Ontem, no
I Seminário dos Pesquisadores de Pós-Doutorado em Teoria e História Literária do IEL-Unicamp, Mariana Ruggieri me perguntou da ficionalização da Comissão Nacional da Verdade. Não tive tempo de responder. É claro que o que já fiz (no meu livro de contos, no penúltimo de poesia, ou no romance que sairá mês que vem) não conta. Eu teria respondido lembrando da
Trilogia Infernal (São Paulo, Patuá, 2016-2018) de Micheliny Verunschk e de
Vícios de imanência ( São Paulo: Dobradura Editorial/Selo Sebastião Grifo, 2018), Paulo Ferraz.
No caso dos livros de Verunschk (composta de
Aqui, no coração do inferno,
O peso do coração de um homem e
O amor, esse obstáculo), a filha do delegado viaja para o Rio de Janeiro entregar documentos do seu pai, referente a mortos e desaparecidos da ditadura. Com isso, ela comprova que ele pertencia à cadeia de comando de crimes contra a humanidade que fundamentava aquele regime.
O delegado é encontrado morto pouco depois, sem que realmente se esclareça o que ocorreu, o que nos faz lembrar do que ocorreu com o tenente coronel reformado Paulo Malhães, que deu um importante depoimento à
Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro, depois à
Comissão Nacional. A polícia do Rio concluiu que teria ocorrido
latrocínio.
A
Trilogia não termina com o episódio da Comissão Nacional da Verdade, pois é necessário investigar uma morte que não entraria no relatório da CNV: a da mãe da protagonista; ela teria sido vítima de feminicídio
avant la lettre? Esse possível assassinato, apesar das condições políticas da sociedade patriarcal da época, não seria jamais elencado no relatório final daquela Comissão. No entanto, é para esse possível crime aparentemente desprezível para relatórios oficiais que o livro se encaminha, e ele somente poderá ser elucidado com a ajuda de uma senhora com Alzheimer, sua madrasta - uma alegoria da memória social brasileira.
Verunschk concentra-se, pois, no que não poderia ser admitido como grave violação de direitos humanos segundo os critérios da CNV. A personagem Laura, filha de um assassino e torturador, queria ser redimida de seu parentesco por meio de uma eventual atuação política da mãe. Cito o último volume,
O amor, esse obstáculo:
A inclusão do registro de minha mãe entre os documentos dos desaparecidos que papai tinha em seu poder abria para mim a possibilidade de que a morte dela também fosse uma morte política, que de alguma forma o xerife tenha decidido se livrar dela porque ela se tornara subversiva, uma inimiga do regime ao qual ele vendera sua alma. Filha de um covarde, eu alimentei a esperança de que a morte de minha mãe, o assassinato de que eu suspeitava, a revestisse de heroicidade e assim eu mesma pudesse ser resgatada.
Não havia essa heroicidade inutilmente buscada nas conversas com as amigas da mãe, ou na evocação de personagens históricas como Zuzu Angel, assassinada pelo governo brasileiro por denunciar o desaparecimento de seu filho pela ditadura; para sair desse jogo, Laura resolve colocar "a mulher no centro do labirinto":
Este não é o labirinto de Creta, cujo centro foi o Minotauro, digo em voz alta, contestando o poema de Borges. Aliás, não fui eu a colocar a mulher no centro do labirinto. Devo confessar que não sei como ela apareceu lá, e isso, eu sei, é um fiasco. Talvez o labirinto tenha sido erguido em torno dela, pedra por pedra, percurso por percurso em todas as suas cavidades e enganos, suas estruturas discrepantes.
Ela assume esta política de gênero feminista, e é feliz a escolha da imagem do labirinto: sua mãe chamava-se Ariadne. Com isso, podemos finalmente ter a revelação do que ocorreu com ela neste país canibal. Minotauro alimentava-se de humanos.
Dessa forma, com Micheliny Verunschk a CNV aparece, mas a protagonista vê-se obrigada a superar os critérios políticos e de gênero oficialmente adotados pela Comissão, e de que ela compartilhava, para poder superar o impasse em que se encontra e resolver sua identidade.
O livro de Paulo Ferraz apresenta uma primeira parte que se dedica às graves violações de direitos humanos que constituíram o Estado brasileiro, com ênfase na ditadura militar, embora crimes do Estado brasileiro de outras épocas e do Império Português também se façam presentes. Há "poemas contra" Médici, Cabo Anselmo, Filinto Müller e Erasmo Dias, por exemplo. Há "poemas para", entre outros, Maria Bonita e o povo Panará. Ele não tematiza diretamente a CNV, embora se possa imaginar que os poemas da primeira seção tenham sido escritos, com maior probabilidade, depois da Comissão, e se possa imaginar que eles possam ter alguma inspiração no Relatório de 2014.
O poema contra o DOPS, "PARA NÃO ESQUECER N. 11", parte do procedimento do
ready-made e de pesquisa documental. O poema se baseia no prontuário do advogado e intelectual comunista Paulo Torres (encontrei-o, inesperadamente,
nesta ligação). Um dos documentos de que o autor se apropria é esta relação de bens apreendidos, procedimento comum nas prisões do DEOPS-SP:
Paulo Ferraz escreve a informação policial incluindo a lista dos bens apreendidos e incluiu a peça
Andaime e o livro
Poemas proletários, classificados como propaganda subversiva; "jornais velhos que dão pistas de que o Dr. Paulo Torres esteve com bolcheviques em Moscou, caiu cativos de revoltosos na síria e foi dado como morto em Marrocos." Sem mais informações, e com possibilidade de que "tenha mesmo morrido no Marrocos", a autoridade policial conclui a informação com "repressão à vadiagem!"
De fato, a edição de
Poemas proletários, publicado pela Unitas, como versos como "nós somos a força,/ nós produzimos tudo/ não temos nada./ somos as abelhas/ que produzem mel/ e morrem de fome.", foi apreendida pela polícia.
Andaime, apesar de ter sido suavizada por Jaime Costa, que a encenou (o que gerou conflito com o autor), também foi proibida. Nos dois casos, trata-se de obras recebidas como pioneiras. Esta notícia de 1931, do
Diário da Noite, afirma que a peça inauguraria o teatro social no Brasil:
Esta notícia também consta do prontuário. No Arquivo Nacional, no Fundo do DOPS de Pernambuco, achei esta resenha ao livro de poemas, de Ernani Vieira, no jornal
Guajarina, de 1931, que exalta o livro como um "álbum de fotografias", com que ficou "muito bem impressionado", embora confesse que os poemas "não têm forma; têm fundo":
Sua produção artística levou-o a ser perseguido e vigiado durante a ditadura de Vargas. Vejam este outro documento do prontuário, datado de 1939, que considera que o "grau de periculosidade" do "autor de trabalhos vários, todos eles de tendências absolutamente comunistas, deve estar em constante observação Policial":
Com alguns réus processados pelo Tribunal de Segurança Nacional da Era Vargas, foram encontrados exemplares de
Poemas proletários, que era uma literatura que servia de prova de subversão contra o leitor nesses tempos de criminalização da arte e do pensamento. No Arquivo Nacional encontram-se alguns desses processos. Nesta Apelação 752 de Davino Francisco dos Santos e outro, autuada em 1940, há cópia do inquérito, que envolveu Torres; ele foi absolvido, apesar da apreensão dos seus dois exemplares do livro, pois as autoridades concluíram que ele estava afastado do Partido Comunista e da militância:
Apesar da singeleza dos versos, eles influenciaram alguém como o jovem José Paulo Paes, leio neste artigo de Maurício Guilherme Silva Júnior, "
José Paulo Paes e a inversão do hipertexo".
Não há nada, porém, singelo nos procedimentos de Paulo Ferraz, especialmente na ironia de terminar o poema com a referência policial à vadiagem, embora essas obras tratem do mundo dos trabalhadores. O trabalhador que se organiza e age politicamente é o "vadio" para as instituições. A questão social é uma questão para a polícia. O poeta, ao se debruçar criticamente sobre os documentos policiais do passado e apresentá-los a contrapelo, emula procedimentos de uma comissão da verdade, que também deve ler criticamente documentos. Como a literatura é muito mais livre do que o relatório burocrático, Paulo Ferraz logra fazê-lo assumindo sarcasticamente a voz do repressor, o que não seria cabível, tampouco inteligível, para uma Comissão oficial: pensar-se-ia que aquela voz teria sido adotada, e não satirizada.
Mariana Ruggieri fez aquela indagação porque lembrei que o primeiro romance de Bernardo Kucinski,
K., é anterior à instituição da CNV. A Expressão Popular publicou-o em 2011. Em 2013, ele singrou para a extinta Cosac Naify (a Comissão Nacional da Verdade estava em funcionamento) e, em 2016, quase dois anos após o relatório final da CNV, a Companhia das Letras passou a editá-lo no Brasil. O livro foi traduzido para o alemão, o catalão e o espanhol (em 2013), o inglês (2015), o francês e o italiano (2016).
Trata-se de um exemplo em que a obra literária serviu para a construção do processo de justiça de transição. Seu impacto como ato de memória serviu para a retomada do caso. A Universidade de São Paulo, em colaboração com a repressão política, havia demitido Ana Rosa Kucinski por abandono de emprego depois de o Estado brasileiro tê-la desaparecido, e nunca havia revisto essa medida. A lei federal n. 9140 de 1995, a Lei dos Desaparecidos, havia reconhecido essa condição dela e de seu marido, Wilson Silva, igualmente desaparecido. Na Universidade, no entanto, a cumplicidade com a ditadura permanecia.
Na audiência pública de 17 de outubro de 2012 da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", ocorreu a assinatura do termo de cooperação entre essa Comissão e a Nacional, e o caso de Ana Rosa Kucinski e de Wilson Silva foi tratado. Ambos eram militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN).
No perfil da antiga professora da Faculdade de Química elaborado pela Comissão estadual, pode-se tanto ler a transcrição da audiência:
No entanto na USP a versão oficial ainda não é a do desaparecimento forçado de Ana Rosa. Um processo instaurado pela Reitoria em 1974 sob número 174899 pleiteava a recisão do vínculo funcional de Ana Rosa por abandono de função, hipótese prevista no Inciso 4º do Artigo 254 do regime da USP. Recorda-se que 19 meses do desaparecimento de Ana Rosa a Congregação do Instituto de Química reuniu-se em sua 46ª reunião mensal no dia 23 de outubro de 1995. Na pauta encontrava-se o pedido da Reitoria de análise da situação de Ana Rosa, tendo sido aprovada a demissão da Professora decorrente do ‘abandono de função’ por 13 favoráveis e dois votos em branco. Dois dias depois a demissão da Professora foi publicada no Diário Oficial por ato do Governo do Estado, Paulo Egídio Martins, conforme relato de seu irmão Bernardo Kucinski no livro K, editora Expressão Popular, São Paulo 2012.
O romance de Kucinski é tratado como
fonte da Comissão. Nessa ocasião, o livro foi ainda exposto na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, onde ela funcionava. Adriano Diogo, presidente, da Comissão "Rubens Paiva", avisou na audiência: "Eu só queria falar uma coisa, a editora que fez o livro do Professor Bernardo Kucinski com a vida da Ana Rosa mandou cerca de 20 exemplares que estão com a exposição aqui no plenário, aqui no auditório tem o livro do Bernardo Kucinski, o K, que conta a história de toda a família Kucinski."
Rosa Cardoso, a comissionária da CNV presente na audiência, "endossou ofício da Comissão Estadual da Verdade em que esta pede que a Congregação do Instituto de Química da USP e o reitor daquela universidade revejam decisão da congregação, de outubro 1975, em que foi aprovada a demissão da professora Ana Rosa Kucinski".
Eu assisti a outra audiência pública, de 29 de outubro de 2013, da mesma Comissão, no espaço dos estudantes de Química, o Queijinho. Eu não trabalhava para ela ainda. A audiência foi gravada e Rosa Cardoso, comissionária da Comissão Nacional da Verdade, também participou.
Fiz um relato do evento neste blogue, lembrando que "Uma aluna que pertencia ao C.A. explicou que o diretor do Instituto havia aparecido no queijinho, mas havia deixado o local cinco minutos antes de os trabalhos começarem."
Não só a direção da Faculdade de Química se ausentou, como a Comissão da Verdade da USP nada fez. Ela somente passou a agir depois dessas ações da Comissão Estadual e da Nacional.
No relatório da Comissão da USP, publicado só tempos depois de sua extinção oficial, temos a reprodução dos documentos da década de 1970, mas nada sobre o que ocorreu no século XXI, um verdadeiro salto mortal histórico. Sobre o que ocorreu em tempos mais recentes, lemos apenas, no volume III, que "Em 2014, após diligências da Comissão da Verdade da USP, o Instituto de Química se dispôs, por unanimidade de votos dos membros da Congregação, a anular o ato anterior de rescisão de contrato por abandono de cargo e pedir desculpas formais à família da professora."
Tratei disso em outra nota deste blogue:
https://opalcoeomundo.blogspot.com/2018/04/desarquivando-o-brasil-cxliv-o.html.
No relatório, não é apresentada a verdade sobre as ações necessárias para que a Universidade deixasse o seu posicionamento de cumplicidade com a ditadura; são silenciadas as ações daquelas outras Comissões e de Bernardo Kucinski, incluindo seu livro
K.; nesse caso, temos um exemplo do uso dos relatórios como forma de silenciamento. Felizmente temos, para lutar contra essas formas de censura burocrática, entre outras armas, a literatura.
O que me faz voltar a Paulo Torres: em 1933, ele enviou aos jornais uma carta ao "Clube dos Artistas Modernos", de São Paulo, exigindo ser retirado da lista de sócios, pois "infelizmente" não acreditava em artistas, declarando-se "inimigo de classe dos srs.": "Prefiro continuar com os meus humildes camaradas de sofrimento. Com os que têm o hábito do trabalho."
A tese em História Social de William Golino,
Retrato pictórico moderno: suas formas e significados, defendida na PUC-SP em 2010,
reproduz em anexo a carta e a resposta do Clube, que zombou de Torres afirmando tê-lo encontrado dias depois no Jóquei Clube com a "burguesia endinheirada".
Em resposta dada ao
Correio da Noite, Paulo Torres pôde esclarecer o sentido de suas declarações: "Como já tive ocasião de observar, não divido os homens em artistas e não artistas. Divido os elementos da atual sociedade em duas classes: a dos exploradores e a dos explorados. Esse negócio de artista é coisa muito velha, muito preciosa, muito ridícula, e, por isso mesmo, profundamente inútil..." Obras como a de Kucinski evidenciam o caráter velho e engessado dessa insuficiente dialética.