Em 18 de maio último, assisti a uma atividade do barítono Hugo Pieri, do grupo ANIMA, no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP. Em quinze de junho, Gisela Nogueira, do mesmo grupo, estará lá com sua viola de arame, também de forma gratuita.
O ANIMA, claro, é uma das maiores referências da música (todos os gêneros combinados) no Brasil. No início deste milênio, entrevistei por telefone Valeria Bittar para a extinta revista eletrônica portuguesa Ciberkiosk. Bittar estava lá no 18 de maio, mas não tive coragem de dizer que eu já a tinha entrevistado há mais de duas décadas, até porque os textos da revista já cumpriram o destino das coisas digitais e evaporaram.
Eu não tinha encontrado, ademais, o arquivo da entrevista no computador; há alguns minutos descobri-lhe o esconderijo. Como o grupo está a lançar o disco Mar Anterior pelo selo SESC-SP, acho oportuno republicá-lo.
O ANIMA tem hoje outra página na internet: http://www.animamusica.art/; e este canal no YouTube: https://www.youtube.com/@GrupoAnimaOficial/videos.
Grupo ANIMA
«A Musicologia tem que ficar atrás do palco. No palco, a Musicologia não serve para quase nada.»
A música antiga já possui uma história no Brasil, mas ainda não uma tradição; para uma tradição configurar-se, é necessário desenvolver um perfil próprio, o que não se pode fazer com a simples cópia dos modelos europeus, propósito deliberado de vários músicos, nesse campo em que a "interpretação autêntica" é vista com especial prioridade.
Em sentido contrário dos demais conjuntos especializados no Brasil, o conjunto ANIMA claramente destaca-se por sua proposta de conjugar o repertório europeu, principalmente o ibérico, com a tradição oral brasileira e compositores brasileiros contemporâneos afinados com essa tradição.
Dessa forma, interpretam simultaneamente Machaut e as composições de José Eduardo Gramani (um dos fundadores do grupo, falecido em 1998), como no primeiro disco, Espiral do Tempo, de 1997. Ou, então, no segundo disco, Especiarias, combinam na mesma faixa a música italiana do século XIV (La Rotta, uma das mais belas melodias medievais) com Ó mana (também conhecida como Caicó, da tradição oral brasileira, empregada por Villa-Lobos na sua quarta Bachianas e gravada por músicos populares como Milton Nascimento e Ney Matogrosso).
Afora esses dois discos, de produção independente, Anima participou de Trilhas, de 1994, com os grupos Oficina de Cordas, Trem de Corda, Duo Bem Temperado, e de Teatro do Descobrimento, disco da meio-soprano Anna Maria Kieffer lançado em 1999.
Certos conjuntos de música antiga brasileiros demonstram uma dependência demasiadamente pronunciada dos modelos europeus. Anima possui um perfil próprio, que se reflete no repertório e nos instrumentos, combinação harmônica do europeu (cravo, flautas doces segundo modelos do século XVI) com o árabe (zarb - percussão iraniana, bendir – percussão turca, mejuez – instrumento sírio) e o brasileiro (viola brasileira, rabecas brasileiras, triângulo, pandeiro, kulutas – instrumentos de origem indígena).
Anima está na internet no endereço http://www.animamusica.art.br . Composto por Dalga Larrondo (percussão), Isa Taube (voz), Luiz Fiaminghi (rabecas brasileiras), Patricia Gatti (cravo), Paulo Freire (viola brasileira) e Valeria Bittar (flautas doces, kulutas e mejuez), foi com Valeria Bittar, em nome do grupo, que tive uma longa conversa telefônica.
MUSICOLOGIA E MÚSICA: CADA MACACO NO SEU GALHO
Uma das virtudes do conjunto é a de não serem acadêmicos na abordagem da música antiga. Essa ousadia pode soar estranha para expectativas já condicionadas do que deve ser a música antiga (1), razão pela qual perguntei a Valeria Bittar sobre a questão do rigor musicológico e da interpretação autêntica:
- Pelo que entendi, vocês não querem ser museológicos, nem arqueológicos, nem acadêmicos!
VB - É. A Musicologia tem que ficar atrás do palco. No palco, a Musicologia não serve para quase nada. [...] a memória auditiva, toda memória, seja tátil, visual, é uma coisa em constante transformação. Saramago fala exatamente isso [...] E essa questão de que eu estou tocando originalmente, isso é um problema do século XIX [...] a ideia de que tem que tocar a música antiga como se tocava naquela época é uma grande ilusão e é uma posição romântica.
- Na verdade, é anacrônico?
VB - É totalmente anacrônico. É uma contradição ao próprio propósito, você entende? É que essa estética de tocar [.....] é uma concepção do século XIX. Ela não resiste, acabou. Com a possibilidade da reprodução mecânica, o intérprete vai ficar muito para trás. Porque, se você tem o computador, você tem o gravador, você tem o CD, tem todas essas possibilidades tecnológicas de edição agora, então o intérprete não tem função nenhuma. Então existe hoje uma reação a essa concepção romântica. A memória musical é uma coisa muito permeável, maleável.
- O Harnoncourt foi um dos pioneiros da interpretação autêntica desse repertório. Mas hoje ele toca música barroca com instrumentos modernos, mistura os instrumentos, para ele o que importa é soar bem.
VB - Eu acho que o Harnoncourt é a pessoa ideal para a gente confiar. Ele tem uma experiência musical muito grande e ele fala isso baseado na experiência. Ele é um grande mestre. O Harnoncourt fez tudo. Fez tudo do Bach [.....]
A FORMAÇÃO EM MÚSICA ANTIGA E O BRASIL
Todos os integrantes de Anima estudaram na Europa, com exceção da cantora Isa Taube, que estudou jazz nos Estados Unidos. As diferenças na formação musical dos integrantes, segundo Valéria Bittar, eram uma "virtude do grupo".
Conversamos da dificuldade de o músico ter uma formação em música antiga no Brasil; de fato, no mundo acadêmico, ela não existe, pois "as instituições de ensino baseiam-se na música do século dezenove" e que "o músico brasileiro só era preparado para ser solista ou funcionário público".
Valéria Bittar, no entanto, entrou em contato com a música antiga no Conservatório, e sua prática com o choro muito a ajudou. Disse-lhe achar que hoje o choro é música de câmera e concordou, ressaltando como esse estilo "tem alma própria".
- Desde a sua formação, você estava em contato com a música brasileira. Isso é um dado diferencial de vocês. Porque vocês combinam a música renascentista, medieval, com a tradição oral brasileira, mas também com compositores contemporâneos brasileiros.
VB - Compositores contemporâneos que são inspirados nessa tradição brasileira.
- Dos outros grupos brasileiros, o que distingue vocês é uma proposta brasileira. Vocês até se permitem juntar a música do Caicó, "Ó mana", com "La Rotta".
VB - [........] a literatura medieval e a música medieval andam muito juntas e estão vivas, ainda hoje, em diversas manifestações da tradição oral. Principalmente aqui no Brasil.
- Se eu for comparar o trabalho de vocês, por exemplo, com o do Movimento Armorial, do Quinteto Armorial, eles tinham um trabalho muito bom, mas acho o de vocês mais livre. Vocês não são dogmáticos.
VB – É porque queremos através da música brasileira, sair do regionalismo.
MÚSICA ANTIGA E MERCADO FONOGRÁFICO:
Valeria Bittar lembra que a música antiga tornou-se "mercantil", "era um movimento" e "chegou nas grandes gravadoras, chegou no mercado". A própria proliferação de gravações, como "a mais nova gravação da Missa em Si Menor de Bach", refletiria esse quadro, o que não seria nada mais do que uma decorrência ainda do Romantismo, ao se querer sempre uma "coisa nova".
Além do rótulo "música antiga", lembramos deste, bastante infame, que é world music, nome cunhado pela ignorância geográfica e musical de estadunidenses.
- Esse próprio nome, world music, ele propriamente não é nada, é só uma marca.
VB - É, é um rótulo, que engloba tudo e não engloba nada.
- É, não quer dizer nada. No disco de vocês vem "world music", mas...
VB - Isso aí é a distribuidora.
- Explique-me: eles são gravados pela Sony, ou a Sony distribui?
VB - A Sony não distribui e não grava. Ela faz a prensagem dos discos. Mas a gente é obrigado a colocar o nome, além de pagar a conta.
- Vocês não são artistas da Sony.
VB - Não, de jeito nenhum.
- Dá para sentir. Também, se fossem, não estariam fazendo esse trabalho!
VB - Nem com aquele encarte maravilhoso.
- Seriam aqueles encartes sem informação alguma que a Sony faz no Brasil (2).
VB - Informação é o que menos interessa.
É o que menos interessa para esse sistema, é claro, em que a música é desprovida de todo valor especificamente cultural.
ANIMA E O MUNDO:
Perguntei sobre as apresentações do grupo, que já fez recitais na França e nos Estados Unidos; no início do ano, tocou no festival Rock’n Rio na Tenda Raízes. Em agosto de 2001, realizou uma turnê pelo Mercosul: apresentou-se na Argentina, no Uruguai e no Paraguai. Sobre este último país, que tem uma grande herança cultural indígena, Valeria Bittar afirmou que "dava um banho no Brasil em matéria de cultura e memória".
Em 2002, o grupo fará apresentações nos EUA e, depois, na Europa. Ainda no ano que vem:
VB - O Anima promove workshops em alguns festivais. A gente irá fazer de quatro a cinco workshops na Carolina do Norte. E nos apresentaremos na Universidade do Missouri, em Kansas City. De lá a gente vai para a Filadélfia e para Los Angeles. A gente vai fazer a música de peregrinos. Música de peregrinação até a luz. Música de natal, música do natal rural brasileiro, da Idade Média portuguesa e espanhola, o Cancioneiro de Upsala, as Cantigas de Santa Maria, o Llibre Vermeil.
A MÚSICA E O SÍMBOLO:
Anima distingue-se também de grupos como o Quinteto Armorial porque se propõe a, segundo Valeria Bittar, por meio da "música brasileira, sair do regionalismo". Como fazê-lo? Nesse momento, entra em cena a questão do símbolo.
Pois, se o grupo pode combinar o Ay Luna do Cancioneiro de Upsala (3) com A Lua Girou, da tradição oral brasileira (gravada também por músicos populares como Ney Matogrosso), no disco Especiarias, o faz menos por uma questão musicológica do que pela permanência do símbolo lunar na música.
VB - A gente faz uma fusão com o natal rural brasileiro, que é pouco conhecido: Bumba-meu-boi, Reisados, vamos terminar o ciclo de natal na Festa de Reis.
- É o repertório do próximo disco?
VB - Em parte, sim. Mas para o próximo disco a gente está fazendo outro trabalho.
- Mais ibérico?
VB - Sim. E com mais pé no Brasil rural, menos industrializado.
- Você acha que é um repertório que está se perdendo?
VB - Acho que sim. Principalmente com essa pós-globalização, essa tecnologia da rapidez. da informação, acho que ele está se fechando em pequenos nichos. Mas não acho que esse tipo de repertório um dia venha a se perder. Porque ele é muito intrínseco ao ser humano. Ele transcende o cultural, ele permanece instalado no homem.
- Por isso vocês se chamam Anima?
VB - Acho que sim... Então não é uma coisa somente cultural. Persiste uma necessidade do homem de ritual, de hierofanias, os mitologemas desses rituais. Mário de Andrade que sabia bem disso. Ele tinha uma visão profunda, ele ultrapassava a musicologia, ia até a psicologia. E há outros pensadores que nos inspiram: Carl Gustav Jung. Você encontra, além do Jung, o Mircea Eliade, que fala das necessidades anímicas, o Jordi Savall, Erich Neumann [........]
Contudo, é possível que o símbolo fale por intermédio da música? O símbolo pode falar em música, isto é, ela expressaria o que dele não podemos dizer e o faz permanente? Diante de certos trabalhos musicais, como o de Anima, respondemos sim.
Setembro, 2001.
Pádua Fernandes
(1) Como exemplo, o interessante livro de Kristina Augustin, Um olhar sobre a música antiga: 50 anos de história no Brasil, editado no Rio de Janeiro pela autora em 1999, apresenta o grupo de forma confusa, dizendo, de forma surpreendente, que as "atividades" do grupo "ainda estão muito relacionadas com as da Música Antiga" (p. 84), o que demonstra uma clara incompreensão da proposta artística do Anima.
(2) Prática feita com a música brasileira, é claro, trata-se de uma multinacional, e também (é de pasmar) com a música estadunidense; como exemplo, foi lançada uma série "Best price gold" (embora no Brasil o idioma oficial seja o português) em que os títulos simplesmente não possuem atribuição de autoria, mesmo clássicos da canção popular dos Estados Unidos, como Just in time, Alfie...
(3) Cancioneiro ibérico do século XVI que teve a sua primeira gravação mundial completa em 1997, pela Camerata Antiqua de Curitiba, regida pelo pioneiro da música antiga no Brasil, Roberto de Regina.