O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Vida fugidia, experiência curta, ocasião enganosa, o médico deve fazer [...] (Algo como um poema)

Vida fugidia, experiência curta, ocasião enganosa, o médico deve fazer [...]


I

Negros malsãos, índios doentes,
deles cuidar é coisa fina,
à elite branca tão somente
cabe o diploma em medicina.

Os soníferos nos animam,
conquistam muitas pacientes,
assim que ficam inconscientes
provamos sua proteína.

Elite branca não é mito,
comete o delito no corpo
e assina o corpo de delito.

Claro que atendemos o povo,
como a mordaça serve ao grito,
como o transplante serve ao morto.


II

- no estacionamento? - mais pinga...
- três em cima dela? - agora!
- só puta que aguenta três picas.
- coração de mãe, cabe a nossa.

- vamos, que está adormecida,
assim ao menos não nos cobra.
- o que não vê o olho de cima
é o que o olho de baixo prova.

- não é puta, mas a caloura!
- tira foto, e por todo o curso
terá que nos dar repeteco.

- vai ser a nossa monitora.
- esta matéria eu estudo!
- anatomia sob jaleco.


III

Bobagem! Para que dar queixa?
Você ficaria mal vista.
E coisa assim, minha querida,
só acontece com quem deixa.

No campus se encheu de bebida.
Vem reclamar agora? Chega!
O diretor já lhe receita
a medicação abortiva.

Este curso é familiar,
a faculdade nos acolhe,
e quem reclama não se forma.

Antes quiseram expulsar
a seringa, a droga e o chicote.
Mas o bom filho à casa torna.


IV

Aqui, política de cotas?
Sem preconceito, mas desista;
a exclusão não os humilha,
aqui só teriam más notas.

Sem racismo, mas a revolta
na faculdade grassaria
se para quem é da etnia
do porteiro abrissem a porta.

Nossos filhos aqui estudam.
Para que aceitarmos gente
com quem não devem casar?

Que os cotistas não se iludam.
Para a sociedade somente
deve a faculdade formar.


V

Sabemos que tipo de uretra
este aluno preferiria.
Não pode fazer cirurgia.
Este ramo é de quem penetra.

Talvez pudesse ser obstetra,
mas nada de pediatria,
que rima com pedofiilia
a quem não tem a cabeça certa.

Invertidos na faculdade?
Só como corpos para estudo.
Mortos, podiam ser aceitos.

Agora, nos exigem respeito.
Eles inverteram o mundo.
Mas não quem tem a autoridade.


VI

Em febre contínua suores
indicam doença protraída
- Nada ficou para os credores,
nem para a gente demitida!

- Como nas vezes anteriores,
tudo foi para nossa clínica.
A febre, se unida a terrores,
está sujeita a recidiva

- Acha que o governo aceita
investir mais neste hospital?
- Foi sempre assim, chega de ideia,

trinta é o meu percentual.
Febre contínua com dispneia
ou delírio é caso mortal


VII

A puta que aguenta três picas,
a medicação abortiva,
os soníferos que animam,
a droga, o chicote e a seringa,

deles cuidar é coisa fina,
tudo vai para nossa clínica.
Separa quem é da etnia,
na faculdade grassaria.

Este ramo é de quem penetra,
trinta é o meu percentual.
A quem não tem a cabeça certa

investir mais neste hospital.
Só como os corpos que estudo;
eles me amam porque são mudos.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Desarquivando o Brasil XCIX: Justiça Militar, "parte do esquema militar", e o STF de hoje

O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) gerou, de imediato, reações curiosas, como a defesa do crime de tortura em jornal que auxiliou a repressão, e também uma curiosa nota do Superior Tribunal Militar (STM) de rejeição às críticas feitas pela CNV à Justiça Militar.
A nota à imprensa, divulgada de forma aparentemente constrangida (ela não tem nem mesmo título), pode ser lida no sítio do Tribunal. Cito um trecho:
Na realidade, a Justiça Militar da União (JMU) não “teve papel fundamental na execução de perseguições e punições políticas”, não “institucionalizou punições políticas” e tampouco ampliou, para si mesma, sua competência para o “processamento e julgamento de civis incursos em crimes contra a Segurança Nacional”. Muito menos, foi a “retaguarda judicial [...] para a repressão [...] conivente ou omissa às denúncias de graves violações de direitos humanos”.
Nas recomendações finais, o Relatório sugere a “exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar Federal”, pois consiste, segundo a Comissão, em “verdadeira anomalia que subsiste da ditadura militar”.
[...] O Poder Judiciário só age quando acionado e a JMU, à época dos fatos, assegurou os princípios garantistas e os direitos humanos.

Segundo a ministra Maria Elisabeth Guimarães Teixeira Rocha, a Justiça Militar, ao contrário da Justiça comum, não teria se dobrado ao regime. Ela o havia afirmado no número 24 da Revista do Ministério Público Militar, de novembro de 2014, em que publicou o discurso significativamente chamado "A importância das justiças militares para o Estado Democrático de Direito":
Mas o STM foi a única Corte de Justiça do Brasil que subscreveu manifesto, em 19 de outubro de 1977, autografado por todos os seus Ministros, condenando as torturas e sevícias, corriqueiramente praticadas, em defesa da dignidade da pessoa humana. Um ato de coragem e destemor, diferentemente de todo o resto do Poder Judiciário que quedou silente.

Houve quem me perguntasse se esses protestos do STM faziam sentido. De fato, não, mas a resposta não é tão simples. Podem-se encontrar comentários como este, atribuído a Evaristo Moraes Filho, de que "o milagre brasileiro foi a Justiça Militar, porque ela funcionava" (por George Tavares em Os advogados e a Ditadura de 1964, organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, edição da Vozes e da PUC-Rio).
Em revanche, pode-se ler em Brasil: Nunca mais a imbricação entre a Justiça Militar e o poder autoritário:
Por lei, os juízes militares devem ser escolhidos por sorteio entre os oficiais habilitados, segundo listas enviadas pelos órgãos da administração do pessoal das Armas.[...]
O que se verificou, no entanto, ao analisar os processos do Projeto BNM, é que vários oficiais se repetiam nos Conselhos sucessivos com uma frequência tal que ultrapassava qualquer probabilidade estatística de um sorteio honesto. E mais: chegavam a ser indicados como juízes-militares elementos vinculados, direta ou indiretamente, aos organismos de segurança.
Houve ocasiões em que o réu se defrontou, na Auditoria, com um oficial membro do Conselho, que o tinha interrogado durante a fase investigatória nos órgãos de segurança. Os capitães do Exército Maurício Lopes Lima e Roberto Pontuschka Filho, acusados de torturararem presos políticos no DOI-CODI-II do Exército, funcionaram como juízes em processos nas Auditorias de São Paulo.
A Justiça funcionaria como "extensão do aparelho de repressão policial militar"; "a análise dos processos pesquisados leva à conclusão de que a quase totalidade das condenações apoiou-se no conteúdo dos inquéritos policiais. As provas colhidas durante a fase judicial eram ignoradas pelas sentenças".

O Ato Institucional no. 2 (AI-2), modificando o parágrafo primeiro do artigo 108 da Constituição de 1946 fez com que os inquéritos policiais militares relativos a crimes contra a segurança nacional passassem para a competência da Justiça Militar mesmo em caso de réus civis: "Esse foro especial poderá estender-se aos civis nos casos expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares."
O AI-2 foi importantíssimo para a institucionalização da ditadura: extinguiu todos os partidos políticos existentes (art. 18), acabou com a eleição direta para Presidente da República e Vice (art. 9o.), além das garantias de vitaliciedade e estabilidade (já atingidas, por seis meses, pelo primeiro Ato Institucional), suspendeu a garantia de inamovibilidade (art. 14), ampliou a composição do STM (art. 7o.) e do STF (art. 6o.), fez a nomeação dos juízes federais depender do Presidente da República (art. 6o.); o artigo 16 vai além do primeiro AI na caracterização dos efeitos da suspensão dos direitos políticos...
Os militares não confiavam nos juízes civis, e sim em sua Justiça, e a intervenção no STF também tinha como fim (nesse momento, não bem sucedido) de assegurar maioria também neste Tribunal.
Algumas decisões das auditorias militares são antológicas em seu papel de garantia da tortura e da execução extrajudicial; por exemplo, a decisão do alegado "suicídio" de Manoel Fiel Filho, assassinado após tortura no DOI-Codi de São Paulo.
Os exemplos de decisões análogas são diversos. Lembremos de outro tipo de exemplo: a Justiça Militar sendo usada para cercear a discussão do Projeto de Anistia.
A Comissão Mista formada no Congresso Nacional em 1979 para discutir o projeto governamental, sob a presidência do Senador Teotônio Vilela, resolveu fazer visitas aos presos políticos para colher denúncias. Parlamentares da Arena, partido de sustentação política da ditadura, boicotaram essas visitas e boa parte das reuniões da Comissão.

O STM resolveu impedir essas visitas, incômodas para a ditadura. Os militantes da ALN Gilney Amorim Viana e Perly Cipriano, no livro Fome de liberdade (2a. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009), que foram presos políticos no Frei Caneca, contam:

A ditadura tem poucos recursos: quando falha o esquema parlamentar só pode apelar para o esquema militar, pois não tem apoio popular.
E o esquema militar, neste momento, foi acionado através da chamada Justiça Militar. Alguns juízes auditores são reconhecidamente ligados aos órgãos de repressão política (em São Paulo, primeiro à OBAN - Operação Bandeirante, depois ao DOI-CODI). Através deles tentam impedir a visita de parlamentares ao Presídio Político do Barro Branco, apelando para pseudodireitos regulamentares de controle da visitação. Isso logo depois da visita realizada pelo senador Teotônio Vilela, 9 de julho passado, que mereceu uma crítica indevida e extrajudicial da parte de um destes conhecidos juízes auditores, através de comunicado secreto ao Superior Tribunal Militar. De imediato a iniciativa teve consequências: impediram a visita do líder do MDB na Câmara Federal, deputado Freitas Nobre, aos companheiros do Barro Branco, em 14 de julho. E, completando, impuseram uma série de limitações e cerceamento às visitas normais aos presos políticos.

E transcrevem ofício do General Reynaldo Melo de Almeida, então presidente do STM (nessa passagem lembram que o General Jordão Ramos foi politicamente preterido para a presidência desse Tribunal; de fato, ele não era confiável para a ditadura; tentou, por exemplo, reabrir em 1978 o caso do assassinato de Alexandre Vannucchi Leme) ao presidente do Senado Federal. O ofício revela aquele comunicado e explica que a "entrevista coletiva paramentar" não fora permitida por falta de autorização às autoridades judiciárias. Os autores aproveitam e fazem notar que o general no ofício reconhece o que a ditadura publicamente negava, isto é, que eles eram presos políticos.
Vejam este despacho do Juiz Auditor Nelson de Silva Machado Guimarães, da 2ª Auditoria da Justiça Militar,em 12 de março de 1979,  indeferindo petição, apresentada por parlamentares, para que fossem permitidas visitas coletivas aos presos políticos do Barro Branco, que estavam em greve de fome: "Os Comitês Brasileiros pela Anistia, na verdade, estão confundido a opinião pública: a pretexto de uma proposta de pacificação de espíritos, com a qual têm conseguido algum apoio de pessoas e entidades generosas mas incautas, estão pregando a subversão, tentando ocultar a verdade de muitos fatos, e promovendo, na prática, uma forma de apologia do crime e dos criminosos."
É bastante curiosa a alegação final de "independência" do Judiciário, considerando que esse Poder estava dominado pelo Executivo, especialmente a Justiça Militar.
Vejam como a justiça Militar colaborava na prática de crimes contra a humanidade, nesta passagem, entre várias, do  Relatório da CNV, no capítulo sobre desaparecimentos forçados:
18. O caso de Frederico [Frederico Eduardo Mayr, militante do Molipo; vejam a audiência da Comissão da Verdade do Estado de SP "Rubens Paiva" sobre o seu caso] é representativo de um padrão na prática de desaparecimento. Sua prisão e morte não foram oficialmente assumidas pelo Estado na época, mas foram objeto de denúncias por diversos presos políticos no âmbito do Processo no 100/1972, da 2a Auditoria Militar de São Paulo. O juiz auditor Nelson da Silva Machado Guimarães, responsável pelo processo, não fez constar nos autos as denúncias, mas extinguiu a punibilidade de Frederico em razão de sua morte, comprovada por documentos do DOPS/SP: o exame necroscópico e o atestado de óbito com o nome falso de Eugênio Magalhães Sardinha, embora o nome verdadeiro aparecesse grafado à mão. Em depoimento à CNV em 31 de julho de 2014, o juiz Nelson da Silva Machado Guimarães reconheceu que recebia atestados de óbito com nomes falsos de militantes políticos que estavam sendo processados à revelia e que, com base neles, determinava a extinção da punibilidade por morte. O juiz admitiu que não ordenava a retificação dos atestados para corrigir a identificação das vítimas e tampouco prestava informações às famílias que, àquela altura, estavam à procura de seus parentes. No caso de Frederico Mayr, somente em 1979, quando tiveram acesso ao atestado de óbito registrado com o nome falso, os familiares tomaram conhecimento de seu sepultamento no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo. Inúmeros casos repetem o uso de cemitérios clandestinos e sepultamento de vítimas como indigentes ou com identidade falsa. [tomo I, volume I, p.505-506]
Nessa posição da Justiça Militar como garante dos crimes contra a humanidade, lembramos da Sofía I. Lanzilotta e Lucía Castro Feijóo (Justicia y Dictatura: Operadores del plan cívico-militar en Argentina, Buenos Aires: Ediciones del CCC, 2014): "En el contexto del terrorismo de estado, esa omisión al deber de cuidado que especialmente le compete al juez constituye un delito por omisión de lesa humanidad.".
A CNV, no entanto, poupou esses garantes, que não entraram na lista dos 377 autores de graves violações de direitos humanos.

Apesar de tudo isso, houve judicialização da repressão (não para todos e, especialmente, não para o maior número das vítimas da ditadura militar: índios e camponeses, que morreram aos milhares), e ela também teve um efeito positivo (além do negativo de comprometer setores da Justiça na defesa do regime). Lembremos da pesquisa de Anthony Pereira (Political Injustice, já publicado no Brasil), que mostra que a Justiça Militar absolvia na metade dos casos. o formalismo do direito (que pode ser favorável aos direitos humanos), inclusive do direito processual, acabou permitindo a rejeição de diversas denúncias que, tantas vezes, eram ineptas, sem nem mesmo especificação do crime que teria sido cometido. Como exemplo, cito declaração de voto do General Pery Bevilaqua, Ministro do STM, no Habeas Corpus no. 27937, em 1o. de setembro de 1965.
A falta de justa causa para processar os 14 oficiais e sargentos que teriam cometido o "crime de fidelidade" ao governo de João Goulart, e que não aderiram em alta velocidade à Revolução que irrompera em Minas Gerais a 31 de março, se evidencia na fragilidade - para não dizer o ridículo - das acusações contidas na famosa denúncia. Assim, salienta o informante, "assistir palestras de Leonel Brizola", "tomar parte em movimento de solidariedade política", "pressionar o ex-presidente João Goulart a não renunciar", "candidatar-se a cargos eletivos", "ligar-se diretamente ao comandante do III Exército", "frequentar certas livrarias" [...]
Bevilaqua foi voto vencido nesse caso de militares que residiam em Porto Alegre. Em um sistema como esse, posições legalistas podiam ser "subversivas". Não por acaso, Bevilaqua foi um dos magistrados afastado por meio dos atos institucionais, e não por acaso a ditadura teve que intervir diretamente no Judiciário, não só ameaçando juízes, mas também aposentando-os à força ou os demitindo, além de tentar impedir que juristas de esquerda chegassem à magistratura.
É impressionante que os bacharéis engajados na ditadura continuem negando que ela tenha existido, e afirmem ainda que havia Judiciário e Congresso independentes. É certo que o fazem nos jornais que mais a apoiaram.

A nota do STM é um exemplo, pois, de impressionante amnésia seletiva, em que o esquecimento cobriu quase todo o panorama. Ficou de fora dessa amnésia o acórdão de 19 de outubro de 1977 que determinou a apuração de tortura contra Paulo José de Oliveira Moraes, denunciada pelos Ministros Gualter Godinho (que era civil) e Júlio de Sá Bierrenbach.
Vejam, ao lado, tirado de pasta da Ordem Social do DOPS de Santos (OS 37, no Arquivo Público do Estado de São Paulo), o início de matéria sobre esse acórdão e as denúncias de tortura - assunto que era destacado nessas pastas.
Apesar disso, outra coisa é imaginar o que teria havido se o AI-2, ou medida análoga, nunca tivesse sido editado: decisões como aquela - uma exceção no âmbito da Justiça Militar - teriam sido bem mais frequentes.
Lembro das palavras de Hélio Bicudo em Lei de Segurança Nacional: Leitura crítica (São Paulo: Paulinas, 1986):
Num país democrático os crimes - sejam eles quais forem - devem ser julgados pela justiça comum. Somente as infrações disciplinares devem ser apreciadas pela hierarquia militar, como, aliás, acontece no serviço público em geral, onde essas infrações são conhecidas e decidida a punição pelos chefes de repartição.
A Justiça Militar, como se estrutura no Brasil, é uma justiça especial, e como tal deve desaparecer.
Por isso, dentro da atual democracia estilo "garantia da lei e da ordem", é tristemente significativo que, sem mesmo precisar de um novo AI-2, o STF, pelas mãos do Ministro Luís Roberto Barroso, em caso de suposto "desacato" contra militares na ocupação do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, pelas Forças Armadas, no Rio de Janeiro. Trata-se do HC 112932, julgado em 13 de maio de 2014:
Ementa: HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO A RECURSO ORDINÁRIO. PACIENTE CIVIL ACUSADA DE DESACATO PRATICADO CONTRA MILITAR EM ATIVIDADE TIPICAMENTE MILITAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. INAPLICABILIDADE DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS. 1. Compete à Justiça Militar processar e julgar civil acusada de desacato praticado contra militar das Forças Armadas no “desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública” (art. 9º, III, d, C.P.M). Processo de pacificação das comunidades do Complexo da Penha e do Complexo do Alemão. Precedentes da Primeira Turma: HC 115.671, Relator para o acórdão o Ministro Marco Aurélio; e HC 113.128, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. 2. O Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 90-A da Lei nº 9.099/1995, com a redação dada pela Lei nº 9.839/1999 (HC 99.743, Relator para o acórdão o Ministro Luiz Fux). Inaplicabilidade da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais ao âmbito da Justiça Militar. Precedente: HC 117.335, Rel. Min. Gilmar Mendes. 3. Habeas Corpus extinto sem resolução de mérito, por inadequação da via processual.
A paciente, em 2 de outubro de 2011, havia mostrado a bunda para os militares que reclamavam do barulho e não conseguiam dormir. Nesta jurisprudência da bunda subversiva, Barroso, na verdade, seguiu o parecer da Subprocuradora-geral da República, Cláudia Sampaio Marques, com o requinte antigarantista de impedir a possibilidade de suspensão do processo da lei no. 9099/1995, ao deslocar o processo para a competência da Justiça Militar. O Ministro Joaquim Barbosa, antes de se aposentar, já havia denegado liminar com uma fundamentação bastante sumária.
A Subprocuradora-Geral aplicou desta forma o princípio da isonomia: "considerando que o regime militar está permeado de situações excepcionais, pois fundado nos postulados na hierarquia e da disciplina, seria despropositado impor aos militares o mesmo regime jurídico penal dos civis."
Não é despropositado, porém, para essas autoridades, impor aos civis o regime excepcional do processo na Justiça Militar... In dubio pro caserna.
 Essa nova jurisprudência diverge de decisões passadas do STF (como lembrou Rogério Tadeu Romano). Ministro Celso de Mello, em medida cautelar do HC 110237, em 19 de dezembro de 2013 (reiterando a decisão na cautelar, em 12 de setembro de 2011), reafirmou o princípio do juiz natural, e ainda se referiu a uma tendência de extinção das Justiças Militares no mundo:

A REGULAÇÃO DO TEMA PERTINENTE À JUSTIÇA MILITAR NO PLANO DO DIREITO COMPARADO.
- Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g..
- Uma relevante sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (‘Caso Palamara Iribarne vs. Chile’, de 2005): determinação para que a República do Chile, adequando a sua legislação interna aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar, adote medidas com o objetivo de impedir, quaisquer que sejam as circunstâncias, que ‘um civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares (...)’ (item nº 269, n. 14, da parte dispositiva, ‘Puntos Resolutivos’).
- O caso ‘ex parte Milligan’ (1866): importante ‘landmark ruling’ da Suprema Corte dos Estados Unidos da América.
O POSTULADO DO JUIZ NATURAL REPRESENTA GARANTIA CONSTITUCIONAL INDISPONÍVEL, ASSEGURADA A QUALQUER RÉU, EM SEDE DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO QUANDO INSTAURADA PERANTE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. [grifos do original]
Esta foi uma das decisões do STF em que se respeitou jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A sentença desta Corte da OEA nesse caso, de 22 de novembro de 2005, estabelecia a obrigação de o Chile adequar seu ordenamento jurídico para que, se desejasse manter uma "jurisdição penal militar", "em nenhuma circunstância um civil se veja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares". Cito este ponto resolutivo:

14. El Estado debe adecuar, en un plazo razonable, el ordenamiento jurídico interno  a los estándares internacionales sobre jurisdicción penal militar, de forma tal que en caso de que considere necesaria la existencia de una jurisdicción penal militar, ésta debe limitarse solamente al conocimiento de delitos de función cometidos por militares en servicio activo. Por lo tanto, el Estado debe establecer, a través de su legislación, límites a la competencia material y personal de los tribunales militares, de forma tal que en ninguna circunstancia un civil se vea sometido a la jurisdicción de los tribunales penales militares, en los términos de los párrafos 256 y 257 de la presente Sentencia.

A violação dos padrões do Direito Internacional dos Direitos Humanos não é surpreendente no Supremo Tribunal Federal, tampouco se vinda de Barroso, que já escreveu que os internacionalistas defendem a prioridade do Direitos Internacional dos Direitos Humanos "por causa de sua formação". Esse caso, assim como a ADPF 153 (o caso da Lei de Anistia do General Figueiredo), obedece à lógica do inimigo interno, herança da doutrina de segurança nacional: se antes os inimigos eram os "subversivos", os opositores, ou simplesmente quem estava do outro lado do tiro, da bomba ou do napalm (usado contra os índios), hoje eles são os moradores de favelas, de ocupações, os índios (especialmente no sul da Bahia), os manifestantes contra a violência oficial e o desperdício de bilhões para beneficiar empreiteiras. Tais são os novos inimigos do governo, as chamadas "forças oponentes", e contra esses cidadãos preparam-se projetos de lei antiterrorismo.
A Justiça Militar continua no Brasil e, no esquecimento de seu passado, vemos que a lógica do militarismo está presente no Supremo Tribunal Federal - como se todo Judiciário se tornasse, progressivamente, Militar. Os cultivadores da tradição no Direito provavelmente elogiarão essa tendência e defenderão que ela é a mais adequada num país em que o primeiro tribunal foi militar, estabelecido pela Corte portuguesa em 1808. A monarquia lusitana, obviamente, tinha seus motivos para tratar os brasileiros como inimigos.
Pode chocar os que não conheçam os atuais tempos da magistratura que nenhum dos perigos para a democracia tenha sido realmente analisado no HC 112932. Com efeito, na falta de Ministros como Victor Nunes Leal, afastado pelo AI-5, não é necessário nenhum AI-2: a submissão ao militarismo é voluntária.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Retrospectiva 2014: Do incêndio nas ruas ao choro marginal, música que ouvi

No fim de 2013, fiz uma retrospectiva com frases de décadas anteriores que foram ouvidas novamente naquele ano, frases da ordem que tinham voltado à ordem do dia (se é que algum dia saíram de todo) em razão do anacronismo político que tomou conta dos poderes instituídos após as manifestações populares.
Resolvi, desta vez, fazer uma de caráter bem pessoal,  a música que vi, e que foi um consolo e um estímulo. Vi outras apresentações, mas foram estas que mais me marcaram. Curiosamente, a maior parte ocorreu no segundo semestre, que foi a época mais difícil e mais gratificante do ano para mim.
Todas as apresentações se deram em São Paulo, com exceção da Butterfly no fim do ano.

16 de janeiro: Ney Matogrosso e banda no SESC. Queria ver "Atento aos sinais"; fui à bilheteria no dia em que começariam a vender os ingressos quatro horas e meia antes da abertura das vendas. Dessa forma, consegui comprar dos últimos lugares... Esse show era abertamente político no início, com imagens da cidade, de revolta (especialmente da Primavera Árabe) e canções sobre o "incêndio nas ruas" ("Incêndio", de Pedro Luís). Ele o iniciou no começo de 2013, antes da ocupação dos Congresso Nacional pelos índios e as manifestações iniciadas pelo Movimento Passe Livre. Ney estava, de fato, atento. Como antes. Desde os Secos e Molhados, ele mostrou, em plena ditadura militar, inquietação política, e pela via das políticas de gênero, o que era muito ousado nos anos 1970. E ainda pode ser ousado, tendo em vista o encaretamento do Brasil neste século. Pela quarta música, o show perdia a abordagem política e as músicas abordavam, em geral, relacionamentos amorosos (entrevista que deu a este ano à televisão portuguesa, com bobagens sobre o bolsa-família, mostrou certa distração). Apesar disso, também nas canções de amor, embora algumas não tivessem muita qualidade musical, via-se a inquietação do cantor: além dos compositores que ele gravou mais de uma vez, como o falecido Itamar Assumpção ("Noite torta", "Isso não vai ficar assim"), Vitor Ramil ("A ilusão da casa"; no bis, "O astronauta lírico"), Cazuza (no bis, "Poema"), ele cantava pela primeira vez Paulinho da Viola (vejam a dança em "Roendo as unhas") e compositores novos como Criolo (o interessante retrato erótico urbano de "Freguês da meia-noite"). Com outro compositor jovem, Vitor Pirralho, que participou de Índio é Nós, e sua "Tupi fusão", o dado político voltava explícito, e era o momento mais interessante de dança da apresentação. A movimentação cênica de Ney Matogrosso continua surpreendente, e tanto ela quanto a condição de sua voz parecem desmentir o fato de que ele é septuagenário. Ele está incomparavelmente melhor do que os seus companheiros de geração (apesar de não ter levado uma vida exatamente saudável até os cinquenta anos), que ou perderam a maior parte dos recursos vocais, ou simplesmente se resumem a cantar o já cantado, enquanto ele continua procurando novo repertório. Lembro de uma meio soprano falando, nos idos de 1992, aproximadamente, que Ney Matogrosso logo iria perder a voz, pois não se poderia cantar agudo assim por mais de dez anos. Ora, ela há muito não se apresenta mais e ele, dez anos mais velho, continua na ativa... O último bis (deu quatro) foi o samba "Ex-amor", de Martinho da Vila.

19 de abril: Caminhada Índio é Nós. Copio o "Índio é Nós": "A Caminhada partiu do MASP, sempre com música capitaneada pelos integrantes do Oficina (especialmente pela voz de Letícia Coura; ao lado, a única foto que consegui mais ou menos tirar dela, de óculos escuros) para o  Cemitério da Consolação, onde se fez um ritual para Mário de Andrade e Oswald de Andrade; seguiu pelo Parque Augusta, que foi abraçado pelos participantes; terminou no Teatro Oficina". Eu estava lá. Letícia Coura puxou, durante horas, os cantos antropofágicos e a "Tupi or not Tupi" de Surubim Feliciano da Paixão, que recebeu estrofe extra de Fabio Weintraub e concluía a peça Walmor y Cacilda 64 - O RoboGolpe, de José Celso Martinez Corrêa. Esse uso político da música prosseguiu no Teatro Oficina, onde, no 19 de abril, se fez uma performance a partir do Choros 10 de Villa-lobos (o final pode ser visto neste vídeo) e de cantos indígenas. Não foi uma "execução" de Villa-Lobos, o que seria careta nesse contexto, e sim uma celebração, uma revolução onde se dança.

3 de agosto: O maestro Rinaldo Alessandrini no Teatro Municipal de São Paulo. Ele é o maior maestro para certo repertório do barroco italiano, mas veio reger o coro e a orquestra do teatro em um repertório completamente diferente: Mendelssohn (a abertura Mar calmo e viagem próspera, a ária "Infelice! Già dal mio sguardo" - a solista foi Monica Bacelli - e o Salmo 42) e um autor contemporâneo, Lauridsen, cuja peça, de linguagem conformista, ele interpretava pela primeira vez, "Lux Aeterna". O coral do Teatro cantou bem. Valeu pelo Mendelssohn.

4 de agosto: A soprano Natalie Dessay e o barítono Laurent Naouri, com o pianista Maciej Pikulski. Era um belo programa de canção francesa (Poulenc, Fauré, Duparc...) com duos e solos. Dessay não tem a mesma voz dos anos 1990, mas isso não importa nada para esse repertório, em que ela pôde ser mais expressiva do que em muitos papéis da ópera romântica francesa. Acho que ela está muito certa em buscar um repertório novo, agora que suas possibilidades vocais mudaram, em vez de simplesmente encerrar a carreira, como fez Callas. E é de fato, muito careta e um tanto sádico este público de ópera que exige que as sopranos aos 50 cantem os mesmos papéis de jovens que faziam aos 20. Não sei se a celebridade dela atraiu um público que queria mais aparecer do que ouvir (coisa comum na Sala São Paulo), mas a plateia causou problemas. No pior momento, um desvairado na quarta fila da plateia gritou "maravilhosa" quando uma das canções terminava. Ela se assustou, provavelmente sem compreender o que havia sido dito. Na peça seguinte, errou e teve que recomeçar, pedindo pardon. Sabe-se que houve tempos em que os compositores gostavam de aplausos até no meio da música, e é o que, por exemplo, Mozart esperava e contou em uma de suas cartas. Em boa parte do repertório, no entanto, esse procedimento pode tirar a concentração do artista, especialmente se os acordes não são nada óbvios. Mas que poesia a da cantora - como em "L'invitation au voyage", que Duparc compôs a partir do poema de Baudelaire. A batida "Après un rêve", de Fauré, ficou muito interessante nos gestos dela. Com Naouri, tão bom no repertório barroco francês, eu já tinha as canções de Ravel, e ele reafirmou sua adequação completa ao estilo. Pikulski não estava nada abaixo dos famosos recitalistas. Naouri, no seu disco de jazz "Round about Bill", havia gravado "Minha", de Francis Hime, e, desde então, segundo ele mesmo, melhorou seu português, língua em que ele falou com a plateia. Um bis foi a ária das Bachianas Brasileiras n. 5 (sem o Martelo). Naouri cantou a parte central, com letra, e Dessay fez o vocalize, que ela havia gravado recentemente no infeliz disco de música brasileira, "Rio-Paris", cometido por Liat Cohen, que acompanhou Dessay (que está muito bem; ela, apenas, justifica a gravação) e duas cantoras sem voz e sem um bom português. No final da ária, que acabou sendo o último número da noite, o agudo quebrou, como podem ver no vídeo, mas nada grave. Depois do concerto, uma fila quilométrica para pegar autógrafos. Na minha frente, um casal em que o marido disse não apreciar muito a soprano, e sim o barítono. Gosto de ambos, mas disse que achava que ela era melhor intérprete. Nessa noite, ela mostrou que, de fato, chegou a um nível em que tornou até o silêncio expressivo, o que é raríssimo em um cantor. E o uso do silêncio é talvez o que a música tenha de mais alto e necessário a ensinar à literatura, segundo Beckett, para a dissolução da "verdadeiramente arbitrária materialidade da palavra", dando o curiosíssimo exemplo da Sétima Sinfonia de Beethoven, obra que significava, para Beckett, sons conectando abismos de silêncio.

6 de agosto: Hamilton de Holanda Trio na Praça das Artes. O genial bandolinista e compositor tocou várias peças, inclusive alguns de seus Caprichos (o disco foi lançado neste ano; eles também podem ser baixados com a partitura nesta ligação). No contrabaixo, André Vasconcelos e, na percussão, Thiago da Serrinha, que tiveram seus momentos de solista. A apresentação trouxe uma execução notável de "Sinhá", de João Bosco e Chico Buarque. Hamilton de Holanda disse já essa canção considerar um clássico da música brasileira. Surpreendeu-me "Trocando em miúdos", de Francis Hime Chico Buarque, que eu nunca tinha ouvido com ele. "O que será (à flor da pele)", de Chico Buarque, também ficou impressionante; vejam aqui o que ele faz no registro agudo do bandolim a partir de 5'36''; é certo que, sem a letra enigmática,a música pode ser e se torna outra coisa, mais afirmativa do que na gravação célebre com a voz do compositor e a de Milton Nascimento. Não acho isso um problema, porém. O intérprete, especialmente em gêneros em que ele tem mais liberdade, e é a esmagadora maioria dos casos na música popular, pode mudar o caráter da música, se o resultado for convincente em termos musicais e dramáticos. E isso ocorre também na "música clássica" (na Vida de Rossini, Stendhal escreve "Quando Madame Pasta canta Rossini, ela empresta ao compositor as qualidades que a ele faltam"). Além disso, pensando em comparações entre versões cantadas e instrumentais, dificilmente um cantor poderia emular a variedade de ataque e de dinâmica (o recente disco com Diogo Nogueira - o cantor é bem menos criativo musicalmente e variado em termos interpretativos do que o instrumentista - ressente-se disso) que Hamilton de Holanda logrou nessa música e no "Canto de Ossanha", de Baden Powell e Vinicius; o solo do percussionista, por sinal, é mesmo de fazer a plateia aplaudir no meio da música, o que aconteceu e é bem-vindo neste caso. No final, aparece o tema de "Berimbau", outro grande afrossamba dos mesmos autores.  

25 de agosto: A meio soprano Joyce DiDonato acompanhada pelo pianista David Zobel na Sala São Paulo. A apresentação começou com uma nota de tensão: a meio soprano estava resfriada e contou que, de manhã, não conseguia vocalizar; ela nunca havia cancelado por motivo de saúde, mas chegou a pensar nisso. No entanto, disse que foi muito bem tratada (simpática, disse que se tivesse que ficar doente de novo, teria que ser no Brasil) e conseguiu sentir-se apta para cantar. Por causa da doença, trocou a última peça, que seria o acrobático final da Cenerentola, de Rossini, pela ária "Riedi al soglio", do mesmo compositor, também muito difícil, que está em seu último disco, o fantástico "Stella di Napoli". Um crítico de certo jornal de São Paulo duvidou que ela estivesse doente, pois não ouviu nenhum sinal do resfriado. Ele não prestou atenção. No final da primeira parte do recital, no entanto, DiDonato fungou entre as pausas da virtuosística ária "Dopo notte", do Ariodante de Händel (que ela gravou com Alan Curtis na regência) e, no começo da segunda parte, sua voz ficou instável em um agudo sustentado na cadência da ária de Bellini, "Dopo l'oscuro nembo", de Adelson e Salvini. Tudo muito discreto, porém, e, tão bem sucedida quanto no recital que deu na mesma sala no ano passado, ela confirmou que é uma das maiores cantoras vivas, e está em seu auge vocal. Especialmente interessantes foram as canções de Santoliquido, compositor italiano do século XX que eu - na minha ignorância do repertório da música de câmara italiana - nem sabia que existia; ouçam esta "Tristezza creposcolare". Além disso, ela, muito simpática, detém uma grande capacidade de comunicação com o público, não só ao cantar, mas também ao falar e explicar as peças em inglês. Depois do concerto, outra fila quilométrica para pegar autógrafos.

31 de agosto: A soprano Mariella Devia e o regente Giuseppe Sabbatini no Teatro São Pedro, com a orquestra do Teatro. Eu não sabia que Sabbatini, que era um tenor, havia se tornado regente. E não tinha ideia de como Devia estava cantando depois de décadas de carreira. O repertório era muito exigente: a ária de Julieta em Os Capuletos e os Montéquios, de Bellini, a "Casta diva" da Norma, do mesmo autor, a primeira ária do papel título de Lucia di Lammermoor, de Donizetti; de Puccini, a ária de La rondine, a ária do suicídio de Liù, em Turandot; de Manon, de Massenet, "Adieu notre petite table" (com o si bemol agudo do recitativo) e a valsa da Julieta no Romeu e Julieta de Gounod. Ela tem 41 anos de carreira, mas a voz dá poucos sinais da idade (algumas notas altas ficaram um pouco mais estridentes); fiquei impressionado especialmente com a cadência da "Casta diva", ela simplesmente emenda as frases num só fôlego, de 6'01 a 6'16". Nessa respiração, nesse apoio, está um dos fatores de sua longevidade, além da escolha de repertório. Mais adiante, vejam como ela cantou o segundo verso da cabaletta, ornamentando-o; a partir de 8'20'', quase levantei da cadeira. Seu impacto é vocal, antes de tudo - ela nunca foi uma grande atriz. É basicamente o contrário de Dessay, que ousou cantar coisas não muito apropriadas para sua voz (especialmente La Traviata, que acho que foi a ópera que acelerou seu declínio vocal) e teve que abandonar (ao menos provisoriamente) os palcos de ópera. São duas éticas artísticas diferentes, e respeito os dois tipos de cantores: os que se queimam para atravessar possibilidades novas (como Callas, que cantou profissionalmente em ópera por 22 anos), e os cautelosos, prudentes (para ficar entre as sopranos, um exemplo é Mirella Freni, que aos 70 ainda se apresentava em ópera). No bis, Devia cantou "Addio del passato", da Traviata de Verdi (só uma estrofe, o que aprovo) e a Valsa da Musetta, de La Bohème, de Puccini.

20 de setembro: Salomé, de Richard Strauss, no Teatro Municipal de São Paulo. Já tinha visto John Neschling reger essa ópera em concerto com a Osesp. Não foi uma ocasião feliz, pois o maestro só parecia conhecer as dinâmicas forte e fortíssimo, o que me fez temer pela saúde da soprano. Desta vez não foi o mesmo, e a regência tendeu a soar desvitalizada como das outras vezes que o vi no Municipal (especialmente na Aida, que foi muito bem cantada, inclusive por Gregory Kunde, que se metamorfoseou vocalmente de Arturo para Radamés). Annemarie Kremer cantou bem o exigente papel - ela até emitiu audivelmente as notas graves do "mistério da morte" ("Geheimnis des Todes", a partir de 12'30'' neste vídeo), numa região difícil para qualquer soprano. O tenor de caráter que cantou Herodes, Peter Bronder, é um veterano e, muito inteligente, mostrou habilidade em evitar as notas mais altas do papel sem dar na vista. Na récita do dia 16, ele tentou cantar a frase "Es wird Schreckliches geschehn",  "algo terrível vai acontecer" e, de fato, ocorreu. Kremer, no dia em que vi, estava com o agudo mais seguro do que nesse aúdio. Mark Steven Doss foi vocalmente soberbo como João Batista. Eu queria muito ver Iris Vermillion, que cantou Herodíade, meio soprano de repertório muito interessante. Ela teve seu auge nos anos 1990, e continua com presença cênica - e as notas para cantar esse papel.

21 de setembro: Quarteto de Cordas de Leipzig no SESC. Outro concerto baratíssimo no SESC, e com meu quarteto de cordas preferido. Na primeira vez que o vi, no século passado, foi numa apresentação gratuita na Sala dos Arcos no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Era um programa só de expressionismo alemão. Ficou lotadíssimo, claro, e acabei sentando no chão, perto do violoncelista, Matthias Moosdorf. O Quarteto veio a São Paulo há poucos anos para um brilhante concerto infeliz na Hebraica, em que o público reduzido fazia tanto barulho que parecia maior (o concerto começou com um soco que um homem sentado na primeira fila deu na cadeira; não fazia parte da execução, a peça inicial era de Haydn, se bem me lembro, não de John Cage). Desta vez, o repertório foi russo: Lourié, Stravinsky, Chostakovich e Borodin. Uma lembrança de como o Quarteto de Leipzig é eclético e não se limita ao repertório germânico. Nunca gravaram, porém, Villa-Lobos. Eu não gosto, normalmente, do famoso Oitavo Quarteto de Chostakovich: em geral, os intérpretes perfumam a flor, tornam mais melancólico aquilo que já é depressivo, e ele soa simplesmente exagerado. O Quarteto de Leipzig me surpreendeu completamente, pois interpretaram-no de maneira mais seca, sem ceder ao sentimentalismo fronteiriço dessa partitura. Para mim, foi uma revelação completa de possibilidades de uma peça que já conhecia. A outra revelação foi o o Segundo do Borodin, um grande momento do romantismo russo, que eu desconhecia e o Quarteto já havia gravado. Acabei comprando o disco. Depois do concerto, deram autógrafos (são muito simpáticos, além de tudo) e mencionei o que achei do Chostakovich - a melhor interpretação que já tinha visto dessa peça (não que eu conheça muitas...), superando o Emerson Quartet, que vi nesta cidade.

15 de outubro: Les Arts Florissants no MASP. O grupo, de formação flexível, veio bem reduzido: além do maestro William Christie, o maior intérprete de tantas páginas do barroco francês, que regeu e tocou cravo, vieram a soprano Élodie Fonnard, o barítono Marc Mauillon, as violinistas Florence Malgoire e Catherine Girard, Myriam Rignol na viola da gamba e Thomas Dunford no alaúde. Era um repertório de câmara, com árias e trechos de cantatas, de Campra, Couperin, Bernier, Campra... Com alguns números instrumentais. As violinistas começaram mal, mas depois da primeira peça concordaram em tocar na mesma tonalidade. Embora fosse um recital de câmara, havia movimentação cênica dos cantores, e muito bem lograda. Destacou-se, porém, Mauillon, que eu já tinha visto ao vivo num dia infeliz para ele (era inverno, ele estava resfriado, praticamente se refugiou atrás dos outros cantores na Selva Moral e Espiritual de Monteverdi). Ele é um artista até a ponta dos pés; quando cantou, reclinado perto da plateia, o trecho de Les femmes de Campra, "Fils de la nuit et du silence", a noite e o silêncio fizeram-se ouvir. Sua voz é pequena, mas, neste repertório, isso é uma vantagem. No entanto, quem mais me impressionou foi Thomas Dunford, jovem estrela do alaúde que eu nunca tinha ouvido, e que gerou tantas sonoridades diferentes em "Les voix humaines", de Marin Marais, que, de seus dedos, uma comunidade parecia nascer. Até William Christie pareceu comovido.

13 de novembro: O contratenor Phillipe Jaroussky e o Ensemble Artaserse na Sala São Paulo. A voz de Jaroussky é uma das maiores fontes de beleza vocal de hoje, especialmente no piano e no pianíssimo. O repertório foi todo dedicado a Vivaldi, o que ocorre também no seu último disco, "Pietá", o terceiro de seus discos solo em que somente interpretou esse "grande compositor", como lembrou o músico. Marcou-me o moteto "Longe, mala, umbrae terrores"; essa peça exige a agilidade que esse contratenor possui, e um tipo de veemência que ele encontra mais nos acentos do que na força. Vejam como ele interpretou de forma inteligente esta ária de Vivaldi; ele impressiona porque não precisa de muita potência para expressar afetos mais intensos. Seria interessante fazer um estudo de retórica da interpretação desse cantor, que é do raro tipo que faz da delicadeza seu argumento mais irrefutável. Ele sabe espanhol (ouçam esta entrevista que concedeu pouco antes na Argentina) e ousou dizer algumas frases em português. Depois do concerto, mais uma fila quilométrica para pegar autógrafos.

21 de novembro: André Mehmari e Gabriel Mirabassi no SESC. Mehmari no piano e Mirabassi no clarinete, tocaram principalmente músicas do brasileiro. Os dois haviam se conhecido por meio de Guinga e já haviam gravado juntos o disco Miramari. Lançavam nessa ocasião o DVD. Neste ano, vi Mehmari tanto sozinho quanto com  Hamilton de Holanda, mas quero escrever um pouco aqui somente sobre esta apresentação, um tanto atípica. Além da excelência dos dois, havia a nota curiosa de Mirabassi, um dos maiores clarinetistas do mundo, volta e meia sublinhar que Mehmari não era normal, de tão prodigioso. Ele está certo, claro. Vejo esse prodígio na beleza de certas canções (o lirismo de "Quando em Gubbio", por exemplo) e no pensamento musical (o uso da citação e da memória no cruzamento de linguagens musicais). Mehmari, de fato, é genial, e a forma como ele faz o que chama de mestiçagem, uma fusão de diferentes linguagens musicais, vai muito além do crossover e deixa bem longe tentativas semelhantes de certos músicos do jazz. Eu o vi, neste ano, acho que no Itaú, falar que foi desafiado em 2013, na plateia, a improvisar como se fosse Chiquinha Gonzaga a tocar uma ária de Mozart. Ele fez algo fenomenal com "Voi che sapete", uma das árias do personagem Cherubino, da ópera As bodas de Fígaro, de Mozart. Pois bem: essa criação entrou no recente disco "Ouro sobre azul", dedicado a Ernesto Nazareth, logo na primeira faixa. Nesse disco, apenas a tentativa de enxertar Tristão e Isolda não me parece funcionar - Wagner soa como um invasor na casa musical de Nazareth, que não era exatamente Bayreuth. No entanto, exceto isso, o disco é esplêndido, e vê-se que é um compositor revisitando outro - a execução é uma conversa entre criadores. Entendo que essa facilidade de atravessar fronteiras gere ressentimentos, especialmente dos "compositores clássicos" contemporâneos brasileiros (uma espécie humana que, em geral, adora fronteiras e fiscais de imigração entre gêneros). Vi que alguns o veem como um invasor que vem de outra área (a música popular), por mais que seu estúdio se chame Monteverdi, e, pior ainda, um invasor que recebe encomendas da Osesp e de músicos estrangeiros, como Andrea Lucchesini, que trabalhou com Berio e agora interpreta com Mirabassi as Scarlattianas de Mehmari. Ele se incomoda com as críticas dos fiscais de imigração, mas acho que elas são um sinal de sucesso. Callas dizia que, quando parassem de assobiar para ela (assobio, em ópera, equivale a vaia), saberia que estava acabada.

30 de novembro: Madame Butterfly, de Puccini, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Eu somente tinha visto essa ópera nos anos 1990, nesse mesmo palco, com Leila Guimarães no papel título. A atual montagem era de Carla Camurati (que deixa em 2015 este Teatro para se ocupar das atrações culturais das Olimpíadas) e havia sido originalmente encenada em 1999 no Alfa Real. Era muito delicada na ênfase de elementos de papel, como borboletas de origami, até o final, quando o pressuposto político tornava-se evidente: era uma ópera de denúncia contra o imperialismo dos EUA: a esposa de Pinkerton simplesmente rouba a criança. No final, Camurati foi vaiada por uma pequena claque e aplaudida por quase todo o público. Talvez a claque fosse composta por pessoas simpáticas a outro(s) encenador(es) que queira(m) dirigir o Teatro. O maestro Isaac Karabtchevsky não estava exatamente na praia dele; as oportunidades de lirismo dessa ópera passaram meio em branco na orquestra. Mahler, certamente, o inspira mais. Os cantores, felizmente, estavam mais afinados com esse repertório, como Hiromi Omura, que dominava cada gesto, vocal e cênico, do exigente papel, que mantém a cantora em cena praticamente todo o tempo, desde sua entrada. É uma ópera tão sopranocêntrica quanto a Traviata. Os tenores estavam muito bem: o Pinkerton era Fernando Portari. Assisti à estreia desse tenor no Teatro Municipal em um papel comprimário da ópera Manon Lescaut, também de Puccini. Ao longo desses anos de carreira, ele ganhou em volume vocal sem perder o agudo e a mezza di voce. Sua segurança musical continua inatacável. Sérgio Weintraub confirmou sua desenvoltura cênica nesses papéis cínicos; vocalmente, ele foi um Goro que poderia, sem problema algum, ter cantado o Pinkerton. Seu filho, David Weintraub, interpretou o filho de Butterfly (e poderia ter confirmado as suspeitas de Sharpless - bem cantado por Rodolfo Giugliani - sobre a infidelidade da japonesa...) Quando as borboletas de origami desceram e oscilaram sobre o palco, ele brincou com elas com naturalidade.

Em dezembro, vi no cinema uma apresentação do Metropolitan Opera House da ópera Os mestres cantores de Nurembergue, de Wagner, regida por James Levine. Acho que chorei meia hora, no fim do segundo ato, e do quinteto até Sachs abrir o prêmio no terceiro ato. É muito comovente como Wagner, que ficaria tão reacionário, inclui o povo na história, e como é o povo que acaba por decidir o prêmio, função que era reservada aos Mestres. Creio, porém, que não devo incluir mais nenhuma consideração aqui sobre os Meistersinger, já que assisti à apresentação via cinema...


Agora, quatro entradas para um evento excepcional, que teve sua primeira edição em 2014. Queria ter visto várias coisas do primeiro (espero que continue!) Festival SESC de Música de Câmara. Uma iniciativa do SESC-SP, cuja programação cultural é a melhor do país - e a preços muito acessíveis (doze reais). Queria ter visto vários músicos (inclusive o Brasil Guitar Duo), mas o trabalho e os ensaios não me permitiram. Consegui, porém, ver estes:

27 de novembro: Anonymous 4 no Festival SESC de Música de Câmara. Esse conjunto vocal feminino é simplesmente o melhor do mundo no seu repertório. No concerto, as cantoras privilegiaram o repertório medieval, com obras de autores anônimos, Hildegard von Bingen ("O quam mirabilis est" e "O rubor sanguinis", talvez o ponto mais alto do concerto), com algumas contemporâneas. Cada uma das cantoras teve um solo, exceto a contralto, e se ouvia o porquê: ela cantou com pouquíssima voz; às vezes, parecia ausentar-se completamente e, quando tinha que cantar mais forte, o vibrato soava sem controle. Contudo, o grupo continuava excepcional em termos de homogeneidade de som e de prática de conjunto. Provavelmente foi a última chance de ouvi-las no Brasil, pois encerrarão a carreira em 2015.

28 de novembro: Quarteto Lutoslawski no Festival SESC de Música de Câmara. Esse quarteto de cordas é um grupo novo, fundado em 2007, que eu não conhecia. No entanto, logo me chamou a atenção, quando vi a programação do Festival, em razão do repertório: além do compositor que lhe dá nome, interpretariam Schulhoff! E Penderecki (o primeiro quarteto, ainda da fase interessante desse compositor) e Marcin Markowicz, que é o segundo violino do grupo. O programa foi alterado, deixaram as Cinco Peças para Quarteto de Cordas de Schulhoff, que tem tanta vivacidade rítmica, para o fim. Antes dele, a peça de Markowicz, seu terceiro quarteto, que começava com uma frase - uma oitava descendente - que sofria diversas variações. Uma revelação. Achei que esse jovem compositor tinha pleno direito de ser tocado com os outros nomes do programa; no bis, tocaram uma breve peça que ele escreveu em homenagem a Chostakovich. O mais difícil, em termos de conjunto, era o Lutoslawski, que eles tocaram em primeiro lugar. Um desafio em termos de entrada e de variedades de ataques que a peça exige dos músicos. Mas o grupo, que estreava no Brasil, estava à altura das dificuldades. A lamentar apenas o público que não veio (o teatro estava meio vazio) e o apresentador do SESC que achou que o Quarteto era um grupo de Direito em inglês.

5 de dezembro: Kronos Quartet no Festival SESC de Música de Câmara. Trata-se de um quarteto de cordas que se distingue por seu repertório exclusivamente contemporâneo; mas, ao contrário de um grupo como o Arditti, tem um queda para o pop - talvez por isso o concerto estivesse mais cheio do que os outros que vi do Festival. Ao contrário do Arditti, ele não tem uma técnica lá muito espetacular - já a primeira peça, de Terry Rilley, "G Song", revelou dificuldades do segundo violino. No concerto, que incluiu peças que soavam como má música de filme (apenas ilustrativas ou revoltantemente açucaradas), a que talvez me tenha convencido mais foi a mais nova, de Mary Kouyoumdjian, escrita para o Kronos: "Bombas de Beirute", com música pré-gravada que evocava sons de guerra.

7 de dezembro: Os Músicos de Capella e Luis Otávio Santos no Festival SESC de Música de Câmara. O programa era integralmente dedicado a Bach - lembro que a gravação das sonatas para violino na integral Bach da Brilliant Classics são justamente a desse importante violinista (e maestro) brasileiro. As Ouvertures BWV 1067 e 1068, tão famosas, ganham muito em serem ouvidas em formações de câmara - pena que nem tudo estava perfeito em termos instrumentais (o oboé não estava em um bom dia). Foi linda a ornamentação da famosa Ária; pena que não achei nenhum vídeo com ele interpretando essa peça para indicar aqui. Na Cantata de Casamento a solista foi a soprano brasileira (também com carreira internacional) Marília Vargas, e provavelmente o Brasil não tem nenhuma outra cantora que possa fazer tão bem esse repertório. O público ficou aplaudindo entre os movimentos, mas isso não parece ter atrapalhado muito os músicos. Vejam um trecho de outra cantata, Ich habe genug, com ela, Luís Otávio Santos, e outros músicos (há um errinho a 5'54'', mas benigno).

Estou lendo agora a coletânea de ensaios de Virginia Woolf, O valor do riso, organizada e traduzida por Leonardo Fróes, que a CosacNaify lançou há pouco. O primeiro deles, "Músicos de rua", traz um elogio do ritmo e dos músicos que, nas ruas, não obstante imperfeições artísticas, revelam verdadeira devoção à música: "não é disparatado supor que os homens e mulheres que arranham harmonias que jamais vêm, enquanto o trânsito vai estrondando ao lado, sejam tão fortemente possuídos, embora fadados a nunca transmitir isso, quanto os mestres cuja eloquência fácil encanta milhares a ouvi-los." Pode haver beleza em uma execução imperfeita, quando a intenção é forte o suficiente.
Contudo, é sempre possível ouvir boas interpretações nas ruas, e uma das que pude presenciar (em outubro, mais de uma vez) foi diante de uma estação de metrô, Santa Cecília, com a flauta de Ivan Melillo e o cavaquinho de Jefferson Dias Rocha. Vendiam seu disco independente (em que tocam também Bruno Vinci, Tigará Macedo, Bruno Bertolino e o próprio Melillo), "Choro marginal", composto na maioria de clássicos, como "Atraente", de Chiquinha Gonzaga, e "Tico-tico no fubá", de Zequinha de Abreu.
De um lado, é terrível que esse repertório possa hoje ser chamado de "choro marginal". Por outro, é político que ele se faça a partir das margens. Ouvir as margens é uma função política, além de estética.