O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

"Nunca houve ditadura,/ mas peço que ela retorne" etc.



Zero à frente




I

Para eles
a política era necessária
como a iluminação
para os túneis
jamais escavados

entre as cidades
para que a política
era a água
o saneamento
embora desabitadas

por faltar-lhes
a política
onipresente
como as fronteiras
invisíveis
dos bairros demarcados
por pés nus
por marcas de tiro

tiros em quem anda armado
só da própria nudez
isto é
a política
operária da construção
de toda a cidade
ambas agora banidas


II

O que resta do país, ou o próprio país: não só os mortos empilhados, a putrefação a substituir a atmosfera, a inutilidade da atmosfera para os ossos, que respiram, ainda, mas outra terra;
O que resta do país: outra terra: como dos ossos restam os mortos.


III

Abre a boca,
a chibata sai e vibra:
não há escravos nem torturados mas apenas
efeitos colaterais da propriedade privada

A chibata recolhe-se,
outra língua irrompe
da boca-precipício:
nossa toda terra e não dos que caíram
sob nossa chegada eis a prova
plantamos as cinzas deles
e não frutificaram

Retrai-se à boca-vulcão
e uma língua toda títulos de crédito
sem massa sem forma
toda fluido e fúria:
cotação do direito à atmosfera
o direito ao corpo no mercado de futuros
entre as perdas eventuais o espaço
desocupado por aplicações mais rentáveis
e portáteis
do que as gotículas d’água
do sopro
dos animais ainda pulsantes

A boca não se fecha
desdentada como a areia no deserto profundo
sua fala os próprios dentes
e abocanha devasta
a devastação

(A boca não se fecha,
o mundo, sim;
de ambos, o grito.)



IV

Não sou conduzido,
conduzo. Abro ruas
sobre os pés,
visto-os de asfalto,
abro ruas
para carros passarem com a velocidade de pés nus.

Ninguém me seca,
sou o deserto. Sentem
sede, pego o revólver. Sentem
fome, chamo camburões
para prendê-la. Vivem
sem teto, aponto-lhes o progresso,
corram para lá
antes que seja tarde.

Não me apanham,
eu mesmo a corda.
Nunca houve ditadura,
mas peço que ela retorne
contra o governo eleito.
A corda está íntegra,
eu mesmo, o puído.

Nunca houve racismo,
jamais avistei negros
na faculdade ou no escritório.
Não há mais racismo
nem índios nem mico-leão;
escorraçamos os que ousam existir
e deixam as placas das ruas
para andar no solo desta gentil cidade;
eles violam as aulas de história.

Ninguém me cala,
a minha boca, o tampão.
Não tenho liberdade de pensamento,
proclamo todos os dias nos maiores jornais;
mulheres se beijam na boca em plena rua,
violam minha liberdade de pensamento
porque continuam vivas
depois de eu praguejar.

Somos trezentos, trezentos
e cinquenta, sou o zero
adiante de todos os números.
Minha intimidade com a inteligência
vem da época em que fazia a segurança
de apresentadores de tevê
durante o meu expediente.

Sou o zero à frente, não
sou conduzido.
Com os túneis que abri
atravessando os corpos que tombaram
cheguei ao parlamento.

Vamos urrar nossos hinos? Não
exigimos afinação, difamamo-la,
pisamos-lhe a garganta,
expulsamos a subversiva
da marcha que conduzo;
somente afina quem canta em comum.


V

(na chuva
que não cairá
ouvir a respiração
dos que tombaram)



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