O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXVI: "15 Filhos" e as gerações após a ditadura

Outro dos comentários que tive de escrever para o curso à distância sobre justiça de transição em que continuo matriculado. Neste caso, dever-se-ia escolher uma obra de arte e ainda ligá-la à questão da memória e da reparação "moral e simbólica" vista sob o prisma das gerações mais jovens. Escolhi "15 Filhos", documentário de 1996 em que Marta Nehring e Maria Oliveira, ambas filhas de perseguidos políticos, entrevistaram outros que viveram a mesma experiência.
Ademais, eu havia acabado de rever o filme, pois participara de uma banca de trabalho de fim de curso de uma orientanda de Eduardo Sterzi no IEL da Unicamp, Giovanna Santos Pereira, que o analisara. Na banca, expressei minha própria tese sobre a obra: suas fraquezas em termos de história e de política eram sintoma da incipiência da justiça de transição do Brasil naquele momento e, nesse sentido, ele era representativo da época.
Incluo aqui o comentário e a curtíssima tarefa.


I

Escolhi um curta-metragem, “15 Filhos”, de Maria Oliveira e Marta Nehring, de 1996. [...] farei um breve comentário, relacionando-o a questões dos textos e ao problema proposto.
Trata-se de um filme que apresenta trechos de depoimentos de filhos de perseguidos políticos, boa parte destes mortos ou desaparecidos. As próprias diretoras se enquadram nessa situação. Apenas um desses filhos tinha militância política, o então adolescente Ivan Seixas, preso com o pai, Joaquim Alencar de Seixas (assassinado no DOI-Codi/SP em 1971), ambos do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Os outros eram crianças. Não compreendiam bem o que ocorria, isso é repetido por alguns deles.
No entanto, as violências da época os atingiram profundamente. Francisco Guariba, por exemplo, diz que não tem lembranças da mãe, lembra das fotos, tinha uma “lembrança construída”. Tessa Lacerda, filha do desaparecido político Gildo Lacerda, da Ação Popular, diz: “Eu não sei nada. Eu não sei como meu pai era. Eu não sei... as coisas mais banais.”. Rosana Momente somente aos 18 anos foi saber que era filha do guerrilheiro Orlando Momente, militante do PCdoB desaparecido no Araguaia Trata-se da “infância roubada”; um dos filhos, Janaína Teles, caracterizou-a desta forma em depoimento à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, no livro da Comissão que tem como título essa mesma expressão:

Acho que a principal característica dessa perda parcial da infância se apresenta por meio de um sentimento profundo de que ela se manifestará, sempre. A recorrência dessa sensação gera um sentimento de impotência enorme. A melancolia envolve a vida e, embora ela prossiga e tenha momentos felizes, a sensação de cansaço parece uma herança muito pesada para “carregar”.[COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”. Infância Roubada. São Paulo, 2014, p. 264.]

A historiadora Janaína Teles foi levada ao DOI-Codi/SP com seu irmão Edson, quando ambos tinham, respectivamente, 5 e 4 anos, para ver seus pais, César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles (à época militantes do PCdoB), presos e torturados, de tal forma que as crianças não os reconheceram de pronto.
No caso da história desses filhos depoentes no documentário, vê-se que mais de uma vez experimentaram o que Goffman chamou de estigma, o estigma do comunista ou do subversivo, para si mesmo ou para os pais, e que Roberta Baggio caracteriza como reificação dos sobreviventes:



Ou seja, no caso brasileiro, a rotulação taxativa e generalizada de comunistas, dada a todos aqueles que resistiam contra os atos da ditadura, bem como a criminalização da resistência dos grupos que discordaram do golpe de Estado, permitiu a reificação, a perda da condição de humanidade e a não compreensão de seus atos como tentativas legítimas de estabelecimento de processos de interação social. [“Por que reparar? A Comissão de Anistia e as estratégias de potencialização do uso público da razão na construção de uma dimensão político-moral das reparações no Brasil”, de Roberta Baggio, texto da bibliografia deste curso.]

Essa experiência traumática levou-os ao silêncio muitas vezes. Para André Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog, assassinado no DOI-Codi/SP em 1975, “A dor era tão grande que eu não tinha como me abrir”. Janaína Teles, em certo momento do filme, diz que ela “achava que a sociedade me devia alguma coisa. Porque se não tivessem deixado o golpe acontecer, eu não tinha sofrido isso. [...] Eu quero vingar, quero punir, quero reparar a dor que me impuseram.”
Trata-se, pois, de uma exigência, destas gerações mais novas, de reparação (que é o tema deste módulo). Já que o “sentido constitucional da anistia no Brasil é o da reparação, da memória e da verdade” [Segundo texto de Eneá de Stutz e Almeida, “O Sentido da Anistia Política a partir da Constituição brasileira de 1988”, da bibliografia deste curso.], qual seria a reparação “moral e simbólicas” (tema deste fórum) destas vítimas Uma delas, que recupera a história das vítimas, lembra-a Vera Vital Brasil: a Comissão de Anistia, órgão ligado ao Ministério da Justiça, a partir de 2008, por meio das Caravanas da Anistia e do projeto Marcas da Memória, logrou lançar os “desafios de ampliar o direito à reparação e de mobilizar de igual maneira não só a palavra dos que sofreram em seus corpos a tortura, bem como o testemunho de familiares de mortos e desaparecidos.” [“Reparação psicológica: um trabalho em construção”, da bibliografia deste curso.], trazendo à arena pública a voz ou a história dos anistiados.
Afinal, se o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos já elaborou estudo em que o direito à reparação “pode ser um meio para garantir o direito à verdade em nível nacional” [ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS. Informe de la Oficina del Alto Comisariado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos. E/CN.4/2006/91. 9 jan. 2006, par. 31.], pode-se pensar também, por outro lado, que a própria verdade seja um meio de reparação. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, criada por meio da lei n. 9140/1995, além das reparações pecuniárias, também apresentava a reparação simbólica de reconhecer oficialmente a responsabilidade do Estado pelos mortos e desaparecidos políticos. No entanto, foi a lei n. 10559/2002 que “ampliou o escopo do programa de reparações no Brasil com a criação da Comissão de Anistia no Âmbito do Ministério da Justiça ”. [REDE LATINO-AMERICANA DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO. Relatório 2014, p. 15. Acesso em 19 dez. 2015. Disponível em < http://www.rlajt.com/public/arquivos/16b9d570.pdf>]
A própria Comissão de Anistia representa a chegada de uma nova geração, de “jovens bacharéis em Direito, com alta formação acadêmica, muitos deles professores universitários, que rapidamente preencheram os assentos da Comissão, em um processo de reformulação do órgão a partir de 2007” [Segundo João Baptista Alvares Rosito no texto “Memória, verdade e justiça à brasileira: uma análise antropológica da Comissão de Anistia”, da bibliografia deste curso.].
Essa política de reparação, evidentemente, não teria ocorrido sem os movimentos dos militantes políticos, e dos familiares de mortos e desaparecidos; como lembra Cecília MacDowell dos Santos: “embora a CA/MJ tenha sido criada em 2001 para promover políticas de reparação aos perseguidos políticos durante o regime militar, a sua atuação tornou-se mais eficaz e visível a partir de 2007, ou seja, depois de iniciadas as ações judiciais das famílias Teles e Merlino.” [“Justiça de Transição a partir das lutas sociais: o papel da mobilização do Direito”, da bibliografia deste curso.]
Tratou-se de duas ações cíveis para responsabilizar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que morreu em 2015, como torturador da Família Teles (os filhos Janaína e Édson são vistos no documentário “15 Filhos”) e assassino do jornalista e militante Luiz Eduardo Merlino. Outro meio de reparação, que chegou muito tardiamente, em 2013, e opera nos campos moral e simbólico, foi o das Clínicas do Testemunho. Marta Nehring, uma das diretoras de “15 Filhos”, viu de forma positiva o projeto:

Hoje, leio minha dor e minha tristeza no olhar das minhas filhas, toda vez que entro em erupção. Tanto, que não precisou de muito para convencê-las a participar comigo das Clínicas do Testemunho. E para mim é muito importante que elas ouçam os depoimentos de outras pessoas do grupo de terapia como forma delas me entenderem, da mesma forma como eu preciso do olhar delas para me entender. [COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”. Infância Roubada. São Paulo, 2014, p. 47.]

Os esculachos também são obra de uma geração mais nova, especialmente do Levante Popular da Juventude. Eles operam no campo moral e simbólico, uma vez que não se trata de sanções institucionais, e sim ações da sociedade civil para denunciar antigos colaboradores ou agentes da repressão, ainda hoje impunes. No entanto, podem ser considerados medidas de reparação? Concordo com Brígida Resende Rocha Mascarenhas e Aline Sueli de Salles Santos que os esculachos são importantes, no processo de construção social da justiça de transição, para a memória social:

Os escrachos não são apenas um mecanismo que promove a construção da memória social e desvela a verdade à comunidade, ele é uma ferramenta que pressiona pelo próprio direito à memória e à verdade, pelas políticas do não esquecimento (e aqui cabe pontuar, considerando a Lei de Anistia e a ADPF 153, que o esquecimento existente aos crimes da ditadura é fomentado pelo Estado), e pela justiça efetiva. [“Os esculachos como mecanismo do direito à memória e verdade dentro do contexto transicional brasileiro”, de Brígida Resende Rocha Mascarenhas e Aline Sueli de Salles Santos, trabalho apresentado na IX Reunião do Idejust (Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direitos e Justiça de Transição), no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, em 27 de março de 2015.]

No entanto, por essa mesma razão, penso que os esculachos ainda não são uma medida reparatória, mas antes uma reivindicação de justiça e de... reparação aos perseguidos políticos e seus familiares.No filme "15 Filhos", a discussão sobre a reparação aparece apenas de forma muito incipiente - a própria estratégia do esculacho,  que, na época (1996), já existia na Argentina, ainda não se punha no Brasil.
O campo das reparações morais e simbólicas é vasto, mas não dá conta das recomendações da Comissão Nacional da Verdade e de outras Comissões brasileiras; por exemplo, as medidas reparatórias para os povos indígenas que consistem na demarcação, desintrusão e recuperação ambiental das terras exigem políticas públicas do Poder executivo que se encontram quase paralisadas.
Faço notar que, neste caso, nem mesmo as reparações simbólicas e morais foram realizadas:

- Pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo esbulho das terras indígenas e pelas demais graves violações de direitos humanos ocorridas sob sua responsabilidade direta ou indireta no período investigado, visando a instauração de um marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos.
- Reconhecimento, pelos demais mecanismos e instâncias de justiça transicional do Estado brasileiro, de que a perseguição aos povos indígenas visando a colonização de suas terras durante o período investigado constituiu-se como crime de motivação política, por incidir sobre o próprio modo de ser indígena.[COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Brasília, volume II, p. 247.]

II




Obra: Documentário “15 Filhos”, de Marta Nehring e Maria de Oliveira.


O documentário é um curta-metragem de 1996, com pouco mais de 18 minutos, dirigido por Marta Nehring, filha de Norberto Nehring, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) assassinado em 1970; e Maria de Oliveira, filha dos ex-presos políticos Eleonora Menicucci e Ricardo Prata Soares, do Partido Operário Comunista (POC). O filme foi realizado a partir de depoimentos delas mesmas e de mais 13 filhos de perseguidos políticos durante a ditadura militar:

  • Ivan Seixas: filho de Joaquim Alencar de Seixas; ambos militavam no Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT); o pai foi assassinado no DOI-Codi/SP (Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna) em 1971;
  • João Carlos Grabois: filho de André Grabois, morto na Guerrilha do Araguaia em 1973, e da ex-presa política e Crimeia Alice Schmidt de Almeida, ambos do PCdoB (Partido Comunista do Brasil);
  • Gregório Gomes e Vladimir Gomes: filhos de Virgílio Gomes da Silva, militante da ALN morto na Operação Bandeirante em 1970, e da ex-presa política Ilda Martins da Silva;
  • Priscila Arantes: filha dos ex-presos políticos Aldo Arantes (Ação Popular–AP e PcdoB) e Maria Auxiliadora Arantes (AP);
  • Janaína Teles e Edson Teles: filhos de Cesar Teles e Maria Amélia de Almeida Teles, militantes do PCdoB presos e torturados;
  • Ernesto José Carvalho: filho do dirigente do MRT Devanir José de Carvalho, morto em 1971;
  • André Herzog: filho do jornalista Vladimir Herzog, morto no Doi-Codi/SP em 1975;
  • Francisco Guariba, filho de Heleny Guariba, militante da VPR desaparecida em 1971;
  • Telma Lucena e Denise Lucena: filhas de Antônio Raymundo de Lucena, metralhado na frente da própria casa em 1970 por militares, e Damaris Oliveira Lucena, ex-presa política, ambos da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR);
  • Tessa Lacerda: filha do desaparecido político Gildo Lacerda (AP);
  • Rosana Momente: filha de Orlando Momente, militante do PCdoB desaparecido na Guerrilha do Araguaia em 1973.
Em suas histórias, que mesclam perdas, exílio e violência, pode-se identificar o que Roberta Baggio escreve sobre as dificuldades de integração social dos perseguidos políticos, que “passaram por todas as formas de recusa do reconhecimento. [...] deixaram de estar em pé de igualdade nos processos de convívio, de integração e de participação social”[1]. O filme, pois, é um argumento favorável às Clínicas do Testemunho, “de atenção clínica psicológica a afetados/vítimas da repressão política estatal, sobreviventes e familiares”[2], projeto criado apenas em 2013, ligado à Comissão de Anistia.
Desses filhos, Ivan Seixas foi o único que militou durante a ditadura militar. Significativamente ele, que poderia ter colocado a política insurgente no âmago do filme, quase não tem espaço. O curta não explica a trajetória dos pais, tampouco a luta da esquerda armada.
As diretoras não eram militantes e só conseguiram entrar em contato com os outros filhos por meio de membros da Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos; Nehring chegou a dizer que foi apenas com o filme que “os ‘filhos’ descobriram que tinham uma experiência coletiva[3]”. Embora cumpra uma função catártica, ele não se comunica com o público que não conhece as histórias. Nesse sentido, falha no terreno da memória política.
Apesar da despolitização, o filme tem méritos. Ele veio pouco após a Lei nº 9.140, de 1995, que reconheceu a responsabilidade do Estado em 136 casos de mortos e desaparecidos e criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e da edição desse mesmo ano do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964 (os familiares continuavam “suas mobilizações sociais e jurídico-políticas”, como demonstram suas publicações)[4].
Retomava-se o processo de justiça de transição após as lutas pela democracia. Nesse sentido, “15 Filhos” é exemplar da incipiência, naquele momento, da memória social do combate insurgente contra a ditadura.


[1] “Por que reparar? A Comissão de Anistia e as estratégias de potencialização do uso público da razão na construção de uma dimensão político-moral das reparações no Brasil”, da bibliografia deste curso.
[2] “Reparação psicológica: um Projeto em Construção”, de Vera Vital Brasil, texto da bibliografia deste curso.
[3] COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”. Infância Roubada. São Paulo, 2014, p. 47.
[4] Cecília MacDowell dos Santos, Justiça de Transição a partir das lutas sociais: o papel da mobilização do Direito”, da bibliografia deste curso.

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