O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

"A roupa não presta. / O golpe está nu."



I

Policial militar, ou
fotógrafo de selfie
com golpistas;
soldado, ou filador
de churrasco
de golpistas acampados;
quartel, ou a útil paisagem
das cabanas de golpistas;
agro, o negócio
de semear golpistas
e usar o agrotóxico
para a democracia
jamais contaminar
a monocultura;
o púlpito, a escola
de ordenar o massacre
em nome de deus
e aliviar os intestinos
sobre os tribunais;
a bandeira da pátria, ou
o limpa-cu de golpista,
diarreicamente a tornar-se
o sudário do golpe.

Secretário de segurança, ou
turista ianque do golpe,
governador, ou
office-boy do golpe,
enquanto mulheres de generais
mandam fazer crochê
com as linhas arrancadas 
da bandeira nacional.

A roupa não presta.
O golpe está nu.


II

quebramos os vidros porque somos ordeiros
somos contra as eleições porque nós as ganhamos
nós as perdemos mas nós ganhamos
porque esta é a ordem e nós somos ordeiros
rezamos obedientes para o pneu porque caiu da nave do ET
nós sinalizamos com telefones para a astronave
descobrimos que a nave era uma urna
e nosso presidente venceu a eleição em outra galáxia

nosso presidente mandou um vídeo
ele comia farofa com doce de leite
era uma mensagem secreta
quando destruíssemos a capital tínhamos que roubar os doces nas gavetas
para deixar o país em forma
a farofa eram os cacos
dos computadores do século XXI
do relógio do século XVII
e da democracia representativa do XVIII ou XIX
a escravidão eu sei que era dos dois

antes de quebrarmos tudo
o país não era inteiro nosso
agora que é caco
conseguimos pisar sobre ele todo


III

Recebi mensagem da médica falando que a demência na população brasileira vai duplicar em trinta anos. 
E daí? Médico é demente mesmo, quer dar até vacina em quem não é doente.
Vai duplicar... Que coisa.
O quê?
O que eu estava falando.
O que era mesmo?
Demência.
É culpa deste governo! São todos dementes!
É culpa do governo de agora, que não tem um ministério da fé, então ninguém acredita. Eu vi nas mensagens do grupo de transubstanciadoras do vinho.
O que é isso?
É um grupo de senhoras que transforma vinho em água. Dão informações muito reais. Tudo na fé. Elas revelam todos os segredos deste governo de agora, como os cultos satânicos nas catacumbas da floresta na Praça dos Três Poderes. Mas a mensagem da médica não veio delas, não sei se dá para acreditar.
Este governo não é como o nosso presidente piedoso, que dava exemplo de saúde, andava de jet-ski enquanto a imprensa dizia que morriam milhares por dia. Mas... o que a médica disse mesmo?
Vai duplicar.
Ah! E o governo de agora, vai fazer o quê?
Ela falou que a ministra da saúde vai tentar impedir.
– Não disse? Iria duplicar, mas este governo mal chegou e já quer impedir! A esquerda sempre atrapalhando o progresso!


IV

(Pelas togas encharcadas
do sangue de meia quatro,
pelas fardas respingando
do sangue de meia quatro,

das veias de todo dia
abertas pelo mercado,
serve-se a democracia,
galinha ao molho pardo;

com as mãos e com os pés
lambuzam-se deste prato;
sem o cardápio do golpe,
o que servir ao Estado?)


V

claro que se os nossos parlamentares todos de direita chamaram a gente para quebrar tudo
e se nós estamos presos e eles estão livres
é que tudo não passou de um plano da esquerda 
e só por isso o golpe fracassou
porque a direita é só sucesso
o golpe contra o governo de esquerda foi dado pela esquerda
para encenar que isto é um país
por isso meu protesto dizendo que sou de direita e homem de deus
minha fé é combater os impiedosos
se levei pênis de borracha para as gavetas do tribunal
pisei no capacete da policial com ela dentro
se arranquei da parede do senado um tapete e mijei nele
foi exercendo minha liberdade de culto
só me arrependo de um ovo quebrado no congresso eu poderia ter fritado
protesto também contra os direitos humanos só servem para os criminosos
a prova é que na prisão me servem água
mas à noite eu gosto de um licorzinho 


VI

No documentário sobre a derrota do golpe
falaram em nome da democracia
apenas homens brancos
de terno ou farda.

O golpe, se triunfante,
ganharia o nome de revolução.
Eis a tradição pedagógica
inventada pelo pau de arara.

Não foi assim. Contudo,
se o golpe tivesse vencido,
no documentário da revolução
falariam apenas homens brancos
de terno ou farda.

Eis a ciência política
inventada pelo pau de arara.


VII

(Na história militar
nunca algo assim se deu:
acampados em barraca
meses diante do quartel.

Fornecemos água e luz
para os insurrectos,
banheiro para os seus cus,
segurança para os retos.

Deles não temos receio.
Damos o mesmo à república,
nós a cobrimos dos seios
até a região púbica.

Segundo os nossos fuzis
não existe diferença
entre a barraca e o país,
salvo pela obediência.)


VIII

O ovo africano:
autor desconhecido.
Presente de outro continente
ao país por ele formado.

A destruição do patrimônio,
ou a materialidade da insurreição.
Fardas terceirizaram o golpe
e elas usam botas
para apreciar as obras.

Um ano após a horda,
os pedaços da casca reconstituídos.
Faltam alguns, contudo.
A casca não é mais inteiriça.
Os olhos atravessam o ovo.

Agora a obra é outra.

Lacunas e vãos
deixam entrever
inteiro este país.

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