O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 4 de março de 2016

Poesia e tremor II: as Tróiades de Guilherme Gontijo Flores e o poeta como precipício

Escrevi há pouco tempo algumas considerações sobre o último livro de poesia de Leonardo Gandolfi, Escala Richter, e afirmei que "poetas contemporâneos de países e continentes diferentes, mas afetados por crises com mais de uma semelhança (políticas de 'austeridade', ascensão da direita, ataque aos serviços públicos, a catástrofe como princípio de governo) encontrem essa metáfora geológica para o que os aflige": o tremor de terra.
Outro caso sísmico, bem diverso do anterior, foi o livro/sítio Tróiades: remix para o próximo milênio, de Guilherme Gontijo Flores. O livro impresso, publicado pela Patuá em 2015, vem com 25 cartões que, numa face, apresentam o poema e, noutra, a imagem correspondente. Nas duas versões, temos seis temores/tremores diferentes; quase um quarto dos poemas do conjunto recebe este título:
Temor/Tremor

Trêmulos trêmulos
membros
levem meus rastros
para o servil
dia desta vida
O outro título com seis poemas é "Puerilia"; tratam, claro, de jovens ou crianças, mas sempre em relação à morte. Tanto no livro quanto no sítio as fotografias, escolhidas do Wikicommons, referem-se a massacres, guerra, morte (incluindo arte funerária), escravidão, tortura, sombras inquietantes, exatamente como os poemas. A música, que só pode ser ouvida no sítio na internet, foi retirada da mesma fonte. "Genocide - Symphonic Holocaust" (eu a desconhecia) foi escrita por Maurizio Bianchi, que compõe com ruídos. Embora curta, pode-se ouvi-la fascinado por horas, trata-se do tipo de peça que não tem começo ou fim determinados.
No tocante aos poemas, todos buscam "A coisa mais bela", título de dois dos poemas: "Feliz de quem morre em guerra/ e vê tudo consigo con/ sumir-se". A visão que nos oferecem revela as coisas em ruína e dilaceração.
Temor/Temor

Nosso presente por você

arrancar os cabelos
um golpe sobre o peito

que resta

Creio que muitos não terão reconhecido, nas citações, o método de composição; transcrevo o início e o fim de "Tombeau", e será logo descoberto:
Um anjo
tenta se afastar daquilo que olha
esbulhado boquiaberto
e de amplas asas

[...]

Preferia pousar
acordar os mortos
remontar os fragmentos
porém do paraíso sopra
um vendaval
que enlaça suas asas
e ele não sabe mais fechá-las
arrastado ao futuro
ele vai de costas
e a pilha de ruínas à sua frente
alcança o céu
Falta a tempestade do progresso, mas é fácil de ver que o poema vem diretamente do nono aforismo de "Sobre o conceito da história", de Walter Benjamin. Guilherme Gontijo Flores, que já é um dos maiores tradutores brasileiros (recomendo, além de seu Propércio, o que publica no blogue Escamandro), escreveu a partir de três tragédias, Hecuba e Troiades de Eurípides e Troades de Sêneca: trechos dessas peças "foram recortados, traduzidos livremente e remanejados e remontados", segundo o autor. O único texto posterior é o de Benjamin.
As indicações do colofão vão dos "3200 anos do incêndio de Troia" até "11 anos de conflito em Darfur", passando pelos "522 anos de extermínio indígena nas Américas", resumindo todas essas datas no "tempo indeterminado da escravização do homem pelo homem."
Que temporalidade se manifesta nesta obra? A guerra seria tão atemporal quanto um fenômeno geológico, o terremoto? Ademais, que tipo de atualidade teria um livro em que quase todos os textos têm fonte na Antiguidade e, nesse aspecto, entram em choque com boa parte das fotos?

Em uma resenha em que se indaga sobre a razão da atualidade da Ilíada de Homero (a propósito de War Music, de Christopher Logue, que não li), Jeffrey Brown aventa que "the idea of endless war is as fresh as this morning’s headline, the latest tweet" (por sinal, The New York Times tem colaborado com essa tese, com o apoio que deu à "guerra contra o terror" do governo dos EUA)  Logue escreveu um livro que parte de traduções para o inglês da Ilíada, cortando trechos, inventando algumas passagens.
Em sentido diferente daquela resenha, creio que que uma suposta atualidade do tema da guerra não garante ao poeta contemporâneo interesse nem mesmo contemporaneidade. Guilherme Gontijo Flores realiza, por meio das traduções e recortes (o remix), abalos na noção de autoria e de contemporâneo: ele faz poesia própria com material alheio e desgarra esse material dos seus tempos originais.
Creio que esses dois procedimentos são contemporâneos, pois tornam a catástrofe em poética: "Mas que membros nos deixa o precipício?", indaga em "Umbral"; "Ossos despedaçados/ soltaram-se na queda". 
Trata-se da operação de criar novos corpos, novos textos com os membros e ossos desgarrados daquelas tragédias, que caíram de dois precipícios: o do tempo, seguramente, e o da poética, que os rearranjou dessa forma. Nesse sentido, Guilherme Gontijo Flores aponta para o precipício como função ou operação do poeta, o que parece justificar a escolha da epígrafe: Heine (traduzido por André Vallias), "Não compreendemos as ruínas antes de nos tornarmos ruínas nós mesmos". O poema ergue-se do encontro, na ruína, do contemporâneo e da forma poética.


Faço ainda notar que Tróiades: remix para o próximo milênio é, como o autor avisa, a "segunda parte da tetralogia Todos os nomes que talvez tivéssemos, iniciada com em 2013 com o livro brasa enganosa."
Brasa enganosa (São Paulo: Patuá, 2013) é um livro diferente do de 2015: o passado também aparece nele, desde o título, que vem menos de Horácio do que da tradução que Gontijo Flores fez desse autor, com um trocadilho entre brasa e brisa diferentemente da tradução, no título do seu livro a brasa (já) é enganosa, e não (apenas) a brisa. Vejam-no explicar (a tradução, não o título) nesta palestra no I Colóquio de Poesia e Tradução na Casa Guilherme de Almeida em São Paulo, em 2015.
Com diversas referências a nomes de várias artes (Lewis Carroll, Arnold Schönberg, Godard, Horácio, Degas e muitos outros), e a presença de diversas formas, incluindo um divertido poema labiríntico ("labirinto"), se Brasa enganosa tem algo de exercício e bazar de poéticas (caráter comum em livros de estreia de poetas), a concentração de Tróiades não apresenta nada de gratuito. Fico a esperar os próximos dois volumes da tetralogia para entender o lugar desses dois livros já publicados no projeto de Guilherme Gontijo Flores, e o lugar desse autor, tão firmemente ancorado nos clássicos, na poesia mais contemporânea.

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