O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Retrospectiva 2015: Palavras públicas: das remoções às ocupações

Esta é uma retrospectiva estritamente pessoal, sem nenhuma pretensão de ser representativa do ano. Em 2013, listei frases de outra época (1970, 1971, 1975... ou seja, da ditadura militar) que encontraram repetição ou eco naquele ano. Em relação a 2014, escrevi sobre apresentações de música que vi, do metrô de São Paulo ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Neste ano, quero lembrar de palavras que vi na cena pública em cartazes, nas paredes, nas ruas, e que fotografei. Boa parte delas se refere a remoções físicas, de favelas, por exemplo, ou de imigrantes, e a "remoção" de direitos, como os das mulheres, dos povos indígenas e dos quilombolas. Outras, dizem respeito a ocupações, que são, diferentemente das invasões, um instrumento de resistência e de garantia de direitos humanos. Neste ponto, destaquei as ações de estudantes e de índios.
Entre remoções e ocupações, estão a violência e a repressão.


"3,50 é roubo. Passe livre já"

Na cidade de São Paulo, o ano contou novamente com manifestações do Movimento Passe Livre (MPL). Não foram gigantes como as de 2013, mas aconteceram bastante na periferia.
O aumento foi mantido.
Não participei dessas manifestações, mas vi seus rastros em vários lugares, entre eles o da foto, perto do Teatro Municipal.
Esta foi a última postagem da luta de 2015 contra o aumento: http://saopaulo.mpl.org.br/2015/02/15/bloco-pula-a-catraca-pular-carnaval-pular-a-catraca-contra-a-tarifa/
Em nota curiosa a este desenlace, a editora Boitempo, que combina a edição de livros de esquerda com práticas que parecem ter outra inspiração, organizou um seminário sobre "cidades rebeldes" em que chamou aqueles que reprimiram os movimentos de 2013 (afinal, continuam no poder) e não o MPL.
Para enfatizar a fundamental indignidade disso tudo, a editora chamou as Mães de Maio para cobrir uma ausência da programação. As Mães deram uma resposta que foi um dos pontos altos de 2015, enquanto a esquerda (ex-querda) governista, que tem na Boitempo um braço editorial, passava vergonha exalando elitismo e preconceito contra os movimentos sociais, adotando o ponto de vista da repressão contra o dos movimentos sociais, o da bala e da bomba contra a democracia.


"Vladimir Herzog 40 anos. Lembrar, respeitar, cantar é preciso"

Quarenta anos após o assassinato de Vladimir Herzog no DOI-Codi/SP, em 25 de outubro fez-se novo culto inter-religioso na Catedral da Sé, em São Paulo, com apresentações musicais, especialmente do Coro Luther King, regido por Martinho Lutero.
Ao coro e aos solistas, respondeu o coro informal do público.
Havia muita gente na Igreja. A entrada (a que não assisti) e a saída do público ocorreram ao som de "Para não dizer que não falei de flores", de Geraldo Vandré.
O culto em 1975, na mesma catedral, ocorreu apesar de o governo ter desviado as linhas de ônibus e ter feito tudo para impedir o acesso ao centro da cidade. A cerimônia foi vigiada e controlada.
Em 2015, o acesso foi fácil. Faltou mais destaque, porém, à divulgação do relatório da Comissão da Verdade "Vladimir Herzog", da Câmara dos Vereadores de São Paulo, presidida por Gilberto Natalini. O estudo dos relatórios das diversas comissões da verdade que se formaram no Brasil deveria estar sendo feito por todos os movimentos sociais, pois há muito neles o que aprender sobre as continuidades das violações de direitos humanos e sobre a possibilidade de fundamentar reivindicações atuais.


O relatório final da Comissão que recebeu o nome do jornalista assassinado em 1975 pode ser lido nesta ligação. Ele não é comparável ao da Comissão Nacional da Verdade; entre as 25 recomendações, no capítulo 21, temos esta, mais modesta do que a da CNV: "13 – Prosseguir na penosa discussão, à luz da Lei da Anistia, sobre a responsabilidade criminal dos agentes que prenderam pessoas ilegalmente, durante a ditadura, para a prática de torturas e assassinatos, com frequência ocultando ou desfazendo os corpos de vítimas."
No entanto, a Comissão "Vladimir Herzog" soube se opor à CNV neste ponto fundamental: "25 – Sugere-se o reconhecimento oficial de que o presidente Juscelino Kubitschek não morreu em acidente de trânsito na viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro, mas foi vítima de atentado."
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", que entregou seu relatório final em 12 de março de 2015, foi no mesmo sentido e dedicou quase mil páginas às análises e aos documentos que demonstram que JK foi assassinado e que a CNV se recusou a pesquisar a questão: http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-iv/downloads/IV_Tomo_Relatorio-sobre-a-morte-de-juscelino-kubitschek.pdf
No entanto, os dois grandes jornais diários de São Paulo acabaram ocultando o relatório final da Comissão da Verdade do Estado e não o noticiaram. Segundo um jornalista que seria demitido de um deles poucos meses depois numa das ondas de demissões coletivas de jornalistas de 2015, a ordem era priorizar as manifestações de 15 de março contra o governo. Como se sabe, uma parte dos manifestantes queria uma nova ditadura militar, o que deve explicar por que essa imprensa não quis divulgar a existência de mais um documento oficial que prova que o golpe de 1964 deu origem a um regime criminoso.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXVI: "15 Filhos" e as gerações após a ditadura

Outro dos comentários que tive de escrever para o curso à distância sobre justiça de transição em que continuo matriculado. Neste caso, dever-se-ia escolher uma obra de arte e ainda ligá-la à questão da memória e da reparação "moral e simbólica" vista sob o prisma das gerações mais jovens. Escolhi "15 Filhos", documentário de 1996 em que Marta Nehring e Maria Oliveira, ambas filhas de perseguidos políticos, entrevistaram outros que viveram a mesma experiência.
Ademais, eu havia acabado de rever o filme, pois participara de uma banca de trabalho de fim de curso de uma orientanda de Eduardo Sterzi no IEL da Unicamp, Giovanna Santos Pereira, que o analisara. Na banca, expressei minha própria tese sobre a obra: suas fraquezas em termos de história e de política eram sintoma da incipiência da justiça de transição do Brasil naquele momento e, nesse sentido, ele era representativo da época.
Incluo aqui o comentário e a curtíssima tarefa.


I

Escolhi um curta-metragem, “15 Filhos”, de Maria Oliveira e Marta Nehring, de 1996. [...] farei um breve comentário, relacionando-o a questões dos textos e ao problema proposto.
Trata-se de um filme que apresenta trechos de depoimentos de filhos de perseguidos políticos, boa parte destes mortos ou desaparecidos. As próprias diretoras se enquadram nessa situação. Apenas um desses filhos tinha militância política, o então adolescente Ivan Seixas, preso com o pai, Joaquim Alencar de Seixas (assassinado no DOI-Codi/SP em 1971), ambos do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Os outros eram crianças. Não compreendiam bem o que ocorria, isso é repetido por alguns deles.
No entanto, as violências da época os atingiram profundamente. Francisco Guariba, por exemplo, diz que não tem lembranças da mãe, lembra das fotos, tinha uma “lembrança construída”. Tessa Lacerda, filha do desaparecido político Gildo Lacerda, da Ação Popular, diz: “Eu não sei nada. Eu não sei como meu pai era. Eu não sei... as coisas mais banais.”. Rosana Momente somente aos 18 anos foi saber que era filha do guerrilheiro Orlando Momente, militante do PCdoB desaparecido no Araguaia Trata-se da “infância roubada”; um dos filhos, Janaína Teles, caracterizou-a desta forma em depoimento à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, no livro da Comissão que tem como título essa mesma expressão:

Acho que a principal característica dessa perda parcial da infância se apresenta por meio de um sentimento profundo de que ela se manifestará, sempre. A recorrência dessa sensação gera um sentimento de impotência enorme. A melancolia envolve a vida e, embora ela prossiga e tenha momentos felizes, a sensação de cansaço parece uma herança muito pesada para “carregar”.[COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”. Infância Roubada. São Paulo, 2014, p. 264.]

A historiadora Janaína Teles foi levada ao DOI-Codi/SP com seu irmão Edson, quando ambos tinham, respectivamente, 5 e 4 anos, para ver seus pais, César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles (à época militantes do PCdoB), presos e torturados, de tal forma que as crianças não os reconheceram de pronto.
No caso da história desses filhos depoentes no documentário, vê-se que mais de uma vez experimentaram o que Goffman chamou de estigma, o estigma do comunista ou do subversivo, para si mesmo ou para os pais, e que Roberta Baggio caracteriza como reificação dos sobreviventes:

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXV: Brasil, permanente anistia informal para crimes contra a humanidade

Como outros dos textos que incluí neste blogue em dezembro de 2015, este é mais um comentário que fiz no fórum de um curso sobre justiça de transição. Mais uma vez, o tema foi a lei de anistia. Incluo abaixo uma das curtas tarefas que tive de elaborar, um ligeiro comentário sobre resumos aproximativos de votos dos Ministros do STF no julgamento da ADPF 153, em abril de 2010, sobre a lei de anistia.


A lei de anistia de 1979 já foi objeto de algumas das discussões do fórum deste curso, e muitos dos colegas já escreveram sobre ela nos módulos anteriores. Ela poderia ser vista como manifestação da legalidade autoritária, nos termos de Anthony Pereira, e a atual luta contra essa lei poderia ser considerada um elemento do que ele chama de “democratizar a democracia” (no artigo “A tradição da legalidade autoritária no Brasil", da biblioteca do curso)?
Creio que se pode responder afirmativamente às duas perguntas. O trabalho incompleto da justiça de transição e a subsequente necessidade de “democratizar a democracia” está presente na afirmação de Marcelo Cattoni e de David Gomes de que “Não estamos em um Estado de Exceção, estamos saindo de um, já há algumas décadas.” (no artigo “Transição e constitucionalismo: Aportes ao debate público contemporâneo no Brasil”, também da bibliografia do curso).
Katya Kozicki, no texto da bibliografia (“Backlash: as ‘Reações Contrárias’ à Decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153”), bem como alhures, analisou a reação de parte da sociedade brasileira, que questionou a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso mencionado, em que a Corte considerou recepcionada pela Constituição de 1988 a lei de 1979:

Ao mesmo tempo, tal “apropriação” – pela sociedade – do papel de intérprete constitucional (que, neste sentido, deixa de ser um agente passivo e receptor das ‘verdades constitucionais’ proferidas pelo STF) demonstra a importância de questionarmos o papel que caba a cada um dos Poderes da República no aprimoramento da qualidade da nossa democracia e, não menos importante, do papel da própria sociedade nesse processo.

É certo que houve um grande apoio à decisão na grande imprensa (interessada no assunto, pois boa parte dela colaborou com a ditadura militar, como O Estado de S. Paulo, O Globo e a Folha de S. Paulo), mas várias vozes dissidentes apareceram assumindo o papel de “intérprete constitucional”, mesmo no meio jurídico, denunciando a extrema fraqueza jurídica e o falseamento da história que fundamentam a decisão do STF.
Emilio Peluso (no texto da bibliografia “A ADPF 153 no Supremo Tribunal Federal: a anistia de 1979 sob a perspectiva da Constituição de 1988”), outro desses autores que denunciou a decisão, mostra que o artigo 8º. do Ato das Disposições Constitucionais é claro ao circunscrever os efeitos da anistia apenas àqueles que sofreram “os atos de exceção”.
O Supremo Tribunal Federal, naquele julgamento, não hesitou em entrar em contradição com sua própria jurisprudência, como eu mesmo já fiz notar em outros textos, como este, em que comparei o fato de o STF ter-se autorizado a considerar não recepcionada a lei de imprensa da ditadura militar, na ADPF 130, mas não ter achado possível fazer o mesmo com a lei de 1979:

Nessa opção pelo continuísmo (que José Honório Rodrigues veria como confirmadora de sua tese sobre a história brasileira), há uma contradição jurídica, mas não política, com decisão de 2009 da mesma Corte. No julgamento da ADPF n. 130, que tinha como objeto a lei de imprensa, a lei n. 5250 de 1967, o Tribunal teve comportamento oposto: achou possível interpretar uma lei de mais de “trinta anos atrás” e considerou-a não recepcionada pela Constituição de 1988. É de se notar que o resultado não incomodou o setor de comunicações no Brasil, importantíssima parcela do braço civil da ditadura militar.
Resultado juridicamente semelhante, no caso da ADPF n. 153, pelo contrário, desagradaria não só os militares como seus apoiadores civis, que certamente não querem ver desvelada sua colaboração com o golpe e o regime dele decorrente. Pois a justiça de transição fundamenta-se no direito à verdade, que vem sendo ultrajado na militância revisionista das Forças Armadas e também – como se viu no julgamento desta ação – pelo Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República. (FERNANDES, Pádua. Nem justiça nem transição: a lei brasileira de anistia e o Supremo Tribunal Federal. Sopro, junho 2010. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/nemjustica.html)

A lei de anistia, de fato, só pode ser caracterizada como espécime da legalidade autoritária, incompatível com o Direito Internacional dos Direitos Humanos e com a própria Constituição de 1988.
Para discutir a questão proposta, creio que temos que voltar a Anthony Pereira e sua tese sobre a legalidade autoritária, que está diretamente ligada à questão da judicialização da repressão. Havendo um elevado grau de consenso entre militares e o aparelho judicial, a repressão poderá ser mais judicializada; quando esse consenso não se dá, ou os tribunais não se mostram tão manipuláveis, prevaleceria a violência extrajudicial e o ataque frontal à “legalidade tradicional”, ele argumenta em Political (in)justice (University of Pittsburgh Press, 2005): “When regimes resort to extrajudicial violence and an all-out assault on traditional legality, it is often because they have failed to manipulate the laws and courts to their advantage.” (p. 192).
No caso do Brasil, é deveras notável que a manipulação tenha sobrevivido à ditadura, e a lei de autoanistia tenha sido amparada pela corte máxima do que é formalmente um regime democrático.
A persistência da distorção jurídica criada pela legalidade autoritária parece sinalizar outras persistências, outras continuidades da ditadura. Por exemplo, se os torturadores da ditadura militar continuam protegidos, os de hoje também estão a salvo: mais de um relatório da Organização das Nações Unidas apontou o papel estratégico do Ministério Público e do Judiciário no Brasil em violar a Convenção da ONU contra a tortura e outros tratamentos de cruéis, bem como a lei nacional que tipifica esse crime.
Da última vez, o relator especial da ONU sobre a tortura, Juan Méndez, visitou o Brasil em agosto de 2015. Ainda não há relatório, que só deverá ficar pronto em março de 2016. No entanto, Méndez afirmou em 14 de agosto deste ano que:

Há um alto grau do uso da tortura na interrogação. Há um alto grau de impunidade pela tortura. Perguntamos em muitos estados sobre tortura e maus tratos nas cadeias, o número de casos levados à Justiça e o número de condenações por tortura. Em todos os estados, se havia casos, era possível contar nos dedos da mão, [havia] muitos poucos processos. Não vimos uma condenação sequer por tortura, nem por abuso de autoridade. (G1. Relator da ONU diz haver 'alto grau' de tortura a presos interrogados no Brasil, 14 de agosto de 2015, disponível em  http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/08/relator-da-onu-diz-haver-alto-grau-de-tortura-presos-interrogados-no-brasil1.html)

O mesmo relator ressaltou a continuidade em relação à ditadura militar dessas práticas e da impunidade:

domingo, 20 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXIV: Estratégias de justiça de transição na Espanha e na América do Sul

Como alguns dos outros textos que incluí neste blogue em dezembro de 2015, trago mais um comentário que fiz no fórum de um curso sobre justiça de transição, que está correndo mais ou menos. Nesse fórum, ainda participaram 13 dos 60 alunos, contando com quem se manifestou intempestivamente, mas o abandono parece estar crescendo.
A atividade era meio impossível: dever-se-ia fazer uma comparação entre Espanha, Uruguai, Chile, Peru no tocante às estratégias de justiça de transição. Um tema desse tipo daria um livro enorme, fiz apenas alguns apontamentos. Talvez algumas das referências que fiz sejam interessantes para quem não conhece o assunto.


Não creio que haja tantas semelhanças assim entre esses países da América do Sul e a Espanha. Há mais similaridades entre os Estados da América do Sul, que não passaram por uma ditadura fascista que durou décadas, que foi o que ocorreu na Espanha, cujo regime nasceu em outra época – a ascensão do nazifascismo na Europa.
No caso do Uruguai, temos um exemplo de confronto entre o político e o jurídico: o povo uruguaio decidiu em favor da lei de anistia, apesar de sua incompatibilidade com o direito internacional dos direitos humanos. Pablo Galain Palermo, no texto “Justicia de transición en Uruguay”, identifica que vigeu nesse país um modelo de esquecimento entre 1985 e 2000. Desse ano a 2005, um modelo de reconciliação, marcado pela Comissão para a paz, sem poder de investigação.
De 2005 até hoje, um período do modelo de persecução penal. A primeira decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos contrária à anistia no Uruguai é de 2011, e o parlamento uruguaio aprovou lei cumprindo a decisão, declarando que os crimes contra a humanidade eram imprescritíveis. Em 2013, porém, a Suprema Corte daquele país anulou dispositivos da lei em nome do predomínio do direito nacional e da irretroatividade da lei penal.
Este é um dos casos referidos no relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. No capítulo sobre a Sentença da Corte Interamericana no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil, lembra-se do importante caso Gelman vs. Uruguai na Corte Interamericana de Direitos Humanos:

Entre os pontos condenatórios, estavam estes: “Em um prazo razoável, o Estado deve conduzir e levar a termo eficazmente a investigação dos fatos do presente caso, a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e administrativas e aplicar as consequentes sanções que a lei preveja”, buscar e localizar María Claudia García Iruretagoyena ou os seus restos mortais, garantir que a lei de anistia não fosse um obstáculo para investigação e sanção dos responsáveis, por sua invalidade diante da Convenção Americana de Direitos Humanos, e a implementação de um programa permanente de direitos humanos para os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário.
A supervisão de cumprimento da sentença, em 20 de março de 2013, constatou que apenas alguns pontos haviam sido atendidos, e que o Judiciário uruguaio estava sendo um obstáculo para o cumprimento da sentença: “a decisão de 22 de fevereiro de 2013 da Suprema Corte de Justiça do Uruguai constitui um obstáculo para o plano acatamento da Sentença”. (http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_3_A-sentenca-da-Corte-Interamericana.pdf)

O grande escritor Juan Gelman, que teve de exilar-se durante a ditadura, perdeu o filho e a nora, que continuam desaparecidos. Ele morreu em 2014, e o Estado uruguaio ainda não cumpriu a sentença.
No Chile o processo de transição teve um grande impulso externo que foi a prisão de Pinochet no Reino Unido em razão do processo na Espanha, conduzido por Baltasar Garzón. Pouco antes, Jorge Correa Sutil podia escrever que “the most prominent political actors in Chile and, in many ways, Chilean society as a whole remain undecided about whether to punish past abuses” (no livro Transitional Justice and the Rule of Law in New Democracies, de 1997, organizado por A. James McDams).
Quando Juliana Passos de Castro e Manoel Severino Moraes de Almeida escreveram “Justiça transicional: o modelo chileno”, a presidenta do Chile ainda não havia anulado o decreto-lei de anistia, o que foi bem recebido. O texto destaca, entre as deficiências, a situação dos índios Mapuche, que continuam a sofrer intensa repressão do Estado (com a aplicação da lei antiterrorismo chilena contra eles), e as violências a mulheres e crianças.
O caso do Peru, embora a Jo-Marie Burt tenha ignorado o fato no artigo “Transitional Justice in Post-Conflict Peru: Progress and Setbacks in Accountability Efforts”, envolve e envergonha o Estado brasileiro, que deu apoio a Fujimori durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. A Comissão de Verdade e Reconciliação, apesar de seu extensivo trabalho – ela recebeu 17 mil depoimentos (Jaudel, Étienne. Justice sans châtiment. Paris: Odile Jacob, 2009) – teve suas recomendações ignoradas pelos governos, bem como a análise sobre as causas da violência (como lembra Audrey R. Chapman na obra coletiva Assessing the Impact of Transitional Justice, de 2009, organizada por ela, Merwe e Baxter).
“Justicia post-transicional en España”, de Clara Ramírez-Barat e Paloma Aguilar, trata da fundamental falta de justiça de transição na Espanha, que “ha venido ignorando toda uma serie de obligaciones hoy en día reconocidas por el derecho internacional, incluyendo la investigación, persecución, sanción y reparación de graves violaciones de derechos humanos”. Mesmo com a lei de memória histórica, de 2007, lamenta que “el Estado no haya asumido la exhumación de las fosas comunes, a pesar de que esta ha venido siendo una de las principales demandas de los colectivos de víctimas”. Como afirmaram José Antonio Martín Pallín e Rafael Escudero Alday em Derecho y nemoria histórica (Editorial Trotta, 2008, p. 10-11):

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXIII: Justiça de transição e lei de anistia

Outro texto que escrevi como participação em um fórum de um curso a distância sobre justiça de transição. Apesar do fraco aproveitamento, achei que dava para transcrever estas linhas por causa das referências.



A justiça de transição é um exemplo de questão jurídica cujo nome surge inicialmente no pensamento jurídico e que depois aparece em textos de caráter normativo. Como Marcelo Torelly afirma, em “Justiça de transição – origens e conceito”, ela apareceu “textualmente pela primeira vez em 1991, na escrita de Ruti Teitel – 2011”. Ela não surge, porém, de elucubrações de teóricos, mas da ação social sem a qual as transições não ocorreriam.
O direito internacional dos direitos humanos – e não só ele, mas também o direito internacional humanitário e o direito internacional penal – forneceu e fornece instrumentos para a justiça de transição, instrumentos cuja origem vem de contexto geopolítico muito diverso; Torelly, e não é o único a fazê-lo, afirma que “O período entre Nuremberg e meados dos anos 1970 é a primeira, caracterizada por um razoável nível de acordo no plano internacional, viabilizando-se que crimes ocorridos em Estados soberanos fossem processados penalmente por meio do Direito Internacional.” No entanto, a questão da transição política tal como vem sendo estudada desde os anos 1990 é posterior, e se apodera desses instrumentos que já existiam, suscitando a criação de novos parâmetros normativos no direito internacional, como o combate ao crime de desaparecimento forçado, para que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos teve uma contribuição especial.
Arnaldo Viera Sousa, “Nuremberg e os crimes contra a humanidade”, afirma que o Estatuto de Nurembergue trouxe “a inédita modalidade de crimes contra a humanidade”, que, em 1967, com a Resolução nº 2.338 (XII) da Assembleia Geral da ONU, foram considerados imprescritíveis, o que foi previsto no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Não se pode, é evidente, dizer que esses instrumentos estão consolidados: a recente, parcial e insatisfatória atuação do Tribunal Penal Internacional mostra que continuam existindo muitas incertezas no campo da teoria do direito e, especialmente, poucas condições na sociedade internacional para que ocorra a persecução penal sobre criminosos de guerra das grandes potências (por exemplo, os que bombardearam neste ano os Médicos sem Fronteiras).
Por outro lado, deve-se lembrar que a política para estrangeiros da ditadura militar não se norteava pelo direito internacional dos direitos humanos, de que o governo brasileiro tentou ficar afastado nesse período, e sim pela doutrina de segurança nacional, como já fizeram notar alguns, e Ana Luisa Zago reafirma em “Os Estrangeiros e a Ditadura Civil-Militar Brasileira”.
No entanto, qual seria o conceito de justiça de transição? Torelly adota um de natureza institucional, o da ONU. O texto de Flávia Piovesan, “Justiça de transição e o direito internacional dos direitos humanos”, não chega a uma definição:

À luz dos parâmetros protetivos mínimos estabelecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, destacam-se cinco direitos:
1. o direito a não ser submetido à tortura nem a desaparecimento forçado;
2.o direito à justiça (o direito à proteção judicial);
3. o direito à verdade;
4. o direito à prestação jurisdicional efetiva na hipótese de violação a direitos (direito a remédios efetivos); e
5. as garantias de não repetição decorrentes do dever do Estado de prevenir violações a direitos humanos, mediante reformas institucionais (sobretudo no aparato da segurança e da Justiça).

Os “instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos estabelecem um núcleo inderrogável de direitos”. Esse núcleo tampouco pode ser considerado uma definição de justiça de transição.
Kora Andrieu e Geoffroy Lauvau, organizadores da obra coletiva Quelle justice pour les peuples em transition? (Paris : PUPS, 2014), destacaram essa incerteza, que provém do fato de a justiça de transição estar em constante movimento, e que a concepção inicial, que era estritamente jurídica, ampliou-se além do que sugerem que os textos da bibliografia básica. “Hoje, esse alargamento da disciplina chega a integrar o desenvolvimento econômico e a redistribuição de terras, a justiça genérica, a luta anticorrupção, o direito dos refugiados, a construção de monumentos ou ainda a elaboração de novos manuais escolares.” (tradução nossa).
Esse alargamento faz com que a justiça de transição seja mais uma bandeira militante e uma oportunidade de trabalho para os que nela militam do que uma categoria científica, como afirma Sandrine Lefranc (“L’ordinaire d’une justice de transition”, no livro mencionado)?
Dividida entre penalização e conciliação, direito e política, a justiça de transição deve assumir um papel reconstrutivo para a implementação “do processo de democratização e de pacificação das sociedades, notadamente contribuindo a restabelecer a confiança dos cidadãos em relação a suas instituições” (cito Andrieu e Lauvau, tradução nossa).
Nesse nó cego, tanto teórico quanto prático, da democracia e da confiança nas instituições (que deveriam ser objeto de reflexão necessária e preliminar antes de se falar em transição política), parecem-me bastante insuficientes muitos dos autores brasileiros que escrevem sobre a justiça de transição, bem como o próprio Estado brasileiro.
Escrevi recentemente um artigo que tenta abordar alguns desses entraves no contexto brasileiro, que sairá no livro "Para a crítica do direito". Um dos problemas do relatório da Comissão Nacional da Verdade, que analisei, foi justamente não estar atualizado com os parâmetros contemporâneos do direito internacional dos direitos humanos, deixando, por exemplo, de considerar o genocídio como grave violação de direitos humanos na seção de ordem teórica do relatório.

Em relação aos crimes de lesa-humanidade, só faço notar que eles têm natureza prescritiva, isto é, são obrigatórios; o que eles não têm é um caráter prescritível, ou seja, não prescrevem.
Creio, assim como fez a Comissão Nacional da Verdade no seu relatório, que o problema não é realmente a lei de anistia, mas a interpretação equivocada que foi referendada no Supremo Tribunal Federal, e que ainda pode ser revista por esse tribunal, eis que os embargos de declaração ainda não foram julgados. Bastaria interpretá-la seguindo a orientação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso que você mencionou, afastando os efeitos da anistia em relação aos autores de crime contra a humanidade:

13. A CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia. Relativamente a esta recomendação – e apenas em relação a ela, em todo o rol de recomendações –, registre-se a posição divergente do conselheiro José Paulo Cavalcanti Filho, baseada nas mesmas razões que, em 29 de abril de 2010, levaram o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 153, com fundamento em cláusulas pétreas da Constituição brasileira, a recusar, por larga maioria (sete votos a dois), essa tese.
[...]
16. Em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento de participantes da Guerrilha do Araguaia durante as operações militares da década de 1970 (caso Gomes Lund e outros vs.Brasil). Sustentou que as disposições da Lei de Anistia de 1979 são manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e punição dos responsáveis.  Respaldou sua argumentação em sólida jurisprudência internacional, destacando também emblemáticas decisões judiciais que invalidaram leis de anistia na América Latina.

Trata-se do capítulo 18 do primeiro volume: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Capitulo%2018.pdf
[...] lembro dos debates da Lei de Anistia, publicados pelo próprio Congresso Nacional poucos anos depois, em 1982. No fim da votação, o então senador pelo Rio Grande do Sul Pedro Simon, afirmou que "o derrotado não foi o MDB, o vitorioso não foi o partido oficial; nem moralmente o derrotado foi o partido oficial, foi o Congresso Nacional.[...] toda a Nação sabe e a Imprensa noticiou que o Relator, que os líderes da ARENA, no Gabinete do Ministro da Justiça, estudaram emenda por emenda e decidiram lá o que seria votado aqui. E decidiram lá, Sr. Presidente, lá no Poder Executivo, o que podia ser votado aqui."
O conchavo foi divulgado pela imprensa na época, e é espantoso que ainda hoje os setores conservadores o neguem, afirmando que a Lei de Anistia é legítima.



quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXII: Repressão aos estudantes, ontem e hoje: 1970 e 2015


Uma das poucas coisas que unem os partidos políticos é o ataque à educação pública, isto é, à educação tout court. A progressiva destruição do Inep pelo governo federal, o estado pós-colapso das escolas do maior Estado da federação, governado pelo partido que faz oposição àquele que governa a União, o crescimento metastático dos conglomerados que exploram o ensino superior (superior apenas no nome, basta ver a qualidade de sua produção científica e políticas como a de degola de doutores), e mesmo episódios, tão ridículos quanto significativos, como os dos políticos que transitam entre governos de uma sigla (PT) ou de outra (PSDB), como é o caso de Chalita (ele mesmo um exemplo do baixo prestígio da educação, com sua histórica reciclagem de dissertação - vejam nesta ligação), no momento no PMDB, que foi secretário de Geraldo Alckmin e hoje é de Fernando Haddad, e é novamente investigado por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, peculato, corrupção ativa e passiva e fraude à licitação.
Há diversos outros exemplos desses ataques à educação e à pesquisa, em geral por meio de transferência do patrimônio público para grupos privados; aparentemente, é o que ocorrerá com o futuro Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, aprovado pelo Congresso no dia 9 de novembro, e que seguiu para sanção presidencial.
Os professores já se mostraram, diversas vezes, impotentes para lutar contra esse processo, e especialmente fracos para lutar contra as entidades que os representam e fazem o jogo dos governos. Faltava-lhes, creio, construir alianças com outros grupos, ou talvez, assumir que o principal sujeito do processo de educação é o aluno.
Conheci diversos colegas que recusavam essa noção (que me parece óbvia) a respeito do papel fundamental do estudante e, ainda mais, alunos que o recusavam, preferindo uma postura passiva, que não exigisse muito esforço nem levasse ao risco de aprender algo. No entanto, o levante dos estudantes dos colégios de São Paulo parece desmentir esses maus professores e maus alunos: a educação somente pode acontecer se os alunos se levam a sério como sujeitos ativos.
O governo do Estado de São Paulo resolveu fechar 93 escolas e os estudantes reagiram ocupando, no momento máximo do movimento, em torno de 200 delas (chegou a 219 nesta lista; vejam o mapa). Tecnicamente, os motivos do governo foram contestados mais de uma vez por especialistas (por exemplo, por pesquisadores da UABC e da Unicamp) e a tentativa autoritária de fechamento (eufemisticamente chamada de "reorganização escolar" pelo governador e por seus diversos assessores de imprensa nos grandes meios de comunicação). Os motivos "técnicos" eram negados também pelas salas superlotadas e pela evidência de que o governo iria simplesmente reduzir os recursos para a Educação pelo segundo ano consecutivo: http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,alckmin-reduz-participacao-da-educacao-no-orcamento-pelo-2-ano,10000003217
O governo, por sinal, sabia de antemão que estava batido no campo técnico e, de forma autoritária, decidiu atacar as próprias universidades estaduais, que não compactuaram com a "reorganização". Cito Luiz Carlos de Freitas em artigo de 3 de dezembro:
Sem consultar ninguém, inclusive o sistema público de Universidades que o próprio Estado paga, preferiu ouvir consultorias privadas pagas por empresários que ofereceram a ele receitas milagrosas já fracassadas em outras plagas, para ressuscitar o moribundo sistema educacional do Estado que segundo seu próprio Secretário de Educação, é uma vergonha.
O Secretário ao proferir sentença de morte para o sistema educacional que administra, esqueceu-se apenas de que é o seu partido, o PSDB, que está no poder há mais de 20 anos no Estado e que, a vergonha que ele sente, deve-se à política traçada por este mesmo partido ao longo de sua longeva presença no poder estadual.

As autoridades surpreenderam-se com a criativa reação dos estudantes e reagiram com suas armas habituais: não o diálogo, terreno em que o governo perderia e em que já foi derrotado, mas as bombas. Em seu procedimento usual com os problemas sociais, o governo do Estado fez com que a Secretaria de Segurança assumisse a questão; como na República Velha, a questão social é tratada como questão de polícia. Há diversas matérias sobre o espancamento de estudantes por policiais, violações do Estatuto da Criança e do Adolescente no uso de armas, spray de pimenta e algemas, menino de cueca carregado pela polícia e ameaçado para "sumir"; denúncia de racismo e assédio sexual; outros vídeos desconcertantes de agressões físicas aos alunos; estudantes apreendidos por filmarem na rua; uso de cassetete contra menores manifestantes pacíficos; uso de bombas de gás e outros instrumentos de repressão também no ato de 9 de dezembro, em que os estudantes fecharam a Paulista, tentaram seguir até a República e foram atingidos pela polícia etc. Ariel de Castro Alves afirmou que foram cometidos diversos crimes contra os estudantes. A Anistia Internacional, em 4 de dezembro, criticou a repressão às manifestações pacíficas e o uso excessivo de força contra os estudantes. Vejam nesta foto que a violência se dirigiu também contra os jornalistas: http://www.abraji.org.br/?id=90&id_noticia=3310

Apesar de tudo isso, e de escolas terem sido depredadas enquanto estavam ocupadas pela polícia (conforme indica este vídeo), o governador acaba de declarar, em 16 de dezembro, que pretende investigar e responsabilizar os estudantes.
Os alunos lograram se organizar apesar das entidades que supostamente os representam (vejam o non sense da UNE e da Ubes ao reivindicar para si a luta alheia; da Umes, ao querer a desocupação) e dos partidos que historicamente manipulam o movimento estudantil, como o PCdoB. A UNE, a Ubes, a Umes não têm a mesma liberdade que temos", constatou um dos líderes do movimento, Eudes Cássio da Silva Oliveira.

A foto ao lado, contra o que foi bem chamado de "desorganização" das escolas, tirei-a na Escola Estadual Fidelino Figueiredo. A do começo deste texto, de cartazes nos tapumes que cercam o Centro Cultural dos Correios.
A ocupação das escolas gerou cenas comoventes como as dos alunos pintando e lavando as instalações, descuidadas pelo poder público, descobrindo material escolar oculto pelos diretores, e tendo aulas e atividades extracurriculares de que foram impedidos de desfrutar. É o governador, não os jovens, quem "mata aula", segundo este brilhante cartaz: https://twitter.com/saturnoretorna/status/673231201478529024
Por sinal, recomendo o blogue do professor e escritor Rodrigo Ciríaco, que escreveu em 5 de novembro ("Quando as máscaras caem") sobre a conivência de certos diretores e professores com a política estadual:

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXI: Memória, justiça e movimentos sociais

Estou fazendo um curso a distância sobre justiça de transição. Embora meu aproveitamento não recomende os textos que lá escrevi para ninguém (consegui 6 pontos em 100), resolvi transcrevê-los aqui.
Só incluí textos dos fóruns; os trabalhos, apesar da extensão mínima permitida, talvez eu inclua depois.



Creio que o texto de Reyes Mate, "Memoria y justicia transicional", pode ajudar, bem como outras partes de sua obra. Aqui, citarei também Medianoche en la historia (Madrid: Editorial Trotta, 2006), que analisa as Teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin.
A relação entre justiça e memória pode ser concebida a partir de um prisma benjaminiano; o historiador benjaminiano chegaria a duas conclusões: "Em primeiro lugar, que, se o vencedor segue vencendo nem sequer os mortos estariam a salvo [...], porque o herdeiro do vencedor passado tratará de explorar ou ignorar o sentido da morte do morto. E, em segundo lugar, que a luta atual contra o inimigo presente possui força retroativa." (Medianoche em la historia, tradução nossa, p. 204).
Desse lado, a relação entre injustiça e esquecimento dar-se-ia nestas duas trincheiras: em relação aos mortos, aos desaparecidos e aos antigos militantes, pois ignorar suas histórias impossibilita fazer-lhes justiça, e no tocante às gerações atuais, esquecer as injustiças do passado significa cegar-nos para as do presente.
No texto da bibliografia básica, Reyes Mate critica tanto Hobbes quanto Hegel. A Hobbes, a entrega da violência ao Estado em troca de segurança. Quanto a Hegel, a ideia de que as vítimas não importam diante da marcha do progresso: “las víctimas son el precio del progreso y como este es indiscutible, las víctimas son insignificantes”. Nos dois casos, “El Estado, tanto en su versión hobbesiana como hegeliana, han invisibilizado a las víctimas.” (p. 164).
O esquecimento, portanto, significa a retirada dos corpos e dos desaparecimentos, dos lutos realizados e dos lutos suspensos, ao espaço público. Sem o espaço público, não é possível fazer justiça. Nesse ponto, podemos citar o artigo de Roberta Cunha de Oliveira, “Entre as geografias violadas e a resistência pelo testemunho, a necessária ruptura para a transição brasileira”, no ponto em que aborda a “escuta pública dos testemunhos”, que instaura na narrativa a “ruptura com a velha ordem autoritária que impôs o silenciamento e a desmemória. Nesse aspecto, o lugar público do testemunho instaura o ponto de partida para reconstruções de memórias coletivas por meio da transformação das histórias despedaçadas em histórias compartilhadas.” (p. 176).
Sob esse aspecto, pode-se vincular injustiça e esquecimento. Como exemplo disso no processo brasileiro de justiça de transição, podemos recordar a “Manifestação sobre o Relatório da Comissão Nacional da Verdade” que a Comissão Camponesa da Verdade publicou em 25 de novembro de 2014:
Contudo, apontamos nossa preocupação com a informação de que a CNV reconhecerá oficialmente apenas um número aproximado de 430 mortos/as e desaparecidos/as, referentes em sua quase totalidade a nomes e casos já reconhecidos.
A se confirmar esta informação, se consagra a exclusão da maioria de camponeses e camponesas mortos/as e desaparecidos/as das políticas de reconhecimento oficial, dificultando o acesso à justiça de transição.
Destaca-se que a Comissão Camponesa da Verdade entregou relatório circunstanciado de graves violações de direitos humanos dos camponeses como subsídios à CNV, incluindo uma lista de 1.196 camponeses e camponesas mortos/as e desaparecidos/as.
Reivindicamos o reconhecimento oficial de todos os camponeses mortos e desaparecidos no Relatório da CNV.
O trabalho de memória, no caso do Brasil, não está completo, e ele é necessário para que a dimensão da justiça seja estabelecida.

A segunda pergunta exige a comparação entre dois elementos diversos em natureza e finalidade: um movimento social e uma lei, uma lei que serviu para gerar um efeito diferente do que aquele movimento queria.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CX: Censura e gênero


Assim como Desarquivando o Brasil CIX, este é um texto que escrevi como participação em um fórum de um curso a distância sobre justiça de transição. Apesar do fraco aproveitamento no curso, achei que dava para aproveitar aqui estas linhas.

Muito interessante a primeira pergunta, que fugiu do óbvio. Seria previsível perguntar como ou se a “imprensa/grande mídia se constitui como um ator dos processos políticos no Brasil”. O que foge ao óbvio é indagar se convidamos todos a fazerem este debate.
Creio que as respostas podem ser muitas, e podem ser dar sob um prisma coletivo ou individual. Do ponto de vista coletivo, creio que ela deve ser negativa: o debate não logra prosperar. A esfera pública é largamente conformada pelos grandes veículos de comunicação, e os discursos críticos a esses meios são largamente bloqueados nela.
Um exemplo disso foi a própria recepção do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cercada de ambiguidades: o jornal Folha de S.Paulo, por exemplo, publicou na mesma semana textos em defesa da tortura. Dos veículos da grande imprensa impressa, o único que fez mea culpa no tocante ao apoio à ditadura militar foi O Globo em agosto de 2013. A autocrítica de "Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro" (http://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604) foi feita também na televisão. No entanto, como sustentei em outro lugar, essa limitada autocrítica não se traduziu em mudanças mais significativas da linha editorial do jornal, que continua a criminalizar os movimentos sociais e as manifestações populares, a manifestar-se contrariamente à democratização dos meios de comunicação no Brasil e, mais especificamente no tema da justiça de transição, não criou uma comissão da verdade própria, que muito teria a revelar; imagine-se como deveria ser a correspondência entre a família Marinho e os generais da ditadura. Certamente, se trazida a público, ela traria revelações sobre o período; o mesmo se pode conjecturar, pelo menos, em relação às famílias Frias e Mesquita.
Sob o prisma individual, não sei se os poucos textos que escrevi sobre o assunto puderam ajudar no debate. Um artigo que publiquei, “Os olhos vazados da liberdade: cultura autoritária no Brasil, censura judicial e Sistema Interamericano de Direitos Humanos” (https://idejust.files.wordpress.com/2010/04/ii-idejust-fernandes1.pdf), tentava tratar dos limites da liberdade de imprensa na ditadura militar e de como ela foi sustentada judicialmente. Destaco este trecho, sobre censura prévia:
A instituição jurídica da censura prévia deu-se por meio de uma pouco ortodoxa (segundo a hermenêutica jurídica) interpretação extensiva da restrição à liberdade de imprensa, vedada pelo direito constitucional vigente. Em uma tentativa de contestá-la judicialmente, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o partido de oposição no sistema bipartidário vigente na época, tentou arguir a inconstitucionalidade do Decreto-lei nº 1.077 de 26/10/1970, que instituía a censura prévia de livros e periódicos (não prevista na Constituição), representando ao Procurador-Geral da República, Xavier de Albuquerque. Ele, no entanto, arquivou a representação, considerando que a apresentação ao Supremo Tribunal Federal era ato discricionário seu. O Supremo Tribunal Federal, por maioria, acabou por concordar com a posição sumamente governista de Xavier de Albuquerque. Pouco depois, em 1972, ele foi indicado pelo General Médici para o Supremo Tribunal Federal, no qual se aposentou em 1983.
No entanto, esse artigo tratava pouco da colaboração dos grandes jornais com o governo ditatorial. Vê-se que, mesmo no caso da censura, jornais como O Estado de S.Paulo receberam um tratamento muito menos severo do que a imprensa alternativa de esquerda, às vezes chamada de “imprensa nanica”, que era a que detinha, em geral, posições mais radicais contra a ditadura. Um exemplo marcante foi o jornal Ex-, que foi fechado à força no fim de 1975 depois de ter sido o primeiro veículo de imprensa a denunciar que Vladimir Herzog tinha sido assassinado.
Outro exemplo: a longa denúncia das execuções extrajudiciais, desaparecimentos e torturas feita pelos presos políticos no Presídio Barro Branco, em São Paulo, em outubro de 1975. A lista de 233 nomes e/ou codinomes de torturadores somente foi publicada integralmente no Brasil por um veículo da imprensa de esquerda, e não pelos grandes jornais: o Em tempo, que publicou em 1978. Cito esta passagem de outro texto que escrevi (“A carta à OAB em 1975: os presos políticos denunciam a ditadura”: http://verdadeaberta.org/upload/010-bagulhao-caso-edgar.pdf)

Desarquivando o Brasil CIX: Memória e educação


Estou fazendo um curso a distância sobre justiça de transição. O curso já está indo para o final e estou com nota próxima de zero, provavelmente não serei aprovado. Decidi, porém, aproveitar os pequenos comentários que fiz no fórum para o blogue, eis que os textos aqui também são curtos.

Se a esfera pública corresponde (para falar em termos kantianos) a um pensar em conjunto, e ela é indispensável à democracia, e se o pensar em conjunto exige uma memória social, a memória e a verdade não podem deixar de ter um papel fundamental na construção de uma sociedade democrática. Halbwachs foi bastante citado aqui por conta da memória social; por isso, gostaria de lembrar outro autor, Jacques Le Goff, que, em “Histoire et mémoire”, aponta que a democratização da memória social é um imperativo prioritário para os “cientistas profissionais da memória”.
Essa afirmação torna-se mais fundamental para essa construção quando a matéria da memória e da verdade são o regime ditatorial e as graves violações de direitos humanos por ele cometidas ou permitidas, bem como a resistência contra a ditadura. Pode-se argumentar que as violências esquecidas repetem-se. As autoras Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Talita Tatiana Dias Rampin, do texto “As lutas populares por direitos e as (in)transições brasileiras no contexto latino-americano”, da bibliografia deste curso, citam o PNDH-3, de 2010, que apresenta estes números: “calcula-se que, pelo menos, 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses de 1964; cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de quatrocentos cidadãos foram mortos ou estão desaparecidos.”
Hoje, após o relatório da Comissão Nacional da Verdade, sabe-se que o número de índios mortos supera oito mil em apenas dez etnias, e que somam quase dois mil as mortes já verificadas no campo. O esquecimento da enorme violência da ditadura militar no campo e nas florestas reflete-se na continuidade de graves violações de direitos humanos nessas áreas, que geraram, recentemente, a CPI do Genocídio (um crime contra a humanidade) na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul.
Ademais, há os negadores do passado: em uma espécie do que alguns chamam de revisionismo (em relação aos crimes nazistas), há os que neguem a ocorrência de uma ditadura no passado recente, ou a existência de graves violações de direitos humanos. Sem exceção, esses negadores correspondem a adversários da democracia e, como tal, atacam a memória e a verdade. Entre as recomendações da CNV, há diversas que dizem respeito diretamente à memória. No capítulo 18 do tomo I do seu relatório, essa questão aparece desde a primeira, "Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985)".
A falta desse reconhecimento representa uma afronta à memória do país, e um desprezo aos valores democráticos. A vigésima oitava recomendação refere-se diretamente às dimensões arquitetônica e urbanística da memória, que são de vital importância:

28] Preservação da memória das graves violações de direitos humanos
48. Devem ser adotadas medidas para preservação da memória das graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV e, principalmente, da memória de todas as pessoas que foram vítimas dessas violações. Essas medidas devem ter por objetivo, entre outros: a) preservar, restaurar e promover o tombamento ou a criação de marcas de memória em imóveis urbanos ou rurais onde ocorreram graves violações de direitos humanos; b) instituir e instalar, em Brasília, um Museu da Memória.
49. Com a mesma finalidade de preservação da memória, a CNV propõe a revogação de medidas que, durante o período da ditadura militar, objetivaram homenagear autores das graves violações de direitos humanos. Entre outras, devem ser adotadas medidas visando:
a) cassar as honrarias que tenham sido concedidas a agentes públicos ou particulares associados a esse quadro de graves violações, como ocorreu com muitos dos agraciados com a Medalha do Pacificador;
b) promover a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas de qualquer natureza, sejam federais, estaduais ou municipais, que se refiram a agentes públicos ou a particulares que notoriamente tenham tido comprometimento com a prática de graves violações.

A criação desses memoriais não deve limitar-se a Brasília, naturalmente, devido à amplitude da questão (mais ampla do que os limites da nação, tendo em vista a colaboração internacional no golpe e na repressão continental) e às particularidades regionais de como se deu a repressão no território brasileiro. Seria importante que todos os Estados tivessem espaços como o Memorial da Resistência em São Paulo: local de exposição permanente sobre a ditadura, com exposições temporárias e espaços para palestras, bem como programas para professores de ensino fundamental e médio trabalharem com a história da ditadura.
A recomendação 26 nesse mesmo capítulo recomenda o prosseguimento das investigações em campos que a Comissão Nacional não logrou investigar a contento. No capítulo 5 do tomo II do relatório da CNV, a dimensão étnica e cultural da memória é contemplada, com a  recomendação da "Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo."
Uma comissão indígena da verdade, evidentemente, integrará índios, que detêm a memória e o saber sobre seus povos. Sem o reconhecimento dessa diversidade étnica e cultural do país, não se atenderá ao direito à memória e à verdade, tampouco serão realizados os princípios democráticos.
Este é apenas um dos campos em que se pode ver a imbricação entre memória, verdade e democracia.

No texto, da bibliografia deste curso, “As lutas populares por direitos e as (in)transições brasileiras no contexto latino-americano”, as autoras Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Talita Tatiana Dias Rampin afirmam que “a memória acaba por ter um papel duplo na ação educadora libertadora, pois é condição para a sua realização, bem como é fruto dessa prática que (re)constrói essa memória e difunde-a dentro da história em processo”.
Devo concordar com essa consideração, tendo em vista a) o papel estratégico que a ditadura viu no campo da educação; b) a importância dada à educação por comissões da verdade para o processo de justiça de transição. No primeiro ponto, podem-se citar a proibição da UNE, a reforma da educação, A não esclarecida morte de Anísio Teixeira, que não foi investigada pela CNV, as invasões da UnB, da PUC-SP e de outras instituições de ensino, o decreto-lei 477/1969, que previa como infrações, por exemplo, qualquer “paralisação de atividade escolar”, seja por professor, aluno funcionário “ou empregado de estabelecimento de ensino público ou particular”, bem como a prática “de atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não autorizados” e a participação nesses atos, o porte, a confecção, a impressão, a distribuição e a guarda de “material subversivo de qualquer natureza”, o uso de “dependência ou recinto para fins de subversão” e a prática de “ato contrário à moral e aos bons costumes” etc., com categorias vagas, indeterminadas, que permitissem a mais ampla arbitrariedade na perseguição de vozes discordantes.
Foi marcante desse período também a proibição do método de Paulo Freire e seu exílio e, em geral, das iniciativas de educação popular. A Comissão da Verdade da Bahia, por exemplo, constatou que “A repressão política recairá sobre seus setores progressistas, a ação católica e o MEB (Movimento de Educação de Base). Na juventude da AC, especialmente a JEC (Juventude Estudantil Católica) que reunia os secundaristas e a JUC (Juventude Universitária Católica) que reunia os universitários.” (Comissão Estadual da Verdade - BA. Relatório de atividades 2013/2014. p. 80).
Os estudantes tiveram um papel muito importante na luta contra a ditadura. É interessante ler, no livro de Rodrigo Patto Sá Motta, "As universidades e o regime militar" (Rio: Zahar, 2014), que em várias instituições os estudantes estavam à esquerda do corpo docente e pautavam as manifestações políticas. De acordo com a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva”, mais de um quarto dos mortos e desaparecidos políticos do Dossiê organizado pela Comissão de Familiares eram estudantes:

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O maior poeta da língua volta ao Brasil: livros contra a invasão do Iraque e o assassinato de transexuais


Uma grande notícia editorial, depois de tantos infortúnios que o ano trouxe também para este campo. Aquele que é, para mim e outros, o maior poeta vivo que escreve em nossa língua, o português Alberto Pimenta, tem no Brasil mais um volume de poesia publicado. A Chão da Feira reuniu dois de seus livros: Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta e Indulgência plenária, ambos publicados originalmente pela & etc, editora de Lisboa.
Pimenta possuía apenas um livro de poesia no Brasil, a antologia A encomenda do silêncio, que organizei em 2004. Os livros agora reunidos, que não têm paralelo na poesia contemporânea em nossa língua, são posteriores à antologia.
Tive a honra de escrever um prefácio para esta edição. Transcrevo breves trechos, que devem servir para apresentá-lo:
Alberto Pimenta nunca se acomodou. Poeta, performer e linguista nascido no Porto em 1937, seu primeiro livro, entre as dezenas que escreveu, foi O labirintodonte, de 1970, publicado enquanto ainda estava no exílio na Alemanha. Em 1960, assumiu cargo de Leitor de português, mantido pelo governo de Portugal na Universidade de Heidelberg. Por recusar-se a apoiar a criminosa guerra colonialista que a ditadura salazarista movia em África, foi demitido em 1963 – a Universidade alemã, porém, o contratou.
Ele já havia requerido cidadania alemã quando ocorreu a Revolução dos Cravos em 1974. Quando finalmente pôde voltar a Portugal, em 1977, lançou um dos grandes livros de poesia do século XX, Ascensão de dez gostos à boca (voltado contra, entre outros, os desgostos da guerra), realizou performances, programas de televisão e diversas outras atividades.
Eduardo Lourenço já chamou Pimenta de herdeiro de uma tradição contestatória; Rosa Maria Martelo vê que em sua obra a “sabotagem dos discursos dominantes é uma estratégia fundamental, já não tanto em função de um hermetismo que torne a poesia resistente em si mesma, mas pelo desvio, pela derivação crítica”. De fato, o caráter político de sua obra é bastante pronunciado, e os dois livros aqui publicados bem o exemplificam.
Em Pimenta temos uma poesia cuja matéria é a insubmissão em uma forma igualmente insubmissa. Podemos lembrar, rapidamente, da guerra colonialista (que quase não deixou marcas na poesia portuguesa) atacada desde O labirintodonte; as críticas à União Europeia (“IV REICH/ também conhecido cabalisticamente por/ EUROPA”), o combate ao imperialismo (como no premonitório poema que começa “sonhei/ que um fogo vindo do céu/ devastava a América.”), a oposição à pena de morte etc.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Poesia e tremor: Leonardo Gandolfi e a respiração como terremoto

O poeta português Miguel Cardoso, em Os engenhos necessários (Lisboa: & etc, 2014), entre outras passagens inquietantes, escreveu:
O que queria
o que queria mesmo
era meter agulhas na boca
riscar o disco rígido do riso
e com calma
rebentar escalas de richter
no meio das planícies

Também questão de sismografia íntima é Escala Richter (Rio de Janeiro: 7 letras, 2015), terceiro livro de poesia do poeta, professor e ensaísta brasileiro Leonardo Gandolfi. É até mesmo de esperar que poetas contemporâneos de países e continentes diferentes, mas afetados por crises com mais de uma semelhança (políticas de "austeridade", ascensão da direita, ataque aos serviços públicos, a catástrofe como princípio de governo) encontrem essa metáfora geológica para o que os aflige. No Brasil, pode-se lembrar, recentemente, de Fabio Weintraub, no seu último livro, Treme ainda (São Paulo: Editora 34, 2015), assim como Eduardo Jorge e sua casa a tremer em A casa elástica (Minisséries) (São Paulo: Lumme Editor, 2015): abalos simultaneamente individuais e coletivos.
Nos personagens - desajustados, desamparados, à espera de mais uma improvável chance - da poesia de Fabio Weintraub, temos antes a dimensão social desse tremor. Não em Gandolfi, em que a escala é predominantemente familiar e íntima, em atmosfera bastante diferente também de Eduardo Jorge, que atravessa no livro diferentes culturas e aeroportos e faz da casa, inesperadamente, um princípio da errância.
Em Gandolfi, a tensão entre "alta" cultura e cultura popular, e a dificuldade de comunicação, duas linhas tão presentes em A morte de Tony Bennett (São Paulo: Lumme Editor, 2010), são retomadas com intensidade em Escala Richter. A epígrafe, de Leonard Cohen, "There is a crack in everything", é seguida pela primeira parte, apropriadamente chamada de "Insert coin". A moeda que é inserida na fenda, ou, talvez, na falha que existe em tudo, sofre diversos giros ao ser lançada nesta seção.
Giros do passado familiar ("Seu pai trabalhava na Casa da Moeda/ [...]/ Ele mostra a data na moeda e diz/ abre a mão, segura, é da sua idade.", p. 12), distância de classe ("Ele vai pedir uns R$30,00./ Deixa pedir, a gente finge que não ouviu.", p. 16), a tensão com a cultura de massas ("[...] Você olha a data e os rostos/ cunhados de Didi Dedé Mussum Zacarias./ Se isso fosse mesmo sério, alguém perguntaria/ cara ou coroa?", p. 17), dificuldade de relacionamento ("e por ora transferi meus pertences/ [...]/ para a bolsa de Isolda, exceção feita / à moeda da sorte. [...]", p. 21).
Essa moeda do passado familiar e da cultura de massas (tratada com humor: Roberto Carlos está tão falecido quanto Manuel Bandeira neste livro) vai terminando seu giro com versos descritivamente cada vez mais curtos; vê-se (mas não a amada Isolda, que já saiu sem parecer atinar com as preocupações do narrador) o túmulo do "Mestre Athayde 1762-1830" na igreja em Mariana com uma "fenda na madeira por onde passariam dois dedos" (p. 26):
Cara no chão, a moeda com as efígies de Didi Dedé
Mussum Zacarias e a data de 1981 corre
lentamente pela madeira carcomida, campa 94
igreja de São Francisco Mariana, corre
e gira em círculos progressivamente menores
Didi Dedé Mussum Zacarias, campa 94
madeira carcomida, a moeda gira
progressivamente em círculos
menores em cujo centro
último e vertical está
a fresta por onde
Athayde ainda
respira.

Não sabemos se a moeda, ao finalmente cair, vai sufocar o que resta do fôlego do artista, ou se, em espécie de telefone do passado, ela logrará alguma espécie de comunicação quando passar pela fresta. Durante o livro, essa resolução nunca acontece, ficamos em suspenso. Nesse sentido, a fenda na madeira também é uma falha, uma fratura geológica, e o tremor não termina. Em poema da seção "Kansas", descreve-se a descida através das camadas da terra; "ferro e níquel" em estado líquido "[...] do km 3003/ até o 5240 [...]"; "Daí em diante dizem/ o melhor é ir devagar." (p. 42). Trata-se, abertamente, de uma poética.
A tensão entre cultura de massas e "alta" cultura (vejam a troca de Cecília Meireles pelos Trapalhões na página 15) perpassa as outras seções do livro: o Homero via Samuel Butler em "Piquenique", o filme "O mágico de Oz" em "Kansas" (publicado autonomamente pela mesma editora de Escala Richter na coleção Megamíni), o "Peter Pan" em "O crocodilo", o Drummond em "A canção de amor de J. Pinto Fernandes" (em que se parece ler um final não edificante para a célebre "Quadrilha").
Uma das originalidades de Gandolfi é fazer com que seus poemas nunca se esgotem na questão metalinguística, pois a todo tempo os poemas revelam perdas e problemas pessoais, especialmente a morte do amigo (nomeado como um autor brasileiro contemporâneo que se matou há poucos anos, Rodrigo de Souza Leão) em "Kansas". O filme "O mágico de Oz" é relido como uma obra sobre a morte, bem como "Blade Runner" e seus replicantes. Em nível coletivo, a morte do amigo é um dos sinais da crise de sua geração: "Como muitos de minha geração/ sou um ás em projetos a curtíssimo prazo." (p. 44).