomendações em seus relatórios, seguindo a experiência internacional na matéria.
A rede DHNet elaborou uma página com ligações para diversos relatórios de comissões da verdade no mundo. O famoso Nunca más argentino, nesse aspecto, é fraco: uma página que não faz jus ao que a sociedade argentina logrou (e continua logrando) atingir. É certo que a prática social, para a produção da justiça, importa mais do que os textos... É ela, por sinal, que deve escrevê-los, ressignificá-los, para que o direito tenha efetividade.
As recomendações, pois, terão importância, se realizarem a tarefa dupla de refletir as reivindicações sociais e de suscitar, despertar novos clamores. Nessa dualidade complementar, a comparação com Jano também se faz eloquente.
Alguns grupos e organizações já elaboraram suas recomendações e as enviaram à CNV. É o caso do Grupo de Trabalho (GT) dos Trabalhadores, que elaborou um documento extenso, com 43 itens. Em alguns deles, há imprecisões jurídicas, no entanto. Destaco um trecho (note-se a pressa em escrever "antissindical"):


Muitas são interessantes e necessárias, como a extinção da Justiça Militar, que julga poucos processos e que poderia ser absorvida pela Justiça Federal. Não faz sentido, no entanto, a proposta de revogar a Lei de Imprensa, que não está mais vigente: o STF declarou que ela não foi recepcionada pela Constituição de 1988 na ADPF n. 130, proposta pelo PDT e julgada em 30 de abril de 2009. Assuntos como a ratificação da Convenção n. 158 da OIT (item 41) talvez não digam respeito diretamente ao problema, e precisariam de melhor explicação. O apelo à "democratização" dos meios de comunicação, previsto no item 20, embora urgente, é vago demais. Se houvesse sido feita uma referência à Constituição da República, sistematicamente descumprida nessa área, teria sido melhor.
O item 29 parte da premissa de que a desmilitarização da Polícia Militar pode ser realizada apenas com projeto de lei:
29. Encaminhar Projeto de Lei ao Congresso Nacional para desmilitarizar as Polícias Militares e revogar o Decreto-Lei nº 667 de 1969 que estabeleceu que se tornassem "forças auxiliares, reserva do Exército";
Creio que se trata de um equívoco. Parece-me que emenda constitucional também seria necessária, tendo em vista sua previsão na Constituição, que inclui, em relação às "polícias militares e corpos de bombeiros militares", a expressão "forças auxiliares e reserva do Exército" no parágrafo sexto do artigo 144. Um projeto de lei pode, com efeito, revogar o Decreto-lei, mas não a previsão constitucional.
As recomendações da Rede Nacional das Comissões da Verdade Universitárias são muito inferiores às elaboradas pelo GT dos Trabalhadores. São apenas 12, com um emprego curioso da linguagem ("positividade da criação da CNV"), e confusas, no sentido de que misturam recomendações às universidades, ao Legislativo federal, ao Executivo federal e a um destinatário indefinido. A Rede tampouco deu-se ao trabalho de dividir as recomendações entre iniciativas de memória, verdade, justiça e reforma institucional.
No entanto, as recomendações revelam-se altamente interessantes por serem um sintoma do atraso do meio acadêmico no tocante à justiça de transição. Vejam que elas partem do pressuposto de que a maior parte do trabalho ainda não foi realizada, muitas universidades nem mesmo criaram comissões da verdade, e mesmo iniciativas de pesquisa como identificar a legislação pertinente que remonta ao autoritarismo ainda restam a ser iniciadas. As reivindicações partem da expectativa de uma pesquisa futura, e não de investigações próprias já feitas. Para quem tinha a ilusão de que a academia estava na vanguarda deste movimento da democracia brasileira...
De qualquer forma, essas poucas universidades que criaram comissões ainda estão melhores do que a FIESP e a Globo, que nem mesmo se deram a esse trabalho, apesar do tanto que poderiam esclarecer.
A Comissão da Verdade do Rio realizou um documento muito melhor, individualizando as medidas com sua relevância e o órgão ou Poder responsável. O item 14, "Realizar uma auditoria da dívida da ditadura militar.", apesar de sua expressão genérica (dívida externa? interna?) diz respeito a uma antiga reivindicação dos movimentos contra a ditadura militar a cuja altura nunca estiveram os governos da democratização. 
O item 5 é realmente necessário:
5. Ampliar e aperfeiçoar o banco de dados Memórias Reveladas, alimentando-o com informações e representantes digitais dos acervos documentais e orais em posse do Poder Público, cujo acesso deve ser universalizado, facilitado e disponibilizado na Internet, com a criação de polos de acesso em diferentes localidades. 
A justificativa, porém, poderia muito bem ser ampliada: não é apenas o acervo do DOPS/RJ que se encontra em más condições e precisa ser digitalizado. 
O ponto 27, a extinção do crime de desacato, é muito relevante, pois geralmente mascara abuso de poder do pretenso "desacatado". Em julho, dei uma aula para alunos de Rebecca Atencio, todos ou quase todos dos EUA, e uma das coisas que me perguntaram foi o que significava esse crime... Apesar da militarização crescente do cotidiano daquele país (é preciso acabar com a ocupação militar nos EUA, disse certa vez Henfil para uma estadunidense incapaz de entendê-lo), o conceito era-lhes estranho.
A Rede Brasil - Memória, Verdade e Justiça, que é não governamental, também aprontou suas recomendações. Achei muito bom que fosse lembrado o III PNDH (no ponto 13 do documento), pelo seu papel no estabelecimento da CNV, e a importância do estabelecimento de locais de memória.
A Comissão da Verdade do Rio previu, em formulação interessante, o item da "revisão/reinterpretação" da Lei de Anistia; como outros juristas, também acho que o problema é de reinterpretação, que equivale, na prática, a uma revisão, tendo em vista o sentido frontalmente contrário aos direitos humanos que o Judiciário, para o júbilo dos torturadores e carrascos da ditadura militar, acabou por adotar, incluindo o Supremo Tribunal Federal em 2010, no triste julgamento da ADPF n. 153 - como escrevei em várias partes, inclusive neste blogue.
A Rede Brasil - Memória, Verdade e Justiça chegou também a uma boa formulação, mais detalhada no tocante à Constituição:
3) Explicitar que os valores e princípios insculpidos na Constituição Republicana de 1988 são incompatíveis com a anistia de crimes de lesa-humanidade, o que fica claro diante do reconhecimento formal do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro (Art. 1°, III), da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (Art. 4°, II), da condição de ser insusceptível de graça ou de anistia a prática da tortura (Art.5°, XLIII), e, sobretudo, porque a Constituição só trata de anistia com relação aos que foram perseguidos políticos pelo Estado brasileiro e não aos agentes públicos que os perseguiram (Art.8° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).
Eu, porém, teria acrescentado previsões do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Assim como as recomendações anteriores, com exceção da que foi realizada pelas universidades (de fato, bastante limitada em seu escopo), aconselhou-se o fim da Justiça Militar.
Outras surgirão, e logo teremos as da Comissão Nacional da Verdade. Creio que é importante ressaltar:
a) que não se retroceda em relação às reivindicações dos movimentos pela anistia nos anos 1970; b) que se note que ainda não foram realizadas as reivindicações desses movimentos pela anistia...

Neste "Manifesto à nação" (reproduzo-lhe a segunda e última página), 5 de novembro de 1978, do Congresso Nacional pela Anistia, temos a reivindicação do "fim da legislação repressiva". Por exemplo, a atual lei de segurança nacional e o estatuto do Estrangeiro ainda vigentes são posteriores a esse documento, pois forma editados no governo do ditador General Figueiredo. No entanto, ambos possuem esse perfil repressivo, repudiado pelos movimentos pela anistia.
No tocante à liberdade de organização e de manifestação, os ataques, por forças dos Estados e da União, contra as manifestações democráticas, mais acentuados desde 2013, mostram claramente que esse perfil autoritário das forças de segurança no Brasil não foi nada ultrapassado - o que é um fator, imagino, que explica por que as comissões da verdade são uma experiência tão tardia no Brasil, e por que elas continuam sendo necessárias...
Denunciam-no as sucessivas ilegalidades da ação policial (ver aqui) e o ataque às prerrogativas da advocacia (como lembrei nesta nota).

Neste outro documento, que já mencionei neste blogue, temos o programa mínimo de ação publicado pela seção de São Paulo do Comitê Brasileiro pela Anistia. Muita coisa ficou por realizar: o fim das torturas, que continuam sendo toleradas no Judiciário, a "elucidação da situação dos desaparecidos", campo em que a CNV pouquíssimo avançou, e que é um dos pontos da condenação do Brasil no Caso Araguaia na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O problema da legislação repressiva, como escrevi, continua a se por; e a luta pelas liberdades democráticas continua sendo necessária, agora com outros matizes. Lembremos, por exemplo, que voltou, em 2013, a apreensão de "livros subversivos'".
Antes, mal se admitia o voto; hoje, os poderes instituídos querem que a democracia se limite a apertar botões em uma urna eletrônica, e não a contestar o "vandalismo de Estado". 
Foi muito usual, nos discursos dos candidatos em 2014, a repetição da cacofonia "mais polícia", ou segundo os admiradores do calibre 45 (que bem poderia ser repetido por políticos de partidos de calibre mais baixo), "viva a PM". 
Uma das recomendações que deve ser feita pelas comissões, portanto, deve ser a da desmilitarização da polícia. Neste contexto de vandalismo estatal e de repressão, mais polícia significa menos política.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

"Nunca houve ditadura,/ mas peço que ela retorne" etc.



Zero à frente




I

Para eles
a política era necessária
como a iluminação
para os túneis
jamais escavados

entre as cidades
para que a política
era a água
o saneamento
embora desabitadas

por faltar-lhes
a política
onipresente
como as fronteiras
invisíveis
dos bairros demarcados
por pés nus
por marcas de tiro

tiros em quem anda armado
só da própria nudez
isto é
a política
operária da construção
de toda a cidade
ambas agora banidas


II

O que resta do país, ou o próprio país: não só os mortos empilhados, a putrefação a substituir a atmosfera, a inutilidade da atmosfera para os ossos, que respiram, ainda, mas outra terra;
O que resta do país: outra terra: como dos ossos restam os mortos.


III

Abre a boca,
a chibata sai e vibra:
não há escravos nem torturados mas apenas
efeitos colaterais da propriedade privada

A chibata recolhe-se,
outra língua irrompe
da boca-precipício:
nossa toda terra e não dos que caíram
sob nossa chegada eis a prova
plantamos as cinzas deles
e não frutificaram

Retrai-se à boca-vulcão
e uma língua toda títulos de crédito
sem massa sem forma
toda fluido e fúria:
cotação do direito à atmosfera
o direito ao corpo no mercado de futuros
entre as perdas eventuais o espaço
desocupado por aplicações mais rentáveis
e portáteis
do que as gotículas d’água
do sopro
dos animais ainda pulsantes

A boca não se fecha
desdentada como a areia no deserto profundo
sua fala os próprios dentes
e abocanha devasta
a devastação

(A boca não se fecha,
o mundo, sim;
de ambos, o grito.)



IV

Não sou conduzido,
conduzo. Abro ruas
sobre os pés,
visto-os de asfalto,
abro ruas
para carros passarem com a velocidade de pés nus.

Ninguém me seca,
sou o deserto. Sentem
sede, pego o revólver. Sentem
fome, chamo camburões
para prendê-la. Vivem
sem teto, aponto-lhes o progresso,
corram para lá
antes que seja tarde.

Não me apanham,
eu mesmo a corda.
Nunca houve ditadura,
mas peço que ela retorne
contra o governo eleito.
A corda está íntegra,
eu mesmo, o puído.

Nunca houve racismo,
jamais avistei negros
na faculdade ou no escritório.
Não há mais racismo
nem índios nem mico-leão;
escorraçamos os que ousam existir
e deixam as placas das ruas
para andar no solo desta gentil cidade;
eles violam as aulas de história.

Ninguém me cala,
a minha boca, o tampão.
Não tenho liberdade de pensamento,
proclamo todos os dias nos maiores jornais;
mulheres se beijam na boca em plena rua,
violam minha liberdade de pensamento
porque continuam vivas
depois de eu praguejar.

Somos trezentos, trezentos
e cinquenta, sou o zero
adiante de todos os números.
Minha intimidade com a inteligência
vem da época em que fazia a segurança
de apresentadores de tevê
durante o meu expediente.

Sou o zero à frente, não
sou conduzido.
Com os túneis que abri
atravessando os corpos que tombaram
cheguei ao parlamento.

Vamos urrar nossos hinos? Não
exigimos afinação, difamamo-la,
pisamos-lhe a garganta,
expulsamos a subversiva
da marcha que conduzo;
somente afina quem canta em comum.


V

(na chuva
que não cairá
ouvir a respiração
dos que tombaram)