O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Subterrâneo do anjo e aniversário de Walter Benjamin

Como 15 de julho é dia de aniversário do filósofo Walter Benjamin (nascido em Berlim, 15 de julho de 1892; suicidado pelos nazistas em Portbou, 27 de setembro de 1940), vou  deixar aqui este poema que escrevi a partir da famosa Tese IX sobre o conceito de história.

Conto por que decidi finalmente abordar o tema, depois de pensar nele por muito anos. Gustavo Silveira Ribeiro me pediu um poema em 2022 para o terceiro número da revista Ouriço com o tema  de "poesia e história". A ideia realmente óbvia que eu tinha era partir de Benjamin, que escreveu tanto sobre poesia quanto sobre história e percebeu a necessidade de entender a história por meio dos poetas, especialmente, mas não exclusivamente, nos seus estudos sobre Baudelaire e Paris.

Ademais, Benjamin escrevia poeticamente, digamos assim, porque evidentemente refletia por meio de imagens. Comprova-o, entre outros textos, a Tese IX, com sua referência ao quadro de Paul Klee (aproveito e deixo aqui a referência a vídeos de Eduardo Sterzi para a revista FronteiraZ sobre poesia e imagem: https://www.youtube.com/watch?v=Qoa1RgwRfHM).



Eu guardei esse motivo do conceito de história por muitos anos em algum escaninho mental, adiando até o o momento em que me sentisse preparado, o que evidentemente jamais aconteceria. Resolvi finalmente enfrentá-lo com o pretexto da encomenda, que enviei no fim de 2022. Continuo com esse motivo; o "Subterrâneo do anjo" foi apenas o primeiro movimento.

Vejam os autores incluídos na revista, lançada em 2024 com o tema, finalmente alterado, da imaginação. Apesar de eu ter tratado de outras coisas, relativas à encomenda original, os editores tiveram a delicadeza de incluir meu poeminha. O próprio Walter Benjamin, que escreveu também sobre imaginação, está lá, por sinal. 

Essa é uma revista que tem muita procura (seus números esgotam, o que não acontece sempre com os periódicos de poesia), mas ainda está disponível para venda. Como o meu poema saiu lá com a formatação errada, deixo-o aqui também.



Subterrâneo do anjo


Pádua Fernandes





I


Na primeira vez em que fui assassinado pela polícia nacional,

a câmara de gás era portátil,

cabia no porta-malas da viatura.

Na primeira vez em que fui cremado pela polícia nacional,

dispensaram a viatura,

o campo de concentração era o meio de transporte para o país.

Na primeira vez em que a polícia nacional dispersou minhas cinzas,

o hasteamento da bandeira dispensou campos de concentração.

Na primeira vez em que a polícia nacional se cobriu de cinzas

a gentil brisa nascida do despir das togas

antes da sauna vespertina

removeu das fardas o pó.


– O poema mente: os editais para a construção de campos de concentração seguiram quase todas as regras, as empresas agroexportadoras em consórcio com os bancos de investimento venceram a concorrência.

– Mas o Ministério Público fez bem quando opinou pela nulidade do resultado, as empresas de seguro saúde têm notória especialização na matéria!

– O pedido de vistas de um Ministro interrompeu o julgamento quando já se tinha formado maioria para que o edital fosse interpretado de acordo com a Constituição: cotas raciais, sociais e de gênero deveriam ser impostas nos campos.


Na primeira vez em que a criança foi impedida de abortar

e a juíza apontou para o crucifixo do fórum

e o estupro celebrou a família tradicional

e a direita lançou campanhas eleitorais com vouchers para granadas

e a juíza perguntou se a criança acreditava em bonecas

que nasciam na barriga das meninas

e a ministra de direitos humanos explicou a felação infantil sem dentes

para os fiéis interessados

e os eleitores cobriam de cédulas a pastora morta durante o culto

até que ela ressuscitasse sob o peso asfixiante

e os juízes vedaram o aborto legal à criança

pois eram competentes para abortar a legalidade,

os escombros da repetição da primeira vez

fizeram sombra ao sol

e alguns se perguntaram

se era só a noite ou o fascismo;

outros, se era só o fascismo

ou o país. 


– O poeta erra: ele escreve como se existisse algo como o nascimento.

– Era melhor que ele não tivesse nascido. Mas isso pode ser remediado.


Na primeira vez em que morreram cem mil

e os liberais trocaram as políticas de saúde pela dispneia,

na primeira vez em que morreram duzentos mil

e os militares torturaram vacinas em nome da segurança nacional,

na primeira vez em que morreram trezentos mil

e o planeta foi considerado oficialmente plano,

na primeira vez em que morreram quatrocentos mil

e drogas para piolho foram enviadas para as aldeias,

na primeira vez em que morreram quinhentos mil

e a imprensa burguesa louvou a direção correta,

na primeira vez em que morreram seiscentos mil

e os parlamentares trocaram covas por votos,

na primeira vez em que morreram setecentos mil

e a bolsa disparava com os índices da fome,

na primeira vez em que morreu um milhão

e os algarismos foram considerados subversivos,

na vez alguma em que ninguém morreu,

jamais a produtividade do sistema político,

dos juros e do mercúrio

que substituiu os peixes nos rios pátrios

desceria a zero.


– Isto nem parece com poesia, ele faz é ativismo do movimento "Todas as árvores de pé", ramificação que brotou do movimento comunista internacional.

– É para derrubar o cara?

– Claro. Os versos sobre os milhões desviados para tratar a disfunção erétil das forças armadas ameaçam a higidez do Estado.


Na primeira vez em que não se via nada que não fosse polícia,

os olhos do capitão úmidos do adeus ao orçamento público

pingavam polícia,

o patrocínio latifundiário para os cantores da trilha sonora da tortura de camponeses

comprava a polícia,

o desaparecimento do boletim de ocorrência

da chacina de mulheres transexuais

ostentava a presença da polícia,

enquanto as gargalhadas do jornalista e do economista com a notícia de mais um estrangulamento de negros

(diminuição benfazeja do défice da previdência, explicou o economista;

este pessoal ruim de bola nem sabe posicionar o joelho em cima de um pescoço, criticou o jornalista),

queriam esconder a polícia.


– Com as escolas cívico-militares, nada disto será lido pelos estudantes.

– Se elas derem certo, eles não lerão mais nada!

– Assim, poderemos economizar a munição para alvos mais importantes, como alunos de cabelo africano.


A primeira vez em que a polícia nacional atirou no menino autista que não disse como se chamava

e as folhas caídas sobre o corpo encontrado uma semana após reproduziam o mapa do Estado,

a primeira vez em que a federação das indústrias inflou patos gigantes nas ruas

e o golpe de Estado era o que se via no espelho dos palácios,

a primeira vez em que juízes pegaram os papéis deixados sob o pau de arara

para ler nas manchas a lei que aplicariam,

ou aquela em que se decidiu pela incineração coletiva para privatizar com higiene os cemitérios,

ou nesta em que o desvio de verbas da educação para estandes de tiro

levou ao monopólio dos prêmios literários por rascunhos de oficina.


– Antes de explodirmos a casa, ele acrescentou: "Não há primeira vez. Que seja abolido o mito da origem". Não entendi.

– Não teve tempo de terminar o poema. Lerdo. A detonação é o espaço do verso.


Também na primeira vez em que a Terra se tornou redonda

assassinos, togas e cruzes se levantaram.



II


Moramos nos escombros.

Resistimos nos escombros.

Somos feitos dos escombros.

Neste país eles chegam até o céu.

Cairemos sobre vocês.


Nem mesmo voando escaparão

pois soterraremos o anjo.



Encerrada a ilusão das asas,

a história poderá começar.


segunda-feira, 1 de julho de 2024

Encontro de exílios: um soldado, o Diabo, Stravinsky e a Bolívia no SESC

Um dos momentos mais esperados da música em São Paulo é o Festival  SESC de Música de Câmara. Neste ano, só pude ver, em 9 de junho, A História do Soldado, peça de 1918 com música de Stravinsky e texto de Charles-Ferdinand Ramuz, que foi tocada por La Sociedad Boliviana de Música de Cámara, regida por Leonard Evers, e encenada por Leonardo Ventura. O texto, apresentado em português, foi adaptado pelo escritor boliviano Gabriel Mamani Magne.

Chamei de peça, mas o que é A História do Soldado? O Kobbé a incluiu em seu dicionário de ópera, embora não tenha canto. O espetáculo original, certamente sui generis, envolve um narrador, atores, bailarinos e um conjunto de câmara.

No SESC, não houve balé e Leonardo Ventura assumiu todas as partes faladas, inclusive o proto-rap que o Diabo deve emitir pouco antes do fim. A adaptação foi muito interessante. Gabriel Mamani Magne transpôs a história de Ramuz para a Bolívia e o Brasil. 

Em verdade, não houve mera transposição, mas metamorfose: o espetáculo começa antes de os músicos entrarem em cena com Ventura trabalhando com uma máquina de costura, sacos de retalhos em volta, e o som toca notícias da Bolívia, especialmente questões sobre o câmbio, tão importante para imigrantes. As projeções no fundo são imagens daquele país. 

O imigrante trabalhava em São Paulo, numa tecelagem; nessa cidade, casos de trabalho em condições análogas à escravidão encontram-se justamente com estrangeiros, muitas vezes em situação irregular no país, e nesse campo de atividade. Leonardo Ventura teve a ideia de enredar-se nos fios da tecelagem, em um efeito visual marcante. 

No fim da música, voltávamos à máquina de costura e aos retalhos e às notícias em áudio sobre a Bolívia. O Diabo vencia, confundindo-se com a dinâmica do capital que obriga os imigrantes a deixarem seus países e muitas vezes os mergulha em condições degradantes de trabalho. 

Na história de Ramuz, o soldado é iludido pelo diabo e fica três anos fora de casa. Neste espetáculo, o imigrante ficou dez anos (em vez de dez dias) e por isso não é mais reconhecido quando volta: tudo mudou na sua terra natal e sua noiva casou-se.

Chegou a ser dito que a escolha de Ramuz provaria a falta de gosto de Stravinsky para a literatura; Celso Loureiro Chaves, nas notas que fez à publicação separada do verbete do Grove sobre Stravinsky (escrito por Eric W. White e Jeremy Noble), menciona a "evidente disparidade" entre o texto e a música. No entanto, a brilhante adaptação de Mamani Magne confere mais concretude à história e a melhora sensivelmente. 

A execução musical foi feliz nos momentos de dança, como no tango, mas não tanto nos de maior violência, com exceção do solo final da brilhante percussionista, Paola Machicado Torres, que representou a vitória final do Diabo. O maestro e colaborador de Stravinsky Robert Craft, em seu diário, contou que Genet dissera a ambos que a voz do compositor lembrava os instrumentos de percussão n'A História do Soldado, o que era uma boa observação. Na ópera "The Rake's Progress", Stravinsky transformaria em música outra vitória do Diabo.

O espetáculo paulista/boliviano, aparentemente tão pouco ortodoxo, fugiu ao espirito do original? O adaptador, no texto do programa, falou de sua experiência pessoal como boliviano que mora no Brasil; ele quis abordá-la porque "Quando li a obra pela primeira vez, só pensei numa pessoa que está cansada de andar e quer volver para a sua terra". "Volver", e não a palavra "voltar"; de certa forma, ao menos no vocabulário, ele não deixou seu país.

Este Festival SESC trouxe muitos músicos bolivianos, o que seria outro motivo para a adaptação. Creio, porém, que, a mudança para a questão do imigrante, embora na América Latina, realmente aproxima o espetáculo de Stravinsky, inclusive em termos biográficos: o compositor russo migrou depois da Revolução de 1917 e teve de morar em diversos países. Em 1918, ele já tinha percebido que não poderia voltar depois de os bolcheviques terem tomado o poder. Ele estava exilado na Suíça. Em 1920, mudou-se para a França, onde ficaria alguns anos. Com a Segunda Guerra Mundial, mudou-se para os Estados Unidos.

A questão do exílio, na verdade, está no centro dessa peça, mas só fui capaz de percebê-la quando vi este espetáculo em São Paulo. Ele teve a capacidade de aproximar-se de Stravinsky por meio de um deslocamento: transpondo-a para a América Latina, percebi o que sempre esteve lá na obra concebida na Suíça. Trata-se do efeito próprio da poesia: deslocamento de palavras e imagens para ver melhor o que sempre esteve presente, ou passou a estar sempre presente depois de ter sido visto.

Na poesia, o exílio pode tornar-se lugar de encontro; esse foi impacto da renovada História do Soldado  no Festival SESC de Música de Câmara.


P.S.: Eu quase tinha acabado de escrever esta nota quando aconteceu a tentativa de golpe de Estado na Bolívia, felizmente malogrado. Cito a reação de Mamani Magne: "Cada vez que un militar habla de patria cae sangre. Zúñiga habló de patria y dios, la ecuación letal. Hay que cuidar la democracia porque hay que cuidar vidas. No olvidemos que las balas nunca llegan a las cabezas, sino a los más vulnerables".