O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Uma casa comum para o Estado, os Índios, os Extrativistas e os Sem-Terra? O III Colóquio Habitat e Cidadania

Fui convidado a participar de grupo de trabalho sobre direito ao território e legislação fundiária no III Colóquio Habitat e Cidadania: Habitação no campo, nas águas e nas florestas, que ocorreu entre 12 e 15 de maio deste ano, na Universidade de Brasília. Esse GT contou com os professores Karla Hora (que o presidiu) e Ariovaldo Umbelino de Oliveira.
A comissão organizadora do evento era formada por integrantes do Grupo de Pesquisa em Habitação e Sustentabilidade do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP (HABIS/IAU/USP), do Centro de Ação Social em Arquitetura Sustentável da Faculdade de arquitetura e Urbanismo da UnB (CASAS/FAU/UnB) e do Grupo de Estudos em Reforma Agrária e Habitat do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN (GERAH/PPGAU/UFRN).
O colóquio anterior havia ocorrido na USP São Carlos em maio de 2011 e produziu um interessante documento com o resumo das discussões e uma série de propostas para o Estado, atacando a falta de isonomia entre os programas para a cidade e para o campo: 
A discriminação da população rural dentro das políticas públicas habitacionais do governo federal acentua-se na medida em que não há recursos previstos, dentro do Minha Casa, Minha Vida, para a provisão habitacional em assentamentos de reforma agrária. Para solucionar a falta de habitação, a população assentada passou a contar exclusivamente com recursos do INCRA, por meio do programa Crédito Instalação, que prevê 15 mil reais para a construção de novas moradias e 8 mil reais para reforma. No entanto, este órgão do governo federal não possui técnicos em número e qualificação adequada suficiente para implementar uma política habitacional justa e eficiente para os assentamentos rurais. Também não disponibiliza assessoria técnica especializada e gratuita para um acompanhamento satisfatório dos empreendimentos.
Diante deste cenário, o II Colóquio Habitat e Cidadania: Habitação Social  no Campo configurou-se como uma iniciativa que pretende retomar e qualificar este debate em âmbito nacional, propondo a articulação e a formulação de estratégias e ações que possam orientar   mudanças significativas na política de habitação social no Brasil, cujo horizonte seria a isonomia de recursos, de atendimento, de tratamento, de consideração, enfim,de direitos entre o urbano e o rural.
O direito à moradia foi constitucionalizado por meio da emenda n. 26, de 14 de fevereiro de 2000. Se a sua efetividade nas cidades é problemática, no campo, onde historicamente o acesso aos direitos e à justiça é menor, o quadro se mostra mais difícil.
O programa federal Minha Casa, Minha Vida, acabou sendo estendido para o meio rural entre o II e o III Colóquios, como era a demanda dos movimentos no campo. No entanto, com que limites isso se deu? No evento, os problemas se mostraram bem claramente.
A organização do colóquio, além de trazer pessoas da academia, chamou representantes dos movimentos sociais, das populações indígenas e do governo. Ademais, pensou na habitação não apenas nos campos, mas incluiu a perspectiva dos moradores das florestas e das águas, incluindo os pescadores.
As divergências entre os grupos presentes foram muito significativas: a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF) e o Movimento dos Sem-Terra (MST), apesar de relatarem experiências que demonstram que o programa mal funciona e, de fato, não é adequado para a diversidade de culturas e de climas no Brasil, muito menos para as dificuldades de logística fora do ambiente urbano, defenderam o Minha Casa, Minha Vida e o governo federal. Não foi à toa que Kátia Abreu pode ser ministra... Os índios e os extrativistas, pelo contrário, foram bastante críticos, bem como a maior parte dos representantes da academia.
Era uma boa ideia, ou estratégia consequente, defender o programa? Interessante análise de Mariana Fix e Pedro Arantes, "Minha casa, Minha Vida, o pacote habitacional de Lula", de 2009 (quando o programa ainda se circunscrevia à moradia urbana), argumenta que ele ressuscitava a ideologia da casa própria da ditadura militar "num contexto de apaziguamento das lutas sociais e de conformismo em relação às estruturas do sistema". Ademais,
[...] não se encontra no pacote qualquer preocupação com a qualidade do produto e seu impacto ambiental, a não ser a que é posta pelo próprio capital da construção e suas pífias certificações de qualidade, que garantem na verdade sua viabilidade como mercadoria, ou seja, a ratificação da prevalência do valor de troca sobre o valor de uso.
O amplo repertório nacional e internacional de soluções para a habitação social é sumariamente ignorado na formulação do pacote e nas moradias padrão apresentadas pela Caixa Econômica. As duas tipologias propostas pela Caixa foram divulgadas pela instituição como solução padrão para todo o território nacional, desconsiderando condições climáticas, culturais, geográficas diferenciadas do Brasil. Elas já estão pré-aprovadas (o que agiliza prazos e diminui o tempo de análise de projetos) e se tornaram referência para incorporadores imobiliários como parâmetro para os estudos de viabilidade e rentabilidade dos empreendimentos – evidentemente que os empresários não pretendem fazer nada melhor ou maior para a faixa de 0 a 3 salários, sob pena de reduzirem seus lucros, e até já estudam a supressão de paredes internas das unidades habitacionais.
Os defeitos estruturais desse Programa, concebido para as construtoras e não para a população, em sua financeirização e sua recusa à diversidade cultural e ambiental, confirmaram-se no meio rural. Mesmo adotando um discurso de defesa do governo, o MST e a FETRAF não puderam negar os problemas, embora acreditem que eles possam ser solucionados simplesmente com maiores investimentos. Tendo a pensar que se trata de um engano, como Ailton Krenak denunciou no Colóquio: a política está errada desde sua concepção.
A maior parte do evento foi transmitida ao vivo e gravada pela PósTV. Indico abaixo os vídeos, sem me preocupar em resumi-los, pois ainda não vi todos.


1. Conferência de abertura, do geógrafo, professor da USP, Ariovaldo Umbelino de Oliveira. É impressionante vê-lo falando da reforma agrária no Brasil, atualizando os dados de seu livro Modo de produção capitalista, agricultura e reforma agrária, explicando a não-reforma agrária do governo Lula até a reforma mínima do governo Rousseff. Antes de chegar à atualidade, ele dá uma grande aula sobre a história da legislação fundiária no Brasil desde os tempos coloniais.
É impressionante o que ele diz, a partir dos dados oficiais, sobre a grilagem que ocorreu no Brasil entre 2003 e 2014 - sem paralelo até mesmo durante a ditadura militar, segundo o geógrafo.
A maior parte das terras improdutivas está no "paraíso do agronegócio".
Ele trata dos diversos episódios de corrupção no INCRA e das operações da Polícia Federal. E destacou que o "calcanhar de aquiles do agronegócio" é a propriedade fundiária: os ruralistas "sabem que suas terras estão sobre ilícito".

2. Mesa de 13 de maio, manhã: Representantes do governo se apresentaram, do Ministério das Cidades e da Caixa Econômica, bem como militantes camponeses e quilombolas.
Fátima Vieira, do MST/MS, mostrou quadros que pareciam vir de um representante da Caixa Econômica, de tão governistas que eram. Uma doutoranda da USP questionou a falta de problematização do programa, o que gerou discussão.
Girlene dos Santos falou do Projeto Brasil Quilombola, que seria bonito, porém, "para chegar à política, é preciso passar por uma série de entraves": problemas com o INCRA, o financiamento, e a  logística. E revelou que já havia recebido dez ligações de pedreiros que queriam deixar as obras porque não haviam recebido pagamento.
Agmar Lima, que, além de representante quilombola em Minas Gerais, é vereador pelo PT, também falou dos problemas de execução na ponta: não haver estradas, fornecedores não quererem atender... Porém, no debate, afirmou que "era fácil problematizar" e que "nós aceitamos o que o governo brasileiro e suas instituições nos dá". E reclamou que a academia não ia para as comunidades quilombolas: "nós não temos ninguém nosso na academia".
Muito interessante foi a fala de Célia das Neves, da Reserva extrativista Marinha Mãe Grande (PA), sobre a inadequação do programa e da legislação existente para as comunidades de pescadores. Ela denunciou que o maior estuário do mundo, do Amapá ao Maranhão, estava ameaçado pela construção de um porto para a Vale (eleita, como sempre deve-se lembrar, a pior empresa do mundo em 2012). Vejam-na empregar o neologismo "maritório", junção de mar e território, que, em sua imaginação conceitual, surpreendeu o professor Ariovaldo.

3. Mesas de 13 de maio, tarde: Falas de representantes do Ministério das Cidades, do MST, da FETRAF e da ONG Núcleo de Cultura Indígena.
Cedenir Oliveira, do MST/RS, em alusão ao debate anterior, defendeu o modelo do Minha Casa, Minha Vida: "nós temos que olhar os interesses coletivos dos sujeitos, senão você pode cair no individualismo"; "você pode fazer quatro ou cinco projetos e a família se adapta".
Ailton Krenak (vejam-no em 1988, defendendo o capítulo dos povos indígenas na Constituinte, em trecho do filme "Índio Cidadão?" de Rodrigo Arajeju) se apresentou, fez uma homenagem a Osmarino Amâncio (a partir de 1 hora e 37 minutos do vídeo), com quem criou a União dos Povos da Floresta em 1987, e criticou severamente o Minha Casa, Minha Vida: "estamos cada vez mais introjetando em nossas políticas públicas os modelos de urbanização"; "meu povo teve que lutar por muito tempo para continuar a viver em beira de rio".
Elvio Motta, coordenador nacional da FETRAF, falou dos problemas com os fornecedores, com a mão de obra, mas elogiou o governo, e afirmou que "as melhores casas são dos movimentos sociais organizados". Ressaltou, porém, a existência de máfias no programa, com entidades organizadoras falsas: o Ministério precisaria "separar o joio do trigo".
Em resposta a pergunta, Cedenir Oliveira defendeu a autoconstrução assistida, que seria uma forma de evitar o assistencialismo. Ailton Krenak fez uma declaração veemente e elegante, explicando que estava no encontro errado, não com os movimentos sociais que queriam mudar o país, mas com aqueles que simplesmente aceitavam "bugigangas" do governo. Ele não teria vindo para "homologar políticas" que a longo prazo seriam danosas e cujos efeitos teriam que ser desfeitos depois. E deixou a mesa!
Foi o momento mais dramático do Colóquio, em que a oposição entre estes movimentos de sem-terra e as populações tradicionais, fortemente discriminadas pelo governo federal, apareceu de forma inegavelmente flagrante.
Não pude ver a mesa seguinte, com representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (vejam, a partir de 3'30'', a explicação de como o direito à moradia está sendo "sistematicamente violado" na construção de barragens) e do Movimento Camponês Popular, pois aproveitei para assistir a algumas aulas no Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais, em que falaram Ailton Krenak e Manuela Carneiro da Cunha.

4. Mesa de 14 de maio, manhã: Osmarino Amâncio, previsto para o dia anterior, acabou falando nesse dia, e denunciou que estava sendo alvo de criminalização pelo ICMBio (vejam a história no Índio é Nós: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2015/05/26/carta-dos-servidores-do-icmbio-e-a-criminalizacao-dos-povos-da-floresta/). O governo federal está criminalizando as práticas tradicionais das comunidades extrativistas; para a atual administração, o seringueiro construir uma casa com a madeira caída na floresta é um crime ambiental, mas a construção da Usina de Belo Monte é perfeitamente lícita!
Vejam o que Osmarino espirituosamente diz dos três candidatos mais votados na última eleição presidencial.
Foi muito impressionante a fala de Smri'a'u Xavante, José Tserenhomo Xavante e Tseredzu Xavante, da Comunidade Xavante de Ripá (MT) falaram com Alexandre Lemos (que fez a tradução; dos Xavantes, somente o cacique, José, falava em português). Eles rejeitaram as casas do govenrno e preferiram ficar com suas tradições - como mostra este filme, "Uma casa, uma vida", um dos curtas exibidos no Colóquio à noite.
Houve também falas dos representantes da COOPERHAF (SC) e do CREHNOR (RS), que evidenciaram as dificuldades de financiamento e de construção para a habitação no campo. A professora Amadja Borges, da UFRN, fez uma interessante fala crítica, nos comentários, às políticas do governo federal.

5. Mesa de 14 de maio, tarde: Perdi a maior parte desta mesa, que tratou das experiências do Peru e do Uruguai, com falas de Miguel Angel Hadzich, Sandra Graciela Vegara Davila, Martin Batalla e Gonzalo Balarini.

6. Plenária final: As discussões dos grupos de trabalho foram expostas. O professor João Marcos Lopes fez um histórico dos colóquios e dos programas governamentais. Nos debates, pode-se ver a representante do Ministério das Cidades afirmar que não haverá mais recursos neste ano nem no ano que vem.
Por causa da viagem de volta, não fiquei até o final. Eu não tinha visto Rodolfo Sertori, a partir de 2 horas e 11 minutos, criticar com toda razão que "a gente deixa de lutar por terra por lutar por verba do Minha Casa Minha Vida [...] um programa que só surgiu por demanda de construtora. Todo mundo sabe disso. Isso não é segredo."; "O Ministério das Cidades não é nosso parceiro. Ministério das Cidades é parceiro de construtora". Deve-se lembrar que ele administra o programa também para a área rural...
Sertori conta as dificuldades do próprio Colóquio: tiraram "dinheiro do bolso". O INCRA nunca respondeu aos telefonemas da organização, e a Funai teria apenas perguntado quando foi contactada por causa deste evento, "o que a gente tem a ver com isso?". Os índios presentes compreenderam a questão muito melhor do que a Funai...
A partir de 2 horas e 26 minutos, Célia das Neves retoma a palavra e critica a medida provisória 665, que prejudicou, entre tantas outras categorias, os pescadores, por conta do seguro defeso, e o decreto 8425, de 31 de março de 2015, que "não reconhece a cadeia produtiva familiar dos pescadores", com discriminação de gênero (o que é impressionante, lembrando que foi uma mulher, presidenta da república, que assinou esta norma): as mulheres deixariam de ser consideradas pescadoras, ela explica.

Ainda será elaborado o documento final do III Colóquio. Achará uma casa comum para todas essas posições divergentes, que revelam os limites e as concessões da esquerda que está agora no poder?

P.S.: Em agosto de 2015, tive conhecimento da tese de doutorado de Alexander Hilsenbeck, "O MST no fio da navalha: dilemas, desafios e potencialidades da luta de classes", defendida em 2013 no programa de pós-graduação em ciência política da Unicamp. Faço notar que  banca era composta por intelectuais simpáticos ao Movimento, incluindo Bernardo Mançano Fernandes, que publicou com Stedile.
No trabalho, que levanta parcerias de empresas transnacionais com o MST, ainda anterior ao impacto do "Minha casa, minha vida" nesse movimento, a guinada à direita é explicada desta forma:
Vemos, assim, um reordenamento da lógica de gestão do Estado e a integração da ação política dos movimentos sociais à nova lógica gerencial de governo. Numa manifestação de perda de referência social, busca-se fantasiosamente superar as barreiras de classe em favor de uma cidadania limitada, que se atrela e se fundamenta no mercado.
Na conclusão, temos perguntas incômodas como estas:
Ao trilhar o caminho da prioridade às questões relativas às técnicas, financiamentos e ao mercado, com parcerias com empresas capitalistas transnacionais por políticas governistas, não estaria o MST convertendo-se, também ele, numa unidade (ainda que marginal) do sistema?
Seria este o caminho a ser seguido pelo MST? De permitir que sua agenda de lutas seja preenchida exogenamente pelos temas impostos pelo governo? Em mais de uma década de governos do PT qual foi o balanço do acúmulo de forças e qual foi o ascenso dos movimentos de massas? Não teria essa falta de acúmulo contribuído para uma guinada à direita nas recentes mobilizações de massa de junho de 2013? 


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