para Déborah e Eduardo, pelos alertas
I
em
país rico
cultura
se respira no ar
pedaços
de documentos de dois séculos
três
cinco
flutuam
sobre as casas e as ruas
ainda
quentes
cobrem
o país
II
ande
pelo mundo:
existe
apenas o limite entre o sangue e a cinza
toda
cinza tem o retrogosto de sangue
e
vice-versa
a
alternativa ao zero
remonta
a menos do que nada
entre
a cinza
(uma
gigantesca teia no céu
sem
origem ou centro)
e
o sangue
(nostálgica memória do coração)
o
fogo decidiu nosso lugar
III
Um só magistrado custa mais do que a manutenção do museu
portanto
ela não deve ser paga
as instituições precisam funcionar normalmente
Holocausto da memória nacional durante o governo da devastação
por conseguinte
presidente e ministros permanecem
as instituições precisam funcionar normalmente
Antes do auto-da-fé governos e empresas ignoraram o diretor do museu
por essa razão
ele merece baraço pregão cinzas
as instituições precisam funcionar normalmente
Vejam que o fogo queima e as cinzas caem
prova de que as instituições funcionam
vejam que os dentes quebram com o impacto do cassetete
prova da normalidade
tanto dos manifestantes
quanto do Estado
IV
Um só magistrado custa mais do que a manutenção do museu
portanto
ela não deve ser paga
as instituições precisam funcionar normalmente
Holocausto da memória nacional durante o governo da devastação
por conseguinte
presidente e ministros permanecem
as instituições precisam funcionar normalmente
Antes do auto-da-fé governos e empresas ignoraram o diretor do museu
por essa razão
ele merece baraço pregão cinzas
as instituições precisam funcionar normalmente
Vejam que o fogo queima e as cinzas caem
prova de que as instituições funcionam
vejam que os dentes quebram com o impacto do cassetete
prova da normalidade
tanto dos manifestantes
quanto do Estado
IV
havia
Estado demais
nas
goteiras ribeirinhas
nos
fios desencapados
nos
cortes orçamentários
Estado
demasiadamente
havia
no pó à espreita
nas
bolsas atrasadas
nas
portas que não abrirão
é
preciso acabar com a vontade de Estado
ela
ergueu estas paredes
cobriu-as
contra a lua e o sol
dando-lhes
a forma
para
abrigar outras formas
o
fogo
liberta
as formas de si mesmas
devolve
ao chão as paredes
e
já não sabemos
se
se trata de Estado demais
ou
da libertação
da livre iniciativa
da livre iniciativa
dos
estacionamentos
dos
centros comerciais
com
fast food redes de roupa telefonia chinelos diplomas universitários
dos
postos de gasolina
com
detectores de fumaça
que
antes não podiam erguer-se neste espaço
contaminado
pelo excessivo Estado
V
temer
o leitão
temer
o leitão
a
vara de porcos
possuída
por demônios
no lodo
a legião construiu
a legião construiu
o
palácio de governo
temer
o leitão
temer
o leitão
os
senhores do lodo
vomitam
restos humanos
para
aumentar seu reino
erguido
com os materiais
da
putrefação
temer o leitão
temer o leitão
o suíno ama pérolas
ouro prata diários oficiais
o ácido de seu estômago
corrói as pedras da memória
a dignidade das formas
temer
o leitão
temer
o leitão
ou
cortar-lhe a cabeça
mas
virando o rosto
para
não ver o sangue esguichando
da origem dos demônios
da origem dos demônios
esperando que alguém encaixe uma cabeça humana
no buraco da putrefação
para
que alguma boca ainda faça soar os guinchos
VI
cultura
no ar
fragmentos
de livros centenários
distribuem-se
sobre as varandas e as ruas
e
a catástrofe torna-se
a
única política cultural permitida
VII
a
certidão com duzentos anos
do
prédio que já tombou
agora
cai também
o
esqueleto que há onze milênios
pisou
o continente
é
agora desfeito pelos que pisam no país
o
fóssil de outra era geológica
entra
finalmente na atual
através
das chamas
vemos
que ele voa na fumaça
o
que lhe era impossível quando vivia
os insetos não identificados
jamais o serão
capturados por um predador
tão natural quanto o plástico e o hino nacional
os
olhos e a boca da máscara indígena
acordaram
quando a fumaça os atravessou
e
viram e cantaram com gemidos
o
incêndio autocelebrado
que
chamamos de país
VIII
Filho
da puta, quem mandou este convite? O museu? Sei que fica longe da zona nobre. O
diretor vai dar habeas corpus para mim? Os quadros valem
imunidade criminal? Esculturas garantem trancamento de inquéritos policiais?
Bem questionou o ministro do outro governo, nesse aspecto não o critico, se museu se relacionava à educação! Vitral
faz cair jatinho de político? Tudo inútil. Resumem-se a coisas decorativas, ao contrário de mim.
Carta de independência? Nesse museu? Não importa. Isso me cheira a coisa ultrapassada, não
acha? Não mando ministro não. Ausentar-me-ei da cerimônia. Pouco importa se são
cem anos.Já deu o que tinha de
dar. Não tem que manter isso aí não. Duzentos? Já? Nem notei que passou tanto tempo. Mas vou ficar. Nesse dia, sem viajar, vou ganhar muito
mais do que isso nas malas.
IX
insetos
devorados pelas chamas
as
plantas desnascidas pelo fogo
destruídos
os registros das vozes
dos
cantos dos povos já desaparecidos
os reinos africanos destronados
pela catástrofe desta república
tudo
o que
extinto
novamente deixou de ser
extinto
novamente deixou de ser
reencontra-se
na dimensão
da
floresta paralela ao mundo
ela
cresce
X
ouvem
como um hino
os
bilhetes de suicídio
pisam
como território
obras
em destroços
“o
site bloody coffe nada nos esconde: quatro
de dez dos melhores cafés bebem-se nos museus privados, por deus tenham modos, privatizem
todos!”
hasteiam
sua bandeira
em
plena fogueira
sua
magna carta
escrevem
com a fumaça
“só
nos museus privados vi múmias com esparadrapos modernos e brilhantes, esqueçam o que veio antes, privatizem os museus, o passado não é seu!”
amam
a ruína
porém
nada os incrimina:
quando
liberal,
o
extermínio é legal
“com
fogo não se brinca, quem não privatiza está queimando lucros, compromete o
futuro, deve continuar preso, assim como o tal do acervo, que, dizem os plebeus,
é coisa de museu, vendam sem demora enquanto não sai de moda”
XI
o
meteorito resistiu ao fogo
solitário
diante da catraca
estrangeiro
ao planeta
não
sucumbiu ao tempo histórico
isto
é
à
catástrofe
a catraca permite o ingresso da catástrofe
ou a forma oficial
XII
o
fogo cava um túmulo no ar
lá
ficarão os documentos
como os seres humanos