As investigações da Polícia Federal sobre os ataques às sedes dos três Poderes por apoiadores de Bolsonaro levaram, desde 2023, à descoberta de minutas de golpe de Estado com Anderson Torres, ex-ministro de Jair Bolsonaro, com Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do mencionado inelegível, e na própria sala no Partido Liberal (PL) do referido ex-ocupante da presidência da república.
O Direito, entre outras várias coisas (prática social, estrutura institucional, pacto entre particulares) é uma linguagem do Estado. Por isso, esse tipo de ato de rompimento do estado de direito, em geral, formaliza-se juridicamente. Trata-se de um paradoxo que é constitutivo do Direito: ele pode ser transformado também pela própria violação, como alertou, entre outros, Hans Kelsen. Ademais, o momento atual dos golpes na América Latina passa pelo uso distorcido dos instrumentos jurídicos: medidas de lawfare, impedimento sem crime de responsabilidade, como aconteceu com Dilma Rousseff, autorização inconstitucional da reeleição, como fez Bukele em El Salvador controlando o Judiciário etc.
No entanto, é importante, tanto por questões jurídicas quanto políticas, notar que teria ocorrido uma ruptura institucional, caso alguma das minutas tivesse sido editada. A tentativa de golpe de Estado teria como finalidade a manutenção de Jair Bolsonaro no poder segundo as investigações da Polícia Federal até o momento.
Houve quem lembrasse, diante das minutas de decretos golpistas, dos atos institucionais da ditadura
militar. Eles eram normas jurídicas impostas pelo Poder Executivo federal que fugiam à Constituição e ajudaram a institucionalizar o regime de arbítrio. Nesta nota, tento pensar um pouco na comparação.
É verdade que os próprios partidários e admiradores do militarismo já o fizeram, antes mesmo da campanha (a oficial) de Bolsonaro à presidência da república: em 2014, Dilma Rousseff derrotou Aécio neves nas urnas. O PSDB questionou o resultado e agiu para desestabilizar politicamente o governo reeleito. No início de 2015, as passeatas convocadas com ajuda da grande imprensa para derrubar a presidenta reeleita contaram com pedidos de "intervenção militar", "AI-5" e tiveram como estrela até antigos agentes da repressão processados pelo Ministério Público. Conto um pouco desse processo no meu livro mais recente, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura (Patuá, 2023).
Rememoro aqui só alguns exemplos. O filho deputado federal de J. Bolsonaro, de nome Eduardo, então no PSL de São Paulo (quando o pai fracassou na criação de um partido próprio e acabou migrando para o PL, o filho acompanhou-o), em 31 de outubro de 2019 resolveu ameaçar "a esquerda" no Brasil com um novo AI-5. Em 19 de abril de 2020, Jair Bolsonaro participou de ato no quartel-general em Brasília; os manifestantes pediam simultaneamente, com a dissonância cognitiva típica dos adeptos de Bolsonaro, AI-5 e liberdade de expressão.
Em junho de 2020, o antigo assessor de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, foi preso em imóvel de um advogado ligado a Jair Bolsonaro, Frederick Wassef; lá estava um cartaz do AI-5 de decoração.
Em 8 de fevereiro de 2024, ficou um pouco mais clara a nova tentativa de metodologia jurídica do arbítrio com o que foi revelado pela decisão de 26 de janeiro de 2024 do Ministro Alexandre de Morais no âmbito da Petição 12.100 Distrito Federal, sobre (eis o longo objeto) o "eixo de atuação 'tentativa de Golpe de Estado e de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito', com operação de núcleos e cujos desdobramentos se voltavam a disseminar a narrativa de ocorrência de fraude nas eleições presidenciais, antes mesmo da realização do pleito, de modo a viabilizar e, eventualmente, legitimar uma intervenção das Forças Armadas, com abolição violenta do Estado Democrático de Direito, em dinâmica de verdadeira milícia digital":
A representação contempla vasto relato de complexa e coordenada atuação de organização criminosa, direcionada a propósito que inviabilizaria a manutenção do arranjo político do país, por meio da adoção de medidas que estipulavam estratégias de subversão da ordem jurídico-constitucional e adoção de medidas extremas que culminaram na decretação de um Golpe de Estado, tudo a fim de assegurar a permanência no poder do então Presidente JAIR MESSIAS BOLSONARO.
A concorrência de todos os investigados em comento, maior ou menor medida, para o intento golpista e, consequentemente, criminoso pode ser inferida a partir dos elementos informativos que guarnecem a representação policial e foram anteriormente expostos.
"Intento golpista e, consequentemente, criminoso", escreveu o Ministro. De fato. Note-se, porém, que a decisão está gramaticalmente errada: em vez de "culminaram na decretação de um Golpe de Estado", deveríamos ter "culminariam na decretação de um Golpe de Estado", eis que a medida de exceção não chegou a termo.
No aditamento à decisão,
de 7 de fevereiro de 2024, seria incluído Valdemar Costa Neto, presidente do Partido Liberal (PL), pelo qual Jair Bolsonaro concorreu à reeleição, e cuja estrutura teria sido usada para a tentativa de abolição do estado democrático de direito: "A concorrência de todos os investigados, inclusive no que diz respeito a VALDEMAR COSTA NETO, em maior ou menor medida, para o intento golpista e, consequentemente, criminoso".
Em 1964, a formalização jurídica do golpe foi realizada por meio do chamado Ato Institucional. Em 2022, preocupou-se com uma formalização, mas por meio de decreto. Nos dois momentos históricos, tratou-se de normas próprias do chefe do Executivo. Segundo a Polícia Federal, a minuta de golpe incluía a prisão de alguns Ministros do STF, do Presidente do Senado (não o da Câmara dos Deputados, que, coincidentemente, já fez campanha para Bolsonaro), além de convocar novas eleições. Cito
a decisão de 26 de janeiro de 2024 do Ministro Alexandre de Morais:
os elementos informativos colhidos revelaram que JAIR BOLSONARO recebeu uma minuta de Decreto apresentado por FILIPE MARTINS e AMAURI FERES SAAD para executar um Golpe de Estado, detalhando supostas interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e ao final decretava a prisão de diversas autoridades, entre as quais os ministros do Supremo Tribunal Federal, ALEXANDRE DE MORAES e GILMAR MENDES, além do Presidente do Senado RODRIGO PACHECO e por fim determinava a realização de novas eleições. Posteriormente foram realizadas alterações a pedido do então Presidente permanecendo a determinação de prisão do Ministro ALEXANDRE DE MORAES e a realização de novas eleições.
O Ministro escreveu que "Nesse contexto, está comprovada a materialidade dos tipos penais de
tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito (art. 359-1 do
código penal) e de tentativa de golpe de Estado (art. 359-M do Código Penal)". Ele citou as conclusões da Polícia Federal:
Os elementos fornecidos pelo acordo de colaboração demonstram que FILIPE MARTINS levou ao então Presidente JAIR BOLSONARO, no mês de novembro de 2022, um documento que detalhava diversos ''considerandos'' (fundamentos dos atos a serem implementados) quanto a supostas interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e ao final decretava a prisão de diversas autoridades, entre as quais os ministros do Supremo Tribunal Federal, ALEXANDRE DE MORAES e GILMAR MENDES, além do Presidente do Senado RODRIGO PACHECO. O assessor teria sido acompanhado do advogado AMAURI FERES SAAD. O então Presidente JAIR BOLSONARO teria solicitado a FILIPE MARTINS que fizesse alterações na minuta, tendo o mesmo retornado alguns dias depois ao Palácio do Alvorada e alterado o documento conforme solicitado. Após a apresentação da nova minuta modificada, JAIR BOLSONARO teria concordado com os termos ajustados e convocado uma reunião com os Comandantes das Forças Militares para apresentar a minuta e pressioná-los a aderirem ao Golpe de Estado.
A decisão de janeiro afirma que "Embora a atuação da organização tenha se acentuado ao longo do ano de 2022, é certo que, desde 2019, já se anteviam condutas de integrantes do grupo direcionadas a propagar a ideia de vulnerabilidade e fraude no sistema eletrônico de votação do país como apontado na presente investigação e nos INQ 4781 e INQ 4878." Na verdade, como estratégia eleitoreira, era anterior: o incitamento à desconfiança no sistema eleitoral fez parte da estratégia de campanha do então candidato J. Bolsonaro em 2018: seus adeptos reforçavam o discurso de que, se ele não tivesse vencido, não teriam aceitado o resultado das eleições. A desconfiança sobre as urnas eletrônicas foi reforçada por J. Bolsonaro durante o mandato.
A investigação da polícia federal dividiu a ação em cinco núcleos: de desinformação a ataques à Justiça Eleitora, o jurídico, o operacional de apoio às ações golpistas, de inteligência paralela e de oficiais de alta patente. O jurídico seria formado por Filipe Garcia Martins Pereira, Anderson Gustavo Torres, Amauri Feres Saad, o padre José Eduardo de Oliveira e Silva e o ajudante do ocupante da presidência, o militar Mauro Cesar Barbosa Cid. Dito isso, a origem das minutas ainda é incerta.
A minuta encontrada em 12 de janeiro de 2023 na casa de Anderson Torres, ex-ministro da justiça do governo de Bolsonaro e ex-secretário de segurança do Distrito Federal na época do 8 de janeiro de 2023, foi
publicada na imprensa em 2023. Ela se baseava juridicamente na competência do Presidente da República de "decretar o estado de defesa e o estado de sítio;
" (art. 84, IX da Constituição da República). No entanto, era o caso de decretar esses estados, que levariam à limitação de direitos constitucionais e inflam os poderes da presidência da república?
A decretação do estado de defesa, que levaria à intervenção na Justiça Federal, segundo o artigo 136 da Constituição, tem como finalidade "preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza".
Ou seja, não era o caso. Se a ordem pública ou a paz social sofriam instabilidade, ela vinha do próprio ocupante da presidência da república e de seus aliados e/ou admiradores. Estaria em jogo o velho princípio de que não se deve beneficiar da própria torpeza.
No Conselho da Defesa, o Executivo tem maioria. No Conselho da República, a aliança com os líderes do Senado e da Câmara seria importante para a aprovação. De qualquer forma, ele estaria em uma posição de força, em um congresso em que a direita e extrema-direita já tinham maioria, de impedir que um governo de centro-esquerda eleito fosse empossado.
A minuta de decreto golpista criaria um grupo executivo do golpe, apelidado de Comissão de Regularidade Eleitoral, cuja composição, no artigo 5o., seria determinada em boa parte pelo Ministério da Defesa: ficava evidente a iniciativa militar do golpe. A OAB, a ONU e talvez a OEA (com a anotação "Avaliar a pertinência da manutenção deste dispositivo na proposta") seriam convidadas a participar do golpe. Essa comissão de intervenção na Justiça Eleitoral prepararia um relatório sobre as eleições, a ser entregue à presidência da república.
O decreto não mencionava a perseguição a pessoas específicas, mas previa a "prisão por crime contra o Estado". À semelhança dos atos institucionais da ditadura, previa que o Judiciário não poderia "impedir ou retardar" as ações da comissão golpista; no entanto, as prisões poderiam ser relaxadas por decisão judicial:
Art. 3° Na vigência do Estado de Defesa:
I – Qualquer decisão judicial direcionada a impedir ou retardar os trabalhos da Comissão de Regularidade Eleitoral terá seus efeitos suspensos até a finalização do prazo estipulado no $1°,art. 19,
II – a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que poderá promover o relaxamento, em caso de comprovada ilegalidade, facultado ao preso o requerimento de exame de corpo de delito à autoridade policial competente;
Em entrevista ao jornal O Globo no dia 27 de janeiro de 2023, Valdemar Costa Neto disse que a minuta de golpe circulava entre interlocutores do governo de Bolsonaro:
Aquela proposta que tinha na casa do ministro da Justiça, isso tinha na casa de todo mundo. Muita gente chegou para mim agora e falou: 'Pô, você sabe que eu tinha um papel parecido com aquele lá em casa. Imagina se pegam.
Em depoimento prestado à Polícia Federal, afirmou que sua declaração era apenas "força de expressão", e que chegou a receber o documento “algumas vezes”.
Também a deputada Carla Zambelli admitiu ter recebido, em seu gabinete, uma cópia da minuta golpista: “Escreveram e também levaram no meu gabinete. Não sei quem fez”.
Entre as pessoas citadas nesse texto, somente a deputada federal reeleita Carla Zambelli não foi presa nas atuais investigações. O relatório da CPMI mencionou também o então comandante da ABIN, general Augusto Heleno. O documento foi reforçado pelo vídeo da reunião de 5 de julho de 2022, de Bolsonaro com seu companheiro de chapa nas eleições de 2022 (general Braga Netto), a alta cúpula do governo e o deputado Filipe Barros, Augusto Heleno falou em dar uma
"virada de mesa" antes das eleições e espionar a campanha do PT. Cito o relatório de 2023:
Augusto Heleno teve acesso, em reuniões particulares, fora da agenda oficial do presidente, a "minutas de golpe", sem que tivesse se insurgido contra a possibilidade de decretação de ações golpistas, como de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que seria colocada em prática para iniciar a intentona autoritária de Jair Messias Bolsonaro.
Além disso, o relatório da CPMI tratou de outra minuta, de decreto de garantia de lei e ordem (GLO), com estudos jurídicos "que, segundo os investigadores, eram destinados a dar suporte a um eventual golpe de Estado." O material foi encontrado no celular de Mauro Cid, em mensagens trocadas com outro militar, o sargento Luis Marcos dos Reis.
Entre os “estudos”, estavam vídeos e posicionamentos do jurista Ives Gandra Martins a respeito da aplicação do art. 142 da Constituição Federal e um documento sobre o “papel das Forças Armadas com poder moderador”. O documento, enviado por Cid no dia 28 de novembro de 2022 para um outro número com seu próprio nome, trazia elementos para uma minuta de decretação de estado de sítio e Garantia da Lei e da Ordem.
O documento, "Forças Armadas como Poder Moderador" (arquivo "Análise Ideia Ives Gandra", criado em 25 de outubro de 2022) pretende que as Forças Armadas, em razão do artigo 142 da Constituição da República, seriam o (inexistente) Poder Moderador, acima do Poder Judiciário:
Os alvos dos militares, segundo essas seções do documento, eram o Judiciário e os meios de comunicação. A Constituição da República, em contraste, prevê a submissão das Forças Armadas ao poder civil, e não submete as decisões judiciais ao arbítrio militar, além de garantir a liberdade de imprensa.
A completa inconstitucionalidade disto tudo é demasiadamente óbvia. Nisso, lembramos também dos atos institucionais, que instauravam uma normatividade própria, alheia às Constituições, mesmo aquelas impostas (as de 1967 e de 1969) pela ditadura militar, o que é curioso: os primeiros atos institucionais vieram para dar uma formalização jurídica para o golpe o arbítrio, para que os militares agissem afastando a aplicação da Constituição de 1946 e as decisões judiciais.
No entanto, mesmo depois de os militares terem imposto sua primeira Constituição em 1967, e depois, sua segunda (em 1969, por meio de Emenda...), eles continuaram a precisar dos poderes dos atos institucionais, o que está ligado à criminalidade típica do regime, que subsistiu com ajuda não só da corrupção, mas de crimes de lesa-humanidade e genocídio, entre outros atos ilícitos. Era um regime de arbítrio, que não poderia seguir nem mesmo as próprias constituições.
O relatório da CPMI foi concluído em 18 de outubro de 2023. A divulgação de mais conteúdos golpistas em fevereiro de 2024 incluiu um relatório da Polícia Federal de 2 de junho de 2023, que incluiu
texto encontrado no celular do militar Mauro Cid com uma salada teórica indigesta:
encontramos ao longo da história algumas ideias
convergentes ao apelo de nosso discurso. Na Antiguidade, “Dar a cada um o que é
seu” já era uma ideia defendida por Aristóteles, como definição de justiça e princípio
de direito. No Iluminismo, a necessidade de “resistência às leis injustas” já era uma
ideia defendida por Tomás de Aquino. Mais recentemente, após a Segunda Guerra
Mundial, Otto Bachof defendeu na Alemanha a possibilidade de controle das normas constitucionais inconstitucionais,
em especial ao reconhecer a existência de um direito supralegal, ou seja, um direito
pressuposto natural acima da Constituição e de suas normas.
O direito natural, a depender da época e do lugar, já foi usado para legitimar a escravidão, o colonialismo, a discriminação racial, a submissão da mulher, a homofobia etc. Percebemos essa diversidade de perspectivas nos autores citados. Indicarei os anos de nascimento e morte para que se veja que os autores do "estudo" quiseram condensar mais de dois milênios em algumas linhas e fracassaram instantaneamente.
É verdade que a ideia de dar a cada um o que é seu aparece antes em Aristóteles (384-322 a.C.) como centro do problema da justiça, mas o problema é que a referência perde-se em generalidade: esse problema diz respeito à justiça distributiva, à corretiva, à justiça política, à equidade? O name-dropping apareceu aí, como é corrente, para substituir o pensamento. Aristóteles cria diversas categorias do justo a partir daquela ideia. O que seria do indigitado ex-chefe de governo: uma sanção por causa de ilícitos eleitorais cometidos pelo presidente-candidato, que acabaram lhe valendo a inelegibilidade?? Parece-me que a justiça política, no sentido aristotélico, foi realizada pelo TSE.
Depois, um salto mortal de séculos: o "Iluminismo" são vários, na verdade. Suas concepções de direito, especialmente em relação às noções de sujeito de direito e direito subjetivo, rompem de fato com as concepções antigas, inclusive a de Aristóteles, razão pela qual citar juntos o filósofo antigo com os do século XVIII, a liberdade dos antigos com a dos modernos, é, em princípio, intelectualmente suspeito.
Mas, se Aristóteles é citado com uma generalidade que não dá conta da riqueza teórica da obra do filósofo e nada diz de concreto para o "estudo" golpista para J. Bolsonaro, o "Iluminismo", referido também de forma excessivamente genérica, também não o ajuda.
Nesse ponto, devemos lembrar que a questão do direito à resistência, em Tomás de Aquino (1225-1274), um filósofo MEDIEVAL, é bem diferente do que os iluministas, séculos depois, fariam, especialmente porque o fundamento de Tomás de Aquino é religioso. A citação inútil ao santo e teólogo sugere que os autores do estudo sejam olavistas, que não raro mostram vocação para coroinhas tomistas.
Saltemos cinco séculos. Anos atrás,
traduzi algumas aulas de Adam Smith (1723-1790; ele é o filósofo moral que muitos conhecem por dois ou três parágrafos de
A Riqueza das Nações). Nelas (
Lectures on Jurisprudence), ele discutiu o direito de resistência em Locke (1632-1704), que é um autor contratualista e entendia que a resistência pode ser exercida quando o soberano viola o contrato social.
Adam Smith não era contratualista. Ele buscava pensar o direito de resistência com outras bases, a partir dos princípios da autoridade e da utilidade:
"Condutas absurdas e impróprias" destroem a autoridade do soberano: Nero, Calígula e Domiciano foram exemplos clássicos de Imperadores assassinados por causa de governos, digamos, problemáticos. Esses governos não se pautaram pelo "bem público", razão pela qual também não atenderam ao princípio da utilidade, o que justificava, segundo Adam Smith, a resistência.
POR QUE ACHAR QUE O DIREITO À RESISTÊNCIA, contrário às condutas ABSURDAS e IMPRÓPRIAS, bem como na grande PERVERSIDADE DO SOBERANO, poderia servir para a defesa do... PRÓPRIO chefe de governo? E DESTE ex-chefe de governo? O líder de governo das 700 MIL MORTES da pandemia??? O DAS MORTES DOS IANONÂMI, povo para QUEM FOI OFERECIDA MEDICAÇÃO INEFICAZ EM PLENA PANDEMIA???
É provável que tanto uma análise baseada em Locke quanto em Adam Smith, não obstante suas diferenças teóricas, julgasse legítimo o direito de resistência contra esse governante. Lembrar dessas questões significa produzir argumentos CONTRA o referido ex-ocupante da presidência da república.
Ainda sobre aquele curioso parágrafo do estudo golpista: a tese mencionada de Otto Bachoff (1914-2006) não tem nada que ver com a questão. No contexto do direito constitucional alemão, ele argumentava que normas constitucionais poderiam não ser válidas diante de um direito supralegal. No entanto, o "estudo" NÃO ataca normas constitucionais, muito pelo contrário: ele pretende que a Justiça Eleitoral teria violado o "princípio da moralidade institucional" do artigo 37 da Constituição da República e clama pela "necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas" (uma das imagens mais repetidas de J. Bolsonaro, aliás).
A base teórica do estudo golpista oscila, pois, entre o genérico, o contraproducente e o impertinente. Depois daquelas citações, aparece isto:
[Aqui, tratar de forma breve das decisões inconstitucionais do STF]
Afinal, diante de todo o exposto e para assegurar a necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas, com base em disposições expressas da Constituição Federal de 1988, declaro o Estado de Sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem, com
O documento está incompleto (as tais decisões do Supremo Tribunal Federal não foram analisadas), mas é seguro ver neste final um verdadeiro non sequitur: a conclusão não decorre das premissas, até porque daquelas premissas, dada sua vacuidade, nada se poderia concluir, salvo a fraqueza teórica de tudo.
Nesse aspecto, essas minutas podem ser consideradas aos atos institucionais? A fundamentação teórica desses atos veio de
Francisco Campos, jurista da ditadura de Getúlio, que escreveu a introdução do primeiro AI. Ela pode ser resumida a isto: "A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte". Trata-se simplesmente do princípio da efetividade, repetido em outros atos institucionais sob a alegação da segurança nacional. O primeiro AI não era nem mesmo numerado, pois não se previa que surgiriam outros. Tampouco se previa que não haveria eleições presidenciais em 1965. Outros AI vieram, e as eleições diretas para presidência somente voltaram em 1989.
Nos consideranda do AI-5, tivemos o explícito repúdio pelo regime das próprias normas jurídicas de exceção por ele instituídas:
CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la;
Essa foi a escalada autoritária que chegou, em 1969, aos AI de retorno das penas de banimento e capital para o Direito brasileiro. A história recente, portanto, parece mostrar a importância não só de impedir que minutas golpistas saiam do papel (elas podem abrir o portão para outras), como de PUNIR os responsáveis pela tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023.
Elio Gaspari, em A ditadura envergonhada, explicou como a denominação Ato Institucional foi trazida aos militares por Júlio de Mesquita Filho, d'O Estado de S.Paulo, com o jurista Vicente Rao: provavelmente foi a mais forte contribuição desse jornal para (e contra) o constitucionalismo no Brasil. Em 11 de fevereiro de 2024, poucos dias depois de o material golpista ter sido trazido à luz pelo Supremo Tribunal Federal, esse jornal publicou entrevista com Ives Gandra da Silva Martins, simpático a Jair Bolsonaro e, aparentemente, o jurista brasileiro mais citado nos estudos para as minutas de golpe.
Espantosamente, não se perguntou nada para ele sobre isso - o Estadão não estava lendo as notícias? Pelo contrário, o jornal deu-lhe espaço para ele voltar a criticar a atuação do STF, argumento usado nos "estudos" para justificar o golpe e a intervenção na Justiça Eleitoral. Quem sabe o jurista não teria voltado a explicar, como fez em 2023,
para a Isto É, que sua interpretação do artigo 142 não inspira golpe de Estado? E que a minuta de decreto de estado de sítio era um "texto [...] absolutamente tresloucado"?