O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

O escritor anuncia

O escritor anuncia na tevê:
inventou o alfabeto.

A humanidade não estava preparada para isso,
mas este é o papel dos grandes artistas,
despreparar a humanidade.

Dizem que o ex-presidente dos EUA vai escrever uma autobiografia com o título “Dias Brancos na Casa”. Vou apresentar um projeto para lançar um livro com o mesmo título assinando com o nome dele. A esquerdalha não vai gostar, a editora reaça topa, ela sabe onde está o dinheiro. Não tem problema sair com nome de outro. Completei trinta mensagens neste mês. Em duas não mencionei meu nome, mas foi por motivos estilísticos.

Nas redes sociais, o escritor anuncia:
inventou o livro,
as vendas on line,
a lista de best-sellers.

Jamais a humanidade
estará à altura dessas notícias,
por isso os escritores criam o analfabetismo.

Lançamos “Dias Brancos na Casa”. Boa parte do público não sabe o que quer dizer pseudônimo e compra o livro, e a minoria que sabe compra por causa do escândalo. Minha literatura realizou a democracia, alcança a todos. Na minha modéstia autoral, permaneço anônimo. Escrevi vinte e oito textos sobre mim neste mês. Não assinei três por razões de suspense.

O escritor decreta
que inventou a sátira,
mas não quem caiu dentro dela.

Novamente reclama da tevê do silêncio absoluto sobre seu livro.
Vocês não sabiam que a escrita
nasceu para registrar operações comerciais?
Venda de carneiros e escravos?

Como é que foram censurar o livro? Gente ignorante em democracia e em literatura, que é feita para todos. A justiça se curvou ao imperialista ianque. O juiz ainda disse que o livro poderia causar um diferendo internacional entre Brasil e Estados Unidos se a editora do ex deles não conseguisse me proibir. Nenhum dos livros que assinei causou tanto escândalo, da próxima vez vou tentar fazer um relatório da vida sexual no Vaticano.

O escritor anuncia na publicidade:
o governo caiu,
meu livro era sobre o governo. Portanto...

A política não estava preparada para ouvir isso,
mas este é o papel dos grandes escritores:
não tolerar nada que os supere.

Consegui a liberação, mas a Justiça revelou que eu era o autor. Mais um escândalo, vai vender mais. Vou processar a Justiça por ter feito isso. Vocês todos no público têm o dever de esquecer que fui eu que escrevi, ouviram?! Sou contra a censura. Estou defendendo o direito ao anonimato neste mundo de tantas vigilâncias concretas e virtuais! E daí? O público não lê críticas. Eu sei que a capital dos Estados Unidos não é New York, e sim outro lugar. Os erros, as redundâncias, a monotonia são do pseudônimo, não são meus. Como assim o livro deixa os bombardeios pueris e até simpáticos? Não me pergunte onde fica o Pentágono! O livro é do pseudônimo, não falo mais disso.

O escritor revela à humanidade
que se alimenta;
para iluminá-la, abre sua cozinha
para programas culinários.

Ele assumiu a junk food,
mas não soube lidar com os ingredientes,
o livro provocou indigestão e desnutrição.

Não, eu sei que é genial. Eu me comparo mais com Fernando Pessoa, que marcou o século XX dizendo que o poeta é um fingidor e criando heterônimos. Eu marquei o século XXI reduzindo o presidente dos Estados Unidos a um mero pseudônimo meu, algo que os poetinhas esquerdistas que me criticam jamais conseguiram fazer. Nunca um escritor levou a literatura a um patamar tão alto. Meu próximo projeto intervirá ainda mais fortemente na geopolítica, que eu transformei num mero anexo do mercado editorial. Não sou de esquerda nem de direita, eu estou no topo.

Em Nova Iorque,
o escritor fará seu último anúncio;
escravos commodities? política junk food? analfabetismo best-seller?
os jornais também não sabem o que virá,
esperamos no salão a próxima obra,
até que se abre a porta, e uma bomba no Oriente Médio
devolve o salão aos elementos primevos.


2 comentários: