O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 1 de agosto de 2015

Desarquivando o Brasil CV: Mapas de "tensões sociais" e das "questões indígenas"



Nos documentos sigilosos produzidos pela ditadura militar brasileira, não é difícil encontrar aqueles que explicitam uma visão oficial de que as questões relativas a direitos sociais não eram consideradas, pelo governo federal, como problemas de cidadania e de direitos dos cidadãos, e sim especialmente, ou meramente, como matérias de segurança nacional e controle da sociedade pelo Estado.
Já ressaltei neste blogue alguns documentos dos anos 1960 e 1970 sobre essa questão. Desta vez lembro de um documento do final do governo do general Figueiredo, produzido pela Divisão de Segurança e Informações (DSI) do Ministério da Justiça.
As DSI e órgãos congêneres, tentáculos do sistema de informações, existiam em grande parte da administração pública direta e indireta.
Neste relatório sobre "áreas de tensão social', de 20 de junho de 1984, vemos algumas das suspeitas típicas da ditadura e do sistema de informações; algumas delas, anteriores à constituição do SNI e do próprio golpe de 1964.



As "organizações subversivas" e o "clero progressista" são vistos como responsáveis pelas "ações adversas" (trata-se do vocabulário da segurança nacional), que o documento compara à agitação do período anterior a 1964. A referência é significativa, mas ignoro se o documento foi realizado com a intenção de atrapalhar a transição para o governo civil.
São muitos os grupos mencionados: desempregados, "sem moradia", trabalhadores rurais ("especialmente os 'bóias-frias'"), "operários em geral", as lideranças indígenas.
O quadro deveria mesmo ser abrangente: o descalabro social e econômico, mais agudo no fim da ditadura militar, seguia em marcha. 
Os problemas de moradia, rural e urbana, são reconhecidos, mas o que o se ataca é o fato de as esquerdas usarem-nos contra o governo. Os "sem-terra" são mencionados, bem como as remoções por causa da construção de hidrelétricas, problemas que continuam sendo atuais, não obstante a chamada democratização do país.
No tocante ao Sudeste, menciona-se a "alta taxa de concentração urbana"; na região Nordeste, "concentração de grandes áreas em mãos de um número diminuto de pessoas".
No Conceito Estratégico Nacional, documento ultrassecreto de 1969, a relação entre desenvolvimento e ordem interna é explicitada mais de uma vez, como nesta passagem:
5.1.1 – O problema brasileiro é, basicamente, o seu insuficiente desenvolvimento; por isso mesmo, o objetivo principal da política do governo é o desenvolvimento harmônico do País, a serviço do progresso social e da valorização do Homem Brasileiro.
5.1.2 – O desenvolvimento pressupõe a manutenção da ordem e das instituições e a consequente criação de uma expectativa de segurança político-social para os investimentos. Desse modo, para a consecução dos objetivos da política governamental de desenvolvimento, impõe-se a existência de um clima de ordem interna e de estabilidade institucional.
Isso explica projetos governamentais como o da emancipação do índio, em que "integrar" (os índios) então era nada menos "entregar" (suas terras), síntese no Manifesto dos Antropólogos publicado pela Comissão Pró-Índio em 1979, bem como a tentativa de aprovar a mineração em terras indígenas, apoiada por jornais como Estado de S. Paulo e O Globo.


Não se vê no documento de 1984 uma verdadeira autocrítica do regime, e sim uma longa acusação contra movimentos sociais, sindicalistas, partidos de oposição e setores da Igreja Católica, que estariam a se aproveitar das diversas "tensões sociais", de acordo com a nomenclatura do documento confidencial.
Os grandes grupos do que o documento curiosamente chama de "áreas problemas" são as "invasões urbanas", a "questão fundiária", a "questão indígena", as "questões trabalhistas", "distúrbios populares e  ação de massa".
A importância dos índios como alvo do sistema de informações é, pois, reiterada neste documento do fim da ditadura. Eles também estavam entre os pontos sensíveis da ditadura, suscitados pelas forças democráticas ou de oposição.
Como escrevi em outro lugar, "o tratamento discriminatório contra os povos indígenas não decorria apenas da violação da legislação vigente (o que chegou ao genocídio, conforme  denunciado já no final da década de 1960 e no decênio seguinte), o que certamente ocorreu  também; deve-se acrescentar, porém, que o próprio direito da época, imbuído da doutrina de segurança nacional e sua matriz etnocêntrica, não atendia às reivindicações dos índios, especialmente seus direitos territoriais e o direito à diferença."
No último governo da ditadura militar, formou-se a União das Nações Indígenas (UNI), enfrentando a oposição da Funai (e do governo federal). Ailton Krenak, que cuidava do setor de comunicação da organização, declarou em 1989 (entrevista recolhida no recente volume que leva seu nome na coleção Encontros, da editora Azougue, com introdução de Eduardo Viveiros de Castro):
A UNI iniciou a sua articulação mais permanente em 1979. Hoje o Brasil sabe que existe o povo indígena. Acho que vocês sabem que na década de 1960 e até o começo da década de 1970, mesmo as pessoas mais bem-informadas do Brasil, se perguntassem a elas sobre índios, iam dizer: "não, índio não. Não tem. Bem, talvez tenha um ou outro aí guardado em alguma reserva pelos irmãos Vilas Boas". "Quem são os irmãos Vilas Boas?", outro diria. "São heróis que têm lutado para guardar como relíquia alguns índios sobreviventes de 1500." Raoni trouxe para o povo brasileiro e para o mundo cheiro de índio, cara de índio, impressão sobre o índio, expectativa. Em alguns casos, irritação, ódio, carinho, solidariedade. Nós provocamos sentimentos nas pessoas quando mostramos que éramos gente de verdade. Nós provocamos os fazendeiros. Nós provocamos o Conselho de Segurança Nacional, que botou os militares para nos vigiar de mais perto.
Os irmão Villas Bôas faleceram, mas o caiapó Raoni Metuktire felizmente continua entre nós, sendo recebido no mundo como o grande líder que é, menos em Brasília, onde não há - é evidente - nenhuma figura política que esteja a sua altura.
Sua petição contra Belo Monte está com meio milhão de assinaturas: http://raoni.com/assinatura-peticao-contra-belo-monte.php; vejam-no falar sobre a questão: https://www.youtube.com/watch?v=cVX3BRhY9WM
Voltando à citação de Ailton Krenak, é inegável que ele está correto em relação à vigilância da ditadura militar sobre os movimentos indígenas, encarados como um problema à segurança nacional. Este é um dos documentos que demonstra essa preocupação oficial, que não se extinguiu com o fim do governo Figueiredo; achei também documentos na mesma linha da época de Sarney. As declarações de certos militares de alta patente na época do julgamento da Raposa Serra do Sol, em 2009, indicam que a ideia dos índios como inimigos da segurança nacional persiste, apesar do perfil evidentemente autoritário e racista dessa concepção.

Vemos neste relatório confidencial que o sistema de informações constatou a nudez do rei, isto é, a "má condução da Política Indigenista", e, como diversos outros documentos, mostrou a preocupação com as repercussões internacionais do que chamava de problema indígena.
O documento, seguindo mais um traço característico da época, acusou as entidades e pessoas de "apoio" ao índio, não de inventarem os problemas, mas de explorá-los contra o governo.
Vejam que a "expansão da fronteira agrícola", na Região Norte e em toda a Amazônia Legal, era um dos fatores de conflitos, como continua a ser hoje; a grilagem, curiosamente, foi destacada apenas no Centro-Oeste.
Só se pode concordar, no entanto, com a afirmação de que a grilagem tinha "incidência sobre áreas indígenas", questão também não resolvida até hoje - na verdade, talvez tenha sido agravada. Em recente aula na UnB, a que assisti e foi gravada, Ariovaldo Umbelino de Oliveira afirma - e comprova com dados oficiais - que nunca a grilagem cresceu tanto quanto de 2003 a 2014, fenômeno sem paralelo até mesmo com os tempos da ditadura militar segundo o geógrafo que, ele mesmo ressaltou, foi um dos fundadores do partido (o PT) sob cujo governo ocorreu esta imensa espoliação de terras públicas, indígenas e de conservação ambiental.

O Estatuto do Índio (lei 6001 de 19 de dezembro de 1973) havia previsto, no artigo 65, um prazo de cinco anos para demarcação das terras indígenas, que não foi cumprido. A Constituição de 1988, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, previu prazo igual, igualmente violado pelos governos da democracia.
No documento confidencial de 1984, constatou-se o que os povos indígenas repetiam há muito: a falta de demarcação multiplicava os conflitos:

[...] sobressai a questão da terra, que constitui, na prática, a gênese dos conflitos entre índios e não-índios. Em suma, o problema decorre da falta de demarcação das áreas indígenas.

Depois dessa confissão de culpa (a demarcação, como hoje, era um dever do governo federal), são atacadas no relatório as organizações que atuavam com os povos indígenas:
Quanto às reivindicações dos silvícolas, as entidades de "apoio à causa indígena" adotam a teoria "foquista", em princípio em locais de difícil acesso, com o fim de diluir a ação do órgão tutor. Exigem a substituição de funcionários, por elementos afastados, por qualquer motivo, de outras administrações da FUNAI e/ou, se possível, indígenas que se amoldem à orientação dessas entidades.
Trata-se de uma época em que os funcionários da Funai que se insurgiam contra as manobras anti-indígenas impostas pela direção militarizada eram sumariamente afastados (o coronel Nobre da Veiga em sua gestão durante o governo do general Figueiredo demitiu de uma só vez 39 indigenistas).
Mais curiosa é a menção à teoria foquista, que remonta a Débray e sua visão da estratégia adotada pela Revolução Cubana: a criação de focos de guerrilha rural para desencadear a revolução. Em geral, os órgãos de informação a vinculavam às organizações clandestinas da esquerda militarista - algumas delas, de fato, a reivindicaram.
É estranhíssimo, porém, que a DSI/MJ o tenha feito neste contexto, pois, ao que se sabe, o CIMI nunca realizou a luta armada...

O fantasma da luta armada (derrotada, antes mesmo de eclodir, nove anos antes no Araguaia) é novamente ressuscitado no fim da introdução do documento, Os "esquerdistas" estariam-na preparando, "tendo a reboque o clero 'progressista'".
Vemos, em momentos como esse, setores da ditadura militar tentando impedir a vinda de um novo regime, que poderia, talvez, acabar com as estruturas administrativas, cargos e verbas de que os órgãos de vigilância e repressão dispunham.
No final, reafirmam-se o entendimento dos direitos sociais como tática para controle da população, e não como uma necessidade da cidadania, bem como a tática de criminalização dos movimentos sociais para o controle das reivindicações e dos grupos organizados:
A legislação vigente, se aplicada no sentido de minimizar as questões sociais que estimulam a ação adversa voltada contra o Governo e o regime, constituir-se-ia em importante elemento na busca da normalidade institucional. Se, por outro lado, a norma legal for empregada, também, na direção daqueles que buscam desestabilizar o Estado, atribuindo-lhes responsabilidade criminal por seus atos, julga-se possível o retorno da paz social nas áreas de tensão identificadas.

Quero fazer notar o nome dado ao anexo, "questão indígena" que, além de ignorar a pluralidade desses povos, deixa ver a ideia de que eles são um "problema". Mais recentemente, uma página na internet, de perfil anti-indígena, aparentemente encerrada, assumiria esse nome.
Criei um arquivo em formato pdf com a lista e os mapas dos conflitos com os povos indígenas. São cinquenta e sete páginas que, no final, são sintetizadas em um mapa nacional:



Trata-se de uma grande tabela, dividida por Estados e Territórios (começa no Amazonas e termina no Rio Grande do Sul), apontando os Município ou Terra Indígena, o evento ocorrido, as lideranças envolvidas (índios, às vezes antropólogos, CTI, CIMI, CPT, CPI/SP, "imprensa estrangeira"...) e a situação: se o conflito era esporádico, latente ou permanente. Em alguns casos, vemos os nomes dos invasores ou dos políticos que apoiaram as invasões (vejam o caso Caramuru-Paraguassu na Bahia, que envolveu Antônio Carlos Magalhães), e atuação dos governos dos Estados (como o Maranhão) contra os povos indígenas. Há mapas por unidade da federação.

Na seção dedicada ao Estado de São Paulo, lemos que as tensões estão em situação "Latente, com tendência ao agravamento, na medida que os esforços dos indígenas em ver reconhecidos seus os direitos, afetem interesses da sociedade envolvente."
A anotação é típica da época: a ditadura militar: as reivindicações de direitos dos grupos minoritários eram abafadas para evitar a eclosão dos conflitos sociais. Por essa razão, no direito da segurança nacional, havia tipos penais como o de "Fazer propaganda subversiva" (artigo 45 do decreto-lei n. 898 de 1969), que poderia ser cometido por meio de comício, reunião pública, passeata, desfile, em locais de trabalho ou de ensino, em "quaisquer meios de comunicação social" etc. Em 1984, a lei vigente de segurança nacional era já a atual, a 7170 de 1983, que possui disposições parecidas nos artigos 22 e 23.
O documento pode ser, naturalmente, encontrado integralmente no Projeto Memórias Reveladas. Talvez alguns achem mais fácil, no entanto, buscá-lo pelo Armazém Memória, especialmente aqueles que se interessam mais especificamente por conflitos fundiários. Basta entrar no fundo do Arquivo Nacional e selecionar estas pastas:



Esse documento pode ser útil para pedidos de reparação dos povos indígenas, como os que o Ministério Público Federal vem fazendo para concessão de anistia aos povos indígenas.  Creio que pode servir também para desfazer fantasias colonizadoras (por algum motivo que desconheço, o Judiciário é terreno fértil para cultivá-las) de que os índios saíram espontaneamente de suas terras...


Nenhum comentário:

Postar um comentário