O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Desarquivando o Brasil CLXXIV: Alfredo Bosi (1936-2021)

Alfredo Bosi morreu na data em que escrevo esta nota, depois de dias internado por causa de covid-19.  Li em seguida uma nota em jornal que o caracterizava como "crítico literário". A qualificação, em princípio reducionista, e dada por um periódico em que ele publicou mais de um texto, fez-me repensar o que li de sua vasta obra.
A literatura está realmente no centro de suas preocupações. No entanto, dela Alfredo Bosi partia para tantas direções que seria mais adequado qualificá-lo como intérprete do Brasil, como outros intelectuais de sua geração e das que o antecederam.
Neste documento confidencial de 1982 do Serviço Nacional de Informações (SNI), vejam que o curso que ele ajudou a criar para os Dominicanos em São Paulo correspondia a uma "Introdução à realidade brasileira", e não à literatura. 


Este documento, assim como os outros aqui parcialmente reproduzidos, com uma exceção indicada, está no Fundo do SNI, no Arquivo Nacional. Trata-se da ditadura militar, época de cultura vigiada. Os Dominicanos, por sinal, tinham uma história recente de confronto com o regime; o caso mais extremo foi o de Frei Tito, que, sequestrado, torturado e banido, suicidou-se no exílio em 1974.
Mesmo um livro aparentemente especializado no campo literário, a História concisa da literatura brasileira (depois do qual nenhuma obra análoga parece ter logrado sucesso), que todos estudantes de
Letras leem, aponta para essa vocação de intervenção na realidade, ou, ao menos, de provocação, que não poderiam ter sido escritas sem o vasto conhecimento que ele detinha das chamadas Humanidades. Tenho a primeira edição, de 1970, que ganhei no milênio passado, e a mais nova. O livro é largamente o mesmo, porém: sua visão já estava consolidada.

Ademais, como se sabe, a literatura e os escritores podem atrair a atenção dos donos do poder, como neste exemplo:



Trata-se de documento do SNI sobre o II Congresso Brasileiro dos Escritores, que havia ocorrido entre 17 e 21 de abril em 1985, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo. Era uma iniciativa da União Brasileira dos Escritores (UBE), então presidida por Fábio Lucas; segundo a espionagem, foi um sucesso de público, com 600 pessoas presentes. O presidente da república, antigo presidente do partido de sustentação política da ditadura, e que começava seu governo, tutelado pelos militares, estava presente. Imagino que a síntese da fala de Bosi seja fiel, pois mais de uma vez ele tratou da questão da desigualdade social do país como um elemento que se impunha ao escritor. Bosi veio dos estudos da literatura italiana, que ele nunca abandonou, mas decidiu prestar a maior parte de seus serviços à cultura brasileira.


Em que medida esses esforços eram apreciados? Alfredo Bosi sempre foi um homem discreto e nunca se deixou apanhar nos seus contatos com a esquerda clandestina (espero que seu neto historiador, Tiago Bosi Concagh, escreva mais detidamente a respeito dessas histórias dele e de Ecléa Bosi). No entanto... Durante o governo do ditador general Figueiredo, militares buscaram pretextos para a permanência das estruturas de repressão e vigilância (um dos exemplos que mostram como é equivocada a noção de ditadura "civil militar", ou "empresarial militar', ou "civil empresarial", como já vi num curso da UnB). Para tanto, realizaram atentados contra instituições civis como a OAB, bancas de jornal, pessoas identificadas com a militância democrática e tentaram realizar um massacre para jogar a culpa na esquerda (o Riocentro, uma tentativa malograda de assassinato coletivo pelas Forças Armadas, jamais punida).
O atentado do Riocentro seria atribuído a uma organização de esquerda já extinta. O documento acima, guardado no fundo do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), mostra os militares olhando para o passado da guerrilha, mais uma vez, para realizar uma analogia ousada: a estratégia dos revolucionários cubanos ficou conhecida como "foquismo", por causa dos focos de guerrilha que serviram para levantar as massas e tomar o poder. O "foquismo intelectual", categoria criada pela inteligência militar, corresponderia à atuação dos intelectuais para criticar o regime vigente e, claro, implantar o socialismo. Focos, pois teriam um efeito "multiplicador". A anotação manuscrita, "subversão do livro didático", é esclarecedora sobre esse ponto. Décadas depois, nos dias de hoje, com a volta dos militares ao poder, a preocupação em retirar pontos sobre diversidade e direitos humanos nos programas de livros didáticos talvez indique que as Forças Armadas pouco mudaram nessa visão autoritária da educação.
Entre esses "multiplicadores", estariam o casal Ecléa (certamente por causa de seu trabalho mundialmente pioneiro sobre memória no campo da Psicologia Social) e Alfredo Bosi, bem como outros nomes, que incluíam intelectuais que tinham sido cassados na década de 1960, como Florestan Fernandes e Paulo Freire:


Veja-se que é mais um documento que expressa o incômodo de setores militares com os efeitos da Lei de Anistia, que havia permitido que alguns desses nomes citados (e tantos outros) voltassem ao país.
Tanto Ecléa quanto Alfredo Bosi eram intelectuais de esquerda, ligados ao catolicismo progressista. É bom lembrar disso, neste momento em que tantas igrejas cristãs se aliaram ao fascismo no Brasil, e que a destruição do Estado laico esteja sendo usada para a realização do genocídio com o covid-19 - razão da morte deste intelectual em plena eugenia bolsonarista, de morte daqueles que "deveriam morrer", dos velhos e fracos (embora cada vez mais jovens morram...), daqueles que não têm "histórico de atleta" ou não poderão pular a fila da vacinação com a bênção plutocrata do Congresso Nacional.
Em Literatura e resistência, livro de 2002, Alfredo Bosi falou um pouco da própria experiência com jovens em Osasco e a leitura conjunta de Vidas secas, de Graciliano Ramos, uma "revelação": "Aqueles jovens apartados do mundo da cultura letrada afinal reconheciam-se nas personagens que estavam servindo de tema para essa mesma cultura nas faculdades de Letras!"
Era o ano de 1972. Des anos depois, ele fala da "ascensão das oposições sindicais", que "criava um clima favorável à retomada de um projeto que já vinha resistindo, de forma intermitente e subterrânea, desde o golpe de 64", desta vez com a "tônica" "dada ao ideal de uma construção comunitária do pensamento e da prática".
Reflexão como resistência: homenagem a Alfredo Bosi (organizado por Augusto Massi, Erwin Torralbo Gimenez, Marcus Vinicus Mazzari e Murilo Marcondes de Moura) deveria ter ficado pronto no aniversário de oitenta anos, mas atrasou dois anos e, por isso, saiu em 2018, após a morte de Ecléa Bosi. Nele, republicou-se um texto de Paulo de Salles Oliveira com trechos de depoimentos desses moradores de Osasco, que lembram das aulas do professor, "O testemunho de velhos militantes: Singela homenagem a Alfredo Bosi". O autor afirma que "a aproximação de Alfredo nunca foi fruto de demagogia ou proselitismo sectário, mas de uma adesão verdadeira, densa e sem fim à luta dos oprimidos".
Trata-se realmente de uma preocupação que o guiava. Em 1982, a revista Novos Estudos do Cebrap publicou um número com um dossiê sobre "Os pobres na literatura brasileira", coordenado por Roberto Schwarz. Ela foi parar no SNI, não especificamente por causa do dossiê, mas porque a produção do Cebrap era monitorada, tendo em vista sua composição de esquerda e crítica à ditadura. Bosi publicou justamente o texto "Sobre Vidas secas", que termina com esta nota sobre a simpatia intelectual entre o narrador e o vaqueiro, inobstante a diferença de classe, em razão da consciência dessa divisão social:


Creio ver nessa nota algo do sentimento pessoal de Alfredo Bosi. Trata-se de uma época em que ele participa de vários protestos, como este, contra o assassinato da militante argentina Ana Maria Martinez, do Partido Socialista dos Trabalhadores, em 17 de fevereiro de 1982 pela ditadura daquele país. Em São Paulo, houve uma manifestação diante do consulado argentino em 2 de março daquele ano; a primeira assinatura é de Lula, na qualidade de presidente do Partido dos Trabalhadores:





Alfredo Bosi também o assinou. O documento do SNI que analisou o protesto concluiu, entre outras coisas, que havia um "crescente envolvimento" do PT "com a ideologia comunista". Bosi não recebe destaque nele, contudo, e sim os nomes que exerciam militância no sistema político. Ele não tomou esse papel para si, mas o de professor e escritor.
Nessa atuação de décadas, ele foi importante para os milhares que assistiram a suas aulas, e o número maior do que leram seus escritos. Estou nesta última categoria. Dialética da colonização serviu de fundamento para minha tese (na área de Filosofia e Teoria Geral do Direito, apesar daqueles que pretendem circunscrever o autor à crítica literária). Tomei a discussão dele com Roberto Schwarz sobre as "ideias fora do lugar" no Brasil (o liberalismo no século XIX). Bosi sustenta que a noção de "fora do lugar" teria que se aplicar, por exemplo, também à Inglaterra, onde a doutrina do laissez-faire serviu para legitimar a escravidão no século XVIII; "No século XIX, não faltaram autores americanos que sustentassem a rentabilidade da mão-de-obra escrava segundo o liberalismo (BOSI, 1992, p. 208-209). Em verdade, os políticos brasileiros que sustentavam o trabalho escravo defendiam um “liberalismo econômico ortodoxo” (BOSI, 1992, p. 202)".
Julguei ver na crítica de Bosi um modelo mais interessante para pensar o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Peço a licença para citar-me:

Tendo em vista que mesmo Estados que pertencem à “centralidade” do sistema transnacional apresentam dificuldades com os direitos humanos, e que o Direito Internacional ganhou, e tem a ganhar com a contribuição de Estados periféricos, creio que o modelo teórico de Alfredo Bosi, de uma leitura contextualizada das ideias, explica melhor as condições de efetividade do Direito Internacional dos Direitos Humanos, tendo em vista:

· A centralidade internacional, no campo dos direitos humanos (em outras áreas, como o direito internacional econômico, pode-se verificar um processo diferente, devido ao peso das grandes potências), vem desfazendo-se desde a década de sessenta do século XX, apesar do papel das potências ocidentais na gênese desses direitos;

· As dificuldades de aplicação dos direitos humanos variam de acordo com os contextos locais; as dificuldades existentes no Brasil não podem ser assimiladas às da Índia, por exemplo, devido às diferenças históricas e culturais. Ademais, pode haver dificuldades na efetividade desses direitos mesmo em Estados que tiveram papel central na gênese dos direitos humanos, como os EUA.

Este trabalho dedicar-se-á ao contexto brasileiro, buscando verificar a sua especificidade. De fato, não se poderia caracterizar adequadamente a cultura jurídica brasileira com uma remissão genérica à uma virtual cultura jurídica da América Latina, ou, o que seria ainda mais impreciso, dos países em desenvolvimento.

Vejam, por exemplo, a retomada recente dos campos de concentração nos Estados Unidos, um Estado, aliás, que se mantém fora de boa parte dos tratados internacionais de direitos humanos.
Nesse momentos da obra de Alfredo Bosi, vemos uma crítica ao liberalismo que o levou a concordar com posições de Domenico Losurdo. Cito Entre a literatura e a história, obra de 2013, em que ele acaba por retomar os argumentos contra a posição de Roberto Schwarz:

É no mínimo estranho que ainda se diga, de boa ou de má-fé, que o liberalismo foi ou é sinônimo de democracia econômica e social. Ou então que só no Brasil a burguesia imperial e seus porta-vozes no Parlamento encenaram uma comédia ideológica ao protelarem a abolição do cativeiro. Se farsa houve, ela foi representada em diversos contextos e em todo o Ocidente desde que se criou o termo liberalismo. O ensaio de Losurdo contribui contribui para desfazer qualquer equívoco eurocêntrico ao demonstrar que o poder liberal, onde quer que estivesse instalado, não se propôs jamais compartilhar com "os de baixo" as suas sólidas vantagens.

Trata-se de comentário crítico à Contra-história do liberalismo, de Losurdo. Pode-se, pois, chamar este grande ensaísta (e historiador) única ou principalmente de... crítico literário? Apenas se tomarmos a literatura como um campo a partir do qual se abarca o mundo, e a crítica como uma atividade do pensamento que questiona a si mesmo e à realidade, é que poderíamos denominá-lo assim.

No volume de homenagem a que me referi, recolheu-se uma carta de Murilo Mendes, escrita em fevereiro de 1971. O poeta agradecia o envio da História concisa da literatura brasileira, considerando que "Você deu um salto, e agora já deve ser situado no primeiro plano dos nosso críticos e ensaístas.". Cinquenta anos depois, Alfredo Bosi deu outro salto, mas daquele primeiro plano ele não sairá.


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