Como não li nada muito esclarecedor sobre este assunto, pensei em identificar, a partir da minha pequena experiência nas redes da internet, os procedimentos de etiqueta em redes sociais que alguns escritores adotam.
Faço-o não para uso próprio, tendo em vista a modéstia de minha condição de autor, mas pelo eventual interesse de jovens literatos, que, espero, por serem mais inspirados, farão coisas muito diferentes das que identifiquei.
1. Convide a todos para "curtirem" páginas com o seu nome: "Lorênia Sirga convidou você para curtir Lorênia Sirga". Todos amarão receber uma sentença como essa, feita apenas de palavras importantes: o seu nome, claro, mas principalmente "você" e "curtir". A vida é curta, mas não para quem sabe fazer convites. Você também os receberá, aceite-os, e a rede estará sendo armada. Em relação à rede, você deverá preferir a posição da aranha, isto é, de quem a tece e amplia sua teia: a literatura abre horizontes! Outros adotarão a outra posição, e desses você viverá, assim como fazem os aracnídeos.
Atenção: O networking é a sintaxe da literatura de hoje. Não o ter significa iletramento. Quanto mais seguidores e amigos, mais letras, ou seja, mais obras. Lembrar-se que os seus livros são pretextos para a verdadeira obra, a sua rede.
2. Crie projetos coletivos bastante inclusivos (como "escritores a favor do mundo") e convide todos para que contribuam com desabafos, garranchos, criações no paint. Sairá um e-book coletivo e seus pares se lembrarão de você sem que seja necessário que leiam o livro. Não o abrir apenas tornará mais doce a lembrança do seu nome e de sua iniciativa nos corações alheios. Você mesmo não deverá lê-lo, nem antes nem depois. A leitura prévia das contribuições poderia tentá-lo a cortar algumas delas (seja por piores do que a média, ou por melhores do que as suas) e trairia o propósito acolhedor. Depois, a própria publicação dispensa o ato de ler: os bons livros existem por si mesmos.
Atenção: Esta regra vale para coletâneas não patrocinadas. Para as patrocinadas, convide os que o convidariam de volta. Sistemas precisam de retroalimentação.
3. É possível que notícias relevantes apareçam nas redes, e mesmo as de altíssima importância, que são as que sopram o seu próprio nome para mais leitores. Antes de tudo, não as retransmita simplesmente: assuma-a como se você fosse a fonte da informação: não dê RT, crie o seu próprio post, não por desrespeito às fontes, mas pela generosidade de emprestar a sua assinatura, já futuramente consagrada, à informação veiculada diante dos olhos de outros.
Atenção: Esta regra não vale para eventuais futuros editores e para críticos, pessoas mais sofisticadas e que, por esse motivo, lograrão reconhecê-lo como autor se você apenas retransmitir os posts deles ou elogiá-los.
4. Informar aos potenciais leitores os detalhes íntimos de seu cotidiano de escritor pode fortalecer os fios da rede, torná-los mais seguros: "derrubei iogurte na primeira página de meu romance", "céu claro, literatura obscura, de que nuvem cairá minha primeira frase?", "meu cachorro latiu e incluí esta manifestação no meu livro aberto para o mundo". A vacuidade das frases permitirá que os leitores as preencham com seus próprios sonhos e aspirações, assegurando a interatividade e impedindo a consolidação da figura do mestre, tão autoritária. Não esqueça das enquetes, tão eficientes para estimular a interatividade: "que nomes devo dar para a gatinha da minha personagem?".
Atenção: É aconselhável citar autores, desde que não concorrentes: "Par délicatesse j'ai pété la vie", de Rembrandt, é uma das dicas, bem como os belíssimos sonetos de Clarice Lispector. As citações sempre servirão para lembrar os leitores de como você é culto, e os outros autores sentir-se-ão atraídos para as oficinas que você dará.
5. Nem tudo deve ser revelado na rede. A literatura exige, algumas vezes, um grau de sutileza e de resguardo que pode ser raro nos fóruns da internet. Ou seja, os grupos de discussão sobre as últimas infidelidades conjugais cometidas por você e seus pares, imprescindíveis para a sociabilidade literária, são assuntos de deep web. Os leitores não precisam saber de tudo, o mistério faz parte da fascinação literária.
Atenção: Apesar da tentação de só usar belas palavras, não escolha o título de nenhum de seus livros como senha para participação nesses grupos. Algum cônjuge pode descobrir e publicar um romance de autoficção depois disso.
6. Quanto a temas políticos, é melhor evitá-los, pois há leitores, jornalistas e júris de editais de todos os partidos, e nenhum deles deve ser discriminado pela literatura. Ela deve ser inclusiva e ampla, já explicamos; caso contrário, não será literatura. Se há governos que mandam tropas de choque contra professores em greve, cuidado com a tentação de comentar o tema: a literatura não está em tudo e deve ser reservada para os campos onde ela pode ser efetiva, ou com que tenha alguma relação. Não disperse sua energia!
Atenção: Pode ser necessário combater escritores que não sabem o seu lugar e adotem uma postura que chamam, pretensiosamente, de participativa. Contra esses, é lícito manifestar-se, pois, para as autoridades, você estará cumprindo o difícil e custoso papel de estar sempre a favor.
7. Crie listas de conselhos para jovens escritores. Além de não dar trabalho algum sob o ponto de vista intelectual, bastando recolher as palavras comuns nas searas cotidianas, elas darão o consolo a quem as lê não só de reconhecer o que já havia sido relido milhares de vezes, mas o júbilo de poder caracterizar a reiteração como reflexão. Trata-se de um exemplo de como arriscar-se no erro pode ser lucrativo para o autor.
Atenção: Sempre acrescente a essas listas a notícia de sua próxima oficina de criação, se ainda tiver alguma, ou de marketing literário e/ou marketing para textos. É melhor insistir nesta última categoria: nada é mais recompensador do que escrever as chamadas que rendem mais clicks na internet. Os maiores talentos de hoje buscam as maiores remunerações de sempre.
8. Acima de tudo não ignorar, nas redes como alhures (se houver ou importar algo como alhures), que não há criação fora do marketing. Temos que assumir este Zeitgeist, que nos recorda que são as palavras que criam o Mundo, e o mundo existiu para terminar numa Mercadoria.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
quarta-feira, 29 de abril de 2015
segunda-feira, 27 de abril de 2015
Lançamento: Cidadania da bomba, e a história da inexistência da palavra liberdade
Há poucos dias lancei um livro de contos, Cidadania da bomba, a convite de Ronald Polito, pela e-galáxia, que só publica em formato virtual, para a coleção Geleia Real, que reúne títulos de poesia, crítica, crônica e teatro.
Uma edição impressa deve ficar pronta neste semestre pela editora Patuá, de Eduardo Lacerda, com apresentação de Ricardo Rizzo, que também foi publicado na Geleia Real. A coleção inclui títulos de Marcelo Mirisola e Nilo Oliveira, Ricardo Lísias, Tarso de Melo e Victor da Rosa - sobre alguns desses autores, curiosamente, já escrevi.
Publiquei contos de maneira esparsa, porém este é o primeiro livro que publico de prosa de ficção, e para ele escrevi este release:
A capa, uma ideia de Fabio Weintraub, foi feita a partir de uma imagem de Gordon Matta-Clark.
Em um dos contos, a que ironicamente dei o título "República", emprego a forma de entrevista, para um programa de tevê, para contar a história do pesquisador que buscava entender a inexistência da palavra liberdade na língua portuguesa. A ex-mulher do pesquisador lançara um livro sobre ele e o apresentador de tevê não entende nada do que está sendo dito. Trata-se do elemento bem previsível do conto, reconheço. Talvez a história interesse pelo que fala da violência contra os índios, da violência no campo, da violência na falta de justiça de transição. Eis um breve trecho da entrevista:
Uma edição impressa deve ficar pronta neste semestre pela editora Patuá, de Eduardo Lacerda, com apresentação de Ricardo Rizzo, que também foi publicado na Geleia Real. A coleção inclui títulos de Marcelo Mirisola e Nilo Oliveira, Ricardo Lísias, Tarso de Melo e Victor da Rosa - sobre alguns desses autores, curiosamente, já escrevi.
Publiquei contos de maneira esparsa, porém este é o primeiro livro que publico de prosa de ficção, e para ele escrevi este release:
Um personagem vai para o interior do país pesquisar a inexistência da palavra liberdade na língua portuguesa; uma professora de matemática que pede esmolas não consegue ensinar seus alunos a calcular em quantos dias um mendigo chega à classe média; policiais que ocupam favela e recolhem pertences dos moradores treinam pontaria com a palavra “Deus”; um casal em situação de rua vive no tempo dos jornais que o cobrem. Essas e outras histórias, em que a explosão é solo em que todos pisam, compõem “Cidadania da bomba”, primeiro livro de contos de Pádua Fernandes, que já havia publicado quatro livros de poesia e um de ensaios no Brasil, em Portugal e na Argentina.
O selo Geleia Real da e-galáxia tem coordenação do poeta e tradutor Ronald Polito.
A capa, uma ideia de Fabio Weintraub, foi feita a partir de uma imagem de Gordon Matta-Clark.
Em um dos contos, a que ironicamente dei o título "República", emprego a forma de entrevista, para um programa de tevê, para contar a história do pesquisador que buscava entender a inexistência da palavra liberdade na língua portuguesa. A ex-mulher do pesquisador lançara um livro sobre ele e o apresentador de tevê não entende nada do que está sendo dito. Trata-se do elemento bem previsível do conto, reconheço. Talvez a história interesse pelo que fala da violência contra os índios, da violência no campo, da violência na falta de justiça de transição. Eis um breve trecho da entrevista:
- Muito obrigada. Você também está lindo. É verdade. Neste livro, conto a história de meu ex-marido, que buscava investigar se a palavra liberdade existia em nossa língua. Todo mundo sabia que a palavra não existia, ou julgava saber, por isso ninguém tinha estudado a questão, mas a história dessa inexistência ainda não tinha sido escrita. A própria noção de história da inexistência ainda não tinha sido criada. O estudo que ele queria fazer era duplamente pioneiro, inclusive metodologicamente, por isso ele não conseguiu financiamento. Mas vendeu tudo o que tinha e partiu para a pesquisa de campo.Penso que a literatura é uma dessas construções que exigem a liberdade como esteio e que, por isso, ela é fundamentalmente política, mesmo quando trata de assuntos da esfera privada. Difícil construção. Imagino, no entanto, que o pouco que logrei fazer neste livro foi erguido por meio da bomba.
- Este colar é artesanal?
- Você também está muito charmoso. Nós nos separamos nessa época. Eu não quis largar tudo para viajar com ele, que foi para o interior em busca da cidade onde foi erguido o memorial do presidente. Era a mais cara obra do país. Ele partiu pouco antes da reeleição. Bem antes de ter sido aprovada a lei da reeleição duas vezes. Ele queria entrevistar o líder dos peões que ergueram o memorial. Todo mundo conhece a história: o governo queria tudo pronto antes das eleições e a empreiteira do genro do presidente deixou de pagar as refeições dos peões, que já não podiam sair de lá por causa das dívidas de comida com o restaurante da empresa.
- E o que você acha da separação da Laura e do Roberto? Também ficou chocada?
- Ele achava que esse episódio poderia comprovar a inexistência da palavra liberdade em nossa língua. Mas precisava do depoimento do líder dos peões. Outras perguntas vinham daí: havia contradição em erguer um monumento do Estado, da Lei, com uma licitação fraudada? Contradição nas paredes, com inscrições sobre a paz, mas erguidas com trabalho forçado? Nos líderes do sindicato, todos com cargos no governo, terem chamado os trabalhadores de vagabundos? Nas pinturas com índios, depois de a Força Nacional de Segurança ter expulsado todos os que lá viviam para cumprir a medida de suspensão da existência jurídica dada pelo Supremo Tribunal? O monumento, tão contraditório, conseguiria ficar de pé? Hoje sabemos que os defeitos estruturais levaram o governo a contratar a restauração com a mesma empreiteira. Mas ele achava que o fato de o monumento ser tão precário estava relacionado com a palavra liberdade. Como ela não existia, a construção cairia, sem esteio.
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